Doze livros para 2024

Ceri Richards, A Rosa Torta, 1965
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Doze livros para 2024

Por CARLOS DE NICOLA*

1.

PT, uma história, de Celso Rocha de Barros, interessante na medida em Rocha de Barros traça uma linha entre os movimentos e frentes que deram origem ao PT, o “maior partido progressista do ocidente”, nas palavras de Eric Hobisbawn. O autor destaca que, dos movimentos “fundadores”, o único que fez mobilização, ou seja, articulou setores para fora da vida partidária foi aquele ligado à Igreja Católica e à Teologia da Libertação.

Para o leitor contemporâneo vem à cabeça a questão sobre o que o bloco religioso hoje no Brasil mobiliza – imaginando que as “novas lideranças” são gente do tipo de R. R. Soares, Silas Malafaia, entre outros. Outro destaque é o jogo tático que orientou o PT na maior parte de sua história, distante de “visão de país” e “projeto estratégico” nestes termos, e mais orientado para resolver situações pontuais – e concretas – da vida do povo brasileiro. O que garante governabilidade, mas pode fazer-nos cair em cadafalsos como aquele do bolsonarismo.

2.

Arrabalde. Em busca da Amazônia, de João Moreira Salles, porque a obra imerge na realidade amazônica, nomeadamente na área do estado do Pará, para entender os meandros socioeconômico-culturais que resultam na destruição da floresta. Durante a colonização do Brasil se apontava – e ainda na Ditadura isso era feito, perdurando até os dias de hoje – que na Amazônia brasileira não havia ninguém, era uma “terra sem gente”.

João Moreira Salles e Lula se encontram na proposta de que se inclua nos currículos escolares as novas descobertas arqueológicas que demonstram como a Amazônia é uma construção humana no sentido da colaboração dos povos originários para o que a floresta é hoje, inclusive em relação a sua biodiversidade. Moreira Salles aponta também possíveis saídas dentro do sistema capitalista para minorar o desmatamento da Floresta.

Lança interessantes questões, por exemplo, como dar escala para sua economia e valorar a preservação ambiental. Suscita ideias inclusive para outros biomas brasileiros, e para a preservação socioambiental no Brasil em geral, que deveria, em sua visão, tornar-se ponta de lança em produtos florestais não madeireiros, e, além disso, o estabelecimento de marcos legais de remuneração das comunidades que preservam o meio ambiente.

Um desafio para a “economia da floresta”, segundo Moreira Salles, é superar o consumo de nicho e a produção de subsistência. “Apreender a floresta tal como ela é”, e não nos nossos próprios termos de moradores do Sudeste, por exemplo, é um dos desafios. Moreira Salles compara o processo de ocupação da Amazônia a um “grande fracasso epistêmico”. Precisamos de uma “cultura da floresta” para contrapor-se à “cultura do boi”. O livro fala também do agro pouco produtivo na região Amazônica comparado a outras regiões do Brasil e do mundo.

As políticas públicas foram de ocupação da Amazônia, basicamente um incentivo ao desmatamento. A falta de dinamismo econômico da região joga também contra a preservação, uma vez que a floresta é o “prato mais suculento” e fácil de ser explorado do modo mais rústico possível. Sugere, também, que, nos próximos anos, restaurar florestas no Brasil pode se transformar em uma atividade econômica relevante, uma vez que nenhum outro país do mundo possui tantas áreas prioritárias para fazer restauração florestal. De certo modo, é enxergar o copo meio cheio, ou a floresta (ainda) meio preservada.

3.

Lula. Uma biografia, de Fernando Moraes,interessante na medida em que Fernando Moraes é o maior biógrafo do Brasil e, além disso, vários elementos históricos da construção da figura do maior líder da história do Brasil que é Lula nos ajudam a traçar uma radiografia também da presente conjuntura política. Importa saber que o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) foi o movimento mais relevante na defesa à tentativa de prisão de Lula no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em 2018. A foto em cima do carro do som às vésperas da prisão de Lula é antológica: Guilherme Boulos ao seu lado esquerdo, com o punho cerrado, e Manuela d’Ávila à direita.

A Vigília Lula Livre, em Curitiba, foi um ato histórico daqueles que entenderam a barbárie que se cometia contra a maior liderança progressista brasileira. E mesmo quem não seja simpático a Lula, mas seja defensor da ideia mais básica de liberdade e justiça, deveria ter colocado contra sua prisão, e agido ativamente neste sentido. A posteriori, é interessante notar como há uma linha de continuidade entre o golpe contra Dilma, o empossamento de Michel Temer, a perseguição a Lula e a eleição de Jair Bolsonaro.

O fio narrativo escolhido por Fernando Moraes, de equiparar as duas prisões de Lula, em 2018 e em 1980, é muito interessante e cumpre bem a função de criar conexão entre momentos distintos da vida da liderança, e mostrar como ele se formou ao longo dos anos, na vida sindical, na repressão da ditadura, na “redemocratização”, enquanto Presidente, depois enquanto apoiador de Dilma Rousseff, até a terceira eleição que o consagrou novamente líder máximo da nação.

A confluência de lutas da década de 1980 que possibilitou derrubar a ditadura militar na esteira do maior movimento de trabalhadores brasileiros que já se havia visto é uma lição para o presente. Naquele momento, sob direção da classe trabalhadora brasileira, na base de reivindicações “econômicas” e políticas, deu-se um golpe de misericórdia no regime tirânico que reinava no Brasil. Uma aliança histórica que contou com a Igreja Católica e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) – a última vez que essa Igreja, e a religiosidade em geral, cumpriram um papel progressivo no Brasil.

Interessante notar o mecanismo retórico que Lula utilizava para passar “despercebido” pela alta cúpula militar e da repressão: dizia que não gostava de política, apesar de fazer política no sentido mais forte do termo. Depois vem a criação do PT, o acontecimento político mais importante da história brasileira. Um livro cheio de grandes coisas.

4.

Formação do MST no Brasil, de Bernardo Mançano Fernandes, é para se entender melhor o MST, movimento social polêmico à extrema direita e à centro-esquerda, haja vista as declarações de Jair Bolsonaro, sobre “pacificar o campo”, e de Lula, de que “não são necessárias mais as invasões de terra”. Como pode dar tanto o que falar um movimento de cinco décadas de história?

Bernardo Mançano Fernandes explica a confluência de movimentos que desencadeou o MST na década de 1970, na esteira da política agrária concentracionista e elitista da Ditadura Militar brasileira, e dá bastante destaque à formação do Movimento em cada estado brasileiro. Saltou aos meus olhos as semelhanças históricas e organizativas entre MST e MTST.

5.

O ecossocialismo de Karl Marx, de Kohei Sato, interessante na medida em que explicita os conceitos ecológicos que podem ser vislumbrados na obra do maior pensador da história, Karl Marx. O autor frisa que, na sua visão, o primeiro dos estágios do ecossocialismo é a incorporação da regulação da natureza ao socialismo. Kohei Sato frisa que Marx, em seus últimos anos de vida, estudava ciências naturais, química, biologia, botânica, geologia e mineralogia e que o esgotamento do solo com a agricultura moderna foi um dos aspectos da repercussão ambiental do capitalismo que Marx pôde captar.

Kohei Sato frisa que, à época da produção feudal, a unidade dos produtores com a terra dava-se por conta do domínio pessoal direto, em contraposição com a penetração do poder autônomo do capital, que faz com que a produção na terra no capitalismo seja mais instável do que no feudalismo, e vá contra as necessidades sociais concretas. A citar Marx, em A miséria da filosofia, de 1847: “A renda, em vez de ligar o homem à natureza, apenas liga a exploração da terra à concorrência”. Segundo Kohei Sato, a separação entre produtores e a terra é pressuposto histórico e lógico para o funcionamento do capitalismo.

A grande tarefa de Marx foi investigar as relações sociais concretas e o capitalismo é a forma específica de organizar os metabolismos social e natural. O valor é o caráter puramente social de uma coisa (uma objetividade fantasmagórica), enquanto a troca de produtos é caracterizada pela objetividade de valor socialmente igual, que se contrapõe à objetividade de uso. “A estratégia ecossocialista precisa ter como objetivo a construção de uma relação humano-natureza sustentável por meio da restrição da reificação”.

Kohei Sato destaca, citando Marx, que a produção capitalista apenas se volta para a terra depois que sua influência se esgotou e de haver devastado suas qualidades naturais. O conceito de “natureza” existe apenas em relação à produção social.

6.

O alfaiate de Ulm. Uma possível história do Partido Comunista Italiano, de Lucio Magri, interessante na medida em que descreve o apogeu e a decadência do que foi então o maior partido comunista do ocidente, o Partido Comunista Italiano (PCI). Segundo o autor, militante comunista histórico (e, inclusive, satírico para com o trotskismo), o PCI foi a tentativa mais séria, em certa fase histórica, de abrir caminho para uma “terceira via” de modo a conjugar reformas parciais e de buscar amplas alianças sociais e políticas.

A herança gramsciana foi descrita como um fundamento de uma via intermediária entre a ortodoxia leninista e a social-democracia clássica. A “frente única” do anos pós-fascismo na década de 1940 foi fundamental para conceber o PCI que se conheceu nas décadas seguintes, e se orientou para construir uma República democrática multipartidária, com plena garantia de expressão, imprensa e religião, com um programa de reformas sociais profundas, de constante participação dos trabalhadores e de suas organizações, garantindo independência nacional, repúdio à guerra e à formação de blocos entre potências.

Ao início da década de 1960 o PCI representava um quarto dos eleitores italianos, e conservava dois milhões de filiados – para efeito de comparação, o PSOL, no Brasil, em 2021 possui, aproximadamente, 220 mil filiados. O PCI teria sido tragado pelo chamado “fim do socialismo real”, com a queda do muro de Berlim e da União Soviética, ao início da década de 1990. Seus dirigentes não conseguiram dar respostas concertas as questões que surgiram com esse grave acontecimento histórico, e optaram pela implosão. É difícil pensar quais dirigentes socialistas no mundo, naquele momento, estavam preparados para isso, mas não deixa de fazer-nos pensar o drama do comunismo italiano de se auto-aniquilar.

A juventude também deixou de ver no PCI uma ferramenta útil, conforme o autor descreve sobre os acontecimentos de 1968 e seus reflexos na Itália, “os jovens, em especial, não se sentiam atraídos, nem via utilidade em um engajamento feito majoritariamente de reuniões, campanhas eleitorais e proselitismo […] Eles queriam entender e participar efetivamente da elaboração da política e contribuir com suas próprias experiências; queriam dirigentes, mesmo periféricos, capazes de dirigir suas lutas e compartilhar suas formas de expressão, suas emoções; não queriam apenas ouvir falar dos tempos em que vivíamos na montanha ou como governávamos os conselhos municipais”.

Em 1984 o PCI marcava 33,3% dos votos na eleição nacional e tornou-se o maior partido italiano. Paradoxalmente, essa eleição marca o início de uma derrocada eleitoral, programática e política. O autor frisa a retórica do “novismo” que começou a imperar na direção do partido, coincidente e talvez por conta do desmantelamento da União Soviética que “[esse desmantelamento] era irreprimível. Contudo, era urgente que se construísse um sistema diferente, como perspectiva capaz de mobilizar dezenas de milhões de pessoas e conseguir resultados imediatos para melhorar as condições de vida cotidiana e, com isso, consolidar um amplo consenso, estimular a participação e iniciar o saneamento das instituições”.

Houve também uma mudança semântica nos materiais congressuais do PCI, à semelhança do processo que Mauro Iasi retrata em As metamorfoses da consciência de classe: o PT entre a negação e o consentimento. Lucio Magri aponta o seguinte, fazendo um balanço desse percurso do PCI e da atualidade da luta socialista: hoje não se consegue sair do círculo vicioso da integração e da revolta sem a intervenção de uma mediação política forte.

7.

Ana Maria Primavesi: histórias de vida e agroecologia, de Virginia Mendonça Knabben, interessante na medida em que destaca a vida de uma das exponentes do pensamento agroecológico. Retratando a vida de Ana Maria Primavesi na Europa, a fugir da Segunda Guerra Mundial, Virginia Mendonça Knabben mostra o percurso acadêmico e prático que desembocou na nova leitura ecológica e agronômica que dá centralidade ao solo nos cultivos, no sentido de entendê-lo e ajudá-lo a superar suas dificuldades nutricionais para que ele, por sua vez, resulte em maior saúde das plantas.

Em um momento que se discute, com mais ênfase, no Brasil, a regeneração de biomas, a agrofloresta ressurge como uma potencial política pública em larga escala, apoiada nos saberes acadêmicos e tradicionais, para ajudar na luta contra a emergência climática. Esse percurso marca também a inauguração do galpão que hospeda a feira de produtos orgânicos no Parque da Água Branca, em São Paulo. Ana Maria Primavesi também assessorou assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

8.

Adiós Muchachos: a história da Revolução Sandinista e seus protagonistas, de Sergio Ramirez, interessante na medida em que narra a última revolução do século XX, aquela da Nicarágua em 1979.Seu autor, Sergio Ramírez, foi um dirigente da Frente Sandinista, e, também, candidato à vice-presidência na chapa, junto a Daniel Ortega, na derradeira eleição de 1990, perdida pelas dois, em que marca um ponto de não retorno da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN).

Há as questões que envolveram a participação de membros da Igreja Católica da Nicarágua – um dos elementos marcantes desse processo, uma vez que nunca se vira engajamento nessa magnitude de padres e párocos. Há também o prenúncio do que seria a administração de Daniel Ortega após os anos 2000, a partir de pactuação com setores da oposição para se garantir no poder permanente, uma caricatura do que foram os anos da década de 1970 – de engajamento militante, moral e ético.

Há certo antissocialíssimo ou antimarxismo nas palavras do autor, mas entende-se, a partir de seu percurso de vida. Menciona-se a participação dos Estados Unidos da América no processo de fomento à contrarrevolução, os chamados “contra” – iniciativa relativamente mais diplomática do que em outros acontecimentos de países sul-americanos ao longo do século XX, mesmo assim, com mão de ferro, aprovando “democraticamente” no Congresso estadunidense ajuda militar.

A Cruzada Nacional de Alfabetização se sobressai como talvez o grande feito imediato da Revolução, em seguida à 20 de julho de 1979. Interessante, também, que, sob a liderança sandinista, aglutinaram-se inclusive setores da burguesia nacional, fartos que estavam da ditadura de Anastasio Somoza Debayle. O programa do governo revolucionário, programa este estabelecido em 1977, consistia em cinco pontos principais: um regime democrático de liberdades públicas; a abolição da Guarda Nacional de Somoza; a expropriação de todos os bens da família Somoza e de seus cúmplices; a transformação do regime de propriedade; e relações de não alinhamento com todos os países do mundo.

O autor critica a “submissão vertical”, que, segundo ele, deu-se por conta da influência do “modelo leninista”, e acarretou a “obsessão pela dupla autoridade partido-Estado”, quando os quadros dirigentes do partido tratavam de se impor sobre os ministros de estado. Sobre o financiamento da contrarrevolução por parte da CIA, que ocorreu inclusive com grupos indígenas descontentes com o governo – Sergio Ramírez destaca a distância dos dirigentes da FSLN com o seu “paternalismo ideológico” que pouco entendia da cultura daqueles aos quais queria influir.

Relata-se a opção pela socialização da terra no campo em vez de entregar títulos de propriedade aos agricultores, no caso das terras da família Somoza, o que, segundo o autor, ao longo do tempo colocou médios e pequenos agricultores no balaio dos “contra”. O brilho desse processo emana das linhas que descrevem como voluntários de todo o mundo foram à Nicarágua lutar contra a ditadura de Somoza, inclusive trotskistas latino-americanos, no eco internacionalista do que foi a Guerra Civil Espanhola de 1936.

9.

Quando novos personagens entraram em cena, de Eder Sader, é um livro que descreve os movimentos sociais da década de 1970 e 1980 em São Paulo, núcleo fervilhante da luta contra a ditadura militar, e embrião da redemocratização no Brasil. Berço, inclusive, de Luís Inácio Lula da Silva. Eder Sader descreve como se constituiu um novo sujeito social e histórico a partir desses movimentos.

Especialmente útil em nossa época que, a partir dos movimentos indígenas, de trabalhadores de aplicativos, de mulheres, entre outros, se discute, no mundo e no Brasil, qual o sujeito histórico do século XXI, de um neoliberalismo já profundo e com raízes sólidas na classe trabalhadora. A partir de “lugares onde a política institucional ainda não lançou tentáculos” o autor constrói um mosaico das lutas em um período em que lutar era, juridicamente, crime passível de punição, e, extraoficialmente, de tortura, desaparecimento forçado e assassinato.

A partir de uma grande desconfiança com o sistema da época, o que se fez não foi a negação da política, mas política no melhor sentido, na praça pública, nas comunidades dos bairros periféricos da metrópole em ascensão, no chão de fábrica e nas passeatas (re)nascentes. O PT é um sujeito quase oculto dessa história, não por censura do autor, mas porque o que se visou na obra foi descrever a dinâmica mesma desses movimentos que, em alguns casos, desembocou na política partidária, não sem críticas ou ressalvas de seus autores, desses personagens políticas, populares, reais, de carne e osso.

Ocorreu uma emergência de novas identidades coletivas, que pautaram “novidades no real e nas categorias de representação do real”. A força de uma Igreja Católica aberta, arejada, baseada nas comunidades eclesiais de base, é impressionante. Como escrevi anteriormente nessas resenhas, talvez tenha sido o último rompante de religiosidade progressista de massas no Brasil, agora que vemos, em 2023, nas massas, o crescimento rumo à hegemonia de uma religião que prega o culto de um individualismo hipócrita, de salvação individual fantasiada de amor ao próximo, em catarses coletivas em que há muita forma e pouco conteúdo em púlpitos de terno e gravata.

Interessante notar que foi esse afluxo dos movimentos sociais que colaborou na derrubada da ditadura militar, que não possuía mais legitimidade social, e como o movimento sindical, especialmente o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo foi “comendo pelas beiradas”, dizendo-se “apolítico”, mas arrancando vitórias relevantes da classe política e empresarial brasileira e servindo como afronta geral ao estado de coisas da ditadura com Lula a vociferar no estádio da Vila Euclides.

Para lutar, os oprimidos precisam reconhecer a opressão, e construir formas de autoidentificação do grupo, no sentido de verem-se a si mesmos enquanto partes de uma coletividade. Na era da “modernidade líquida”, é difícil configurar laços de existência coletivos que não sejam baseados no consumo, mesmo que no consumo cultural, e, por isso, a militância hoje está em baixa no Brasil em relação às décadas precedentes.

Chama a atenção o fato de que Lula, no livro, era “apenas” uma liderança operária. Décadas depois, ele é o presidente do Brasil em seu terceiro mandato. De certa maneira, aqueles personagens de Eder Sader que entraram em cena ainda dominam o palco, apesar da espreita de novíssimos candidatos (a protagonistas).

10.

Os Carbonários. Memórias da guerrilha perdida, de Alfredo Sirkis, interessante na medida em que desvela que, durante a ditadura de 1964, houve resistência para além do que é divulgado oficialmente. Ler a construção de passeatas em plena ditadura, às vésperas do AI-5, é impressionante porque nos faz lembrar da construção das manifestações de Junho de 2013, já sob uma democracia formal, mas ainda por debaixo das botas da polícia militar e seus asseclas.

O nível de tensão, as possibilidades, os truques dos manifestantes, são exemplos de como era se manifestar durante a ditadura. É possível notar que no primeiro semestre de 1968 – meses antes do AI-5, o regime “balançou”, ou seja, houve o embrião de um movimento de massas, que possuía como vértices a luta dos estudantes, que estava começando a convencer as classes médias e classes populares a se engajarem em uma luta ativa contra o regime.

Se o balanço da luta armada é mais ou menos coeso, não o são as razões do fracasso daquele movimento. Os militantes mais “legalistas” que se colocavam contra aqueles “que quebravam” já existiam naquelas jornadas de 1968. “Você que é explorado, não fique aí parado” era uma palavra de ordem que se ouvia naquele momento, e que se ouviu também em 2013. Outro ponto a destacar do livro de Alfredo Sirkis é o relato de como se construía movimento estudantil naqueles duros tempos, no âmbito principalmente do movimento secundarista do Rio de Janeiro, mas também do movimento universitário.

Lemos nomes de personagens que depois foram ocupar altos cargos nos governos da “democracia”, principalmente de Lula e Dilma Rousseff, décadas depois. Um dos destaques da obra – que é ficcional, diga-se de passagem – são os meandros do sequestro de dois embaixadores, da Alemanha (na época, a Ocidental) e da Suíça. Eu apostaria que são trechos fictícios, mas ler o personagem passeando pelo Rio de Janeiro enquanto mantinha o embaixador da Suíça sequestrado no subúrbio.

O ponto alto do livro, talvez o melhor dele, é quando o protagonista descobre que um seu companheiro de sequestro do embaixador da Alemanha era ninguém menos do que Carlos Lamarca, mítico já naquela época. Primeiro, por conta de uma arma caprichada – Lamarca foi do Exército e era um exímio atirador –, depois, por conta da letra do próprio quando o personagem espiou seus escritos em uma mesa no “aparelho” – a casa onde ficou sequestrado o embaixador.

Lemos os meandros da guerrilha urbana, suas trapalhadas, seus altos momentos, e, lendo e pensando retrospectivamente, vemos que, apesar do idealismo, faltou àqueles militantes uma leitura de conjunto que possibilitasse a percepção de isolamento em relação à sociedade brasileira. Momento lindíssimo, possivelmente ficcional, quando o autor retrata que a solução encontrada pelo grupo para justificar a presença de Lamarca era dar ainda mais notoriedade para o suposto “tio” no “aparelho” do sequestro do embaixador suíço, que foi visitar a família, e registra o guerrilheiro a jogar peladas pelas ruas do subúrbio carioca, talvez a pessoa mais procurada no Brasil. Dialoga bastante com o filme Marighella (2020) de Wagner Moura e, obviamente, Lamarca (1994) de Sérgio Rezende.

11.

Não és tu, Brasil, de Marcelo Rubens Paiva, interessante na medida em que narra a passagem de Carlos Lamarca e seus companheiros da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), no início da década ade 1970, no Vale do Ribeira, em São Paulo, na região do município de Eldorado. O “filé” do livro é justamente a parte em que essa passagem é mais profundamente retratada, no que o autor intitula o “Vértice 2” do material, que é dividido em outros dois “vértices” – leia-se, capítulos – e um posfácio.

Marcelo Rubens Paiva realizou entrevistas com ex-guerrilheiros e membros das Forças Armadas brasileiras, e com populares locais. É impressionante saber que, mesmo cercado por um exército, o grupo de Lamarca conseguiu escapar de um cerco muito apertado, e ainda humilhar o Exército de Caxias. No que diz respeito à narrativa que o escritor cria, em torno a uma família, os Da Cunha, que passam as férias em Eldorado em uma grande propriedade, é interessante, mas nada perto de Feliz Ano Velho, a opus magnum do autor, um equilíbrio entre forma e conteúdo muito difícil de se conseguir repetir em um percurso literário.

O ideal seria que o trecho do capítulo 2 que mais enfoca em Lamarca e sua turma fosse extravasado ao livro inteiro, mas seria um desafio quase impossível. Marcelo Rubens Paiva utiliza-se de materiais escritos da ditadura e dos guerrilheiros para ilustrar os trechos da história, e cita muitas referências do Vale do Ribeira. Por curiosidade, Eldorado, antes de chamar-se assim, era conhecido por ser Xiririca da Serra, um sinônimo para algo muito diminuto, distante, caipira no sentido pejorativo.

Marcelo Rubens Paiva fala também dos maneirismos que envolvem a questão “centro e periferia” ou seja, como se comportavam os membros da família da Cunha quando estavam nesse interior, em Eldorado, em relação à população local.

12.

Brasil, uma biografia, de Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling, na medida em que é uma “biografia” do Brasil no melhor sentido do termo, ou seja, que levanta as características fortes dessa “personalidade” Brasil sem ater-se necessariamente à historiografia convencional. Explora detalhes da trajetória do “fazer-se Brasil” que permitem uma compreensão de conjunto, por exemplo, quando as autoras descrevem a construção social do apetite pelo açúcar na Europa que, por sua vez, acompanhou o início da colonização por meio dos engenhos de açúcar, da escravidão massiva, e da divisão colonial dentro de um esquema de capitalismo transnacional a partir do século XVII.

Como escrevem as autoras no título da conclusão: História não é conta de somar, e precisamos nos debruçar sobre ela para encontrar pontos (e pontes) de contato para pensar nossa atuação.

Carlos De Nicola é militante do movimento socioambiental.

Referências


Alfredo Sirkis. Os Carbonários: Memórias da guerrilha perdida. São Paulo, Global, 1994, 378 págs. [https://amzn.to/3TsxnxW]

Bernardo Mançano Fernandes. A formação do MST no Brasil. Petrópolis, Vozes, 2001, 320 págs. [https://amzn.to/3RJj6vu]

Celso Rocha de Barros. PT, uma história. São Paulo, Companhia das Letras, 2022, 486 págs. [https://amzn.to/41pYsUg]

Eder Sader. Quando novos personagens entraram em cena: Experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo 1970-1980. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, 330 págs. [https://amzn.to/3Nyazcd]

Fernando Morais. Lula: Biografia – Volume 1. São Paulo, Companhia das Letras, 2021, 448 págs. [https://amzn.to/3tmzCIo]

João Moreira Salles. Arrabalde: Em Busca da Amazônia. São Paulo, Companhia das Letras, 2022, 424 págs. [https://amzn.to/3NxhMsW]

Kohei Sato. O Ecossocialismo de Karl Marx: Capitalismo, natureza, e a Crítica inacabada à economia política. Tradução: Pedro Davoglio. São Paulo, Boitempo, 2021, 486 págs. [https://amzn.to/3RMUl1e]

Lilia M. Schwarcz e Heloísa M. Starling. Brasil: uma biografia. São Paulo, Companhia das Letras, 2015, 808 págs. [https://amzn.to/485zj3N]

Lucio Magri. O Alfaiate de Ulm: Uma possível história do Partido Comunista Italiano. Tradução: Silvia de Bernardinis. São Paulo, Boitempo, 2014, 402 págs. [https://amzn.to/3GIgCHv]

Marcelo Rubens Paiva. Não és tu, Brasil. Rio de Janeiro, Objetiva, 2007, 312 págs. [https://amzn.to/3NwCTvo]

Sergio Ramírez. Adiós Muchachos: a história da Revolução Sandinista e de seus protagonistas. Tradução: Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro, Record, 2011, 348 págs. [https://amzn.to/3RLW3iz]

Virgínia Mendonça Knabben. Ana Maria Primavesi: histórias de vida e agroecologia. São Paulo, Expressão Popular, 2017, 484 págs. [https://amzn.to/3Ny1pwu]


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