Pix

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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

A entrada da UnionPay no Brasil simboliza mais do que concorrência à Visa e Mastercard: é um passo na desdolarização silenciosa do sistema financeiro. Enquanto Trump ataca o Pix por medo de um Estado eficiente, a China exporta seu modelo de pagamentos como soft power. O desafio brasileiro é aproveitar essa fissura na ordem monetária global para diversificar aliados e moedas, sem trocar um senhor por outro

1.

A entrada da UnionPay, controlada por capital chinês, no mercado brasileiro resulta de uma parceria com a Left (Liberdade Econômica em Fintech), responsável por emissões de cartões de crédito e pela integração entre bancos e maquininhas do sistema de pagamentos. É concorrente dos cartões de crédito de bandeiras como Visa e Mastercard, marcas controladas por empresas dos Estados Unidos.

A UnionPay utiliza o CIPS chinês – ou Sistema de Pagamentos Interbancários Transfronteiriços (Cross-Border Interbank Payment System) –, um sistema de pagamentos criado pelo Banco Popular da China, em 2015, para facilitar transações transfronteiriças em yuan chinês (RMB). Permite bancos e outras instituições financeiras de diferentes países realizarem pagamentos diretamente em RMB, reduzindo a dependência do sistema financeiro internacional, dominado pelo dólar americano e pelo sistema SWIFT.

A fintech Left adota um modelo atraente para uma clientela de esquerda. Anuncia uma parte da receita gerada pelas transações em PIX e cartões de crédito a ser revertida para causas e movimentos sociais. Nesse auto classificado “banco progressista”, o usuário poderá destinar parte dos seus gastos a entidades como o MST (Movimento dos Sem-Terra), entidade não dogmática no uso de instrumentos lucrativos do sistema capitalista para a mobilidade social de seus membros.

Esse evento é anunciado em momento com várias notícias a respeito. No início do mês, os clientes de uma série de bancos digitais ficaram sem acesso ao Pix após um ataque hacker à C&M Software, empresa de tecnologia. Ela conectava os sistemas das instituições financeiras aos do Banco Central do Brasil (BCB).

Os criminosos conseguiram desviar recursos de contas de oito instituições financeiras, no valor de ao menos R$ 800 milhões. O ataque cibernético já é considerado o maior da história dentro do Banco Central do Brasil.

A C&M atende a instituições financeiras de pequeno porte sem acesso direto aos sistemas do Pix. A empresa fazia essa conexão para 22 bancos, instituições de pagamento, cooperativas e sociedades de crédito. Gente, cuidado com banquetas!

O americano Paul Krugman, Nobel de Economia de 2008, escreveu sobre o Pix, meio de pagamento preferido dos brasileiros, sob ataque de Donald Trump. Em seu artigo “O Brasil inventou o futuro do dinheiro?”, publicado no dia 22/07/25, o economista cita vantagens do Pix e mostra por qual razão, nos EUA, esse modelo não vingaria.

Segundo Paul Krugman, o Pix é como uma versão pública do Zelle, o sistema de pagamentos operado por um consórcio de bancos privados dos EUA. Mas, por ser mais fácil de usar, ele está substituindo rapidamente tanto o dinheiro físico quanto os cartões. Há vantagens ainda como a instantaneidade e os baixos custos de transação.

2.

As autoridades brasileiras estabeleceram o Pix ser gratuito para pessoas físicas. O custo de uma transação de pagamento para empresas/comerciantes é de apenas 0,33% do valor da transação, contra 1,13% para cartões de débito e 2,34% para cartões de crédito.

O Pix está, na prática, alcançando muito além do esperado falsamente pelos entusiastas das criptomoedas com a blockchain: baixos custos de transação e inclusão financeira. “Compare os 93% de brasileiros usando o Pix com os 2% dos americanos usuários de criptomoedas para comprar algo ou fazer um pagamento”, sugeriu Krugman.

O Federal Reserve (Fed, o Banco Central dos EUA) publicou um relatório preliminar sobre a possibilidade de criar uma CBDC, sigla em inglês para Moeda Digital do Banco Central, análoga a uma forma digital do papel-moeda. Mas Trump ordenou o Fed frear essa iniciativa!

Segundo o Nobel de Economia, realmente assusta aos republicanos a possibilidade de muitas pessoas preferirem uma CBDC ao invés de contas em bancos privados. A direita americana é comprometida com a ideia de “o governo é sempre o problema, nunca a solução”. Enquanto forem maioria, os republicanos jamais admitirão um sistema de pagamentos operado pelo governo ser melhor diante as alternativas do setor privado.

Eles conservam uma longa tradição histórica. Nos Estados Unidos, a Era do Bancos Livres durou entre 1837 e 1866, quando quase qualquer pessoa podia emitir nota bancária como forma de papel-moeda. Estados, municípios, bancos privados, empresas ferroviárias e de construção, lojas, restaurantes, igrejas e indivíduos imprimiram cerca de 8.000 tipos diferentes de moedas privadas até 1860.

A Lei dos Bancos Nacionais de 1863, durante a Guerra Civil, encerrou o período dos “bancos selvagens” O wildcat banking (sistema bancário selvagem) foi a emissão privada de papel-moeda nos Estados Unidos por bancos licenciados pelas unidades federativas e pouco capitalizados.

Ganharam o apelido de “bancos selvagens” devido à reputação de falta de confiabilidade. Estavam situados em locais remotos e despovoados, considerados mais habitados por gatos selvagens em vez de ser por pessoas.

Uma moeda privada é uma moeda emitida por uma entidade privada, seja um indivíduo, uma empresa comercial, uma organização sem fins lucrativos ou uma empresa comum descentralizada. Ela é contrastada com a moeda fiduciária emitida por governos ou bancos centrais.

A soberania do Estado possui dois pilares fundamentais: um, o monopólio do controle das armas; outro, o monopólio da emissão da moeda nacional.

3.

Ao atacar o Pix, bem como a possibilidade do CIPS chinês se tornar o Sistema de Pagamentos Interbancários Transfronteiriços, inicialmente no BRICS, depois para todos os países do Sul Global, Trump tenta evitar o dólar deixar de ser o padrão monetário global.

O “privilégio exorbitante” permite aos EUA financiar seus déficits comerciais e fiscais emitindo uma moeda globalmente aceita — o dólar — sem sofrer penalizações cambiais ou fiscais imediatas. A confiança nessa moeda era antes sustentada por estabilidade institucional, força do sistema financeiro norte-americano, credibilidade do Fed e do Tesouro.

Contudo, a combinação de déficits elevados, polarização política, uso abusivo de sanções e tarifaços, e crise institucional nos EUA tem fragilizado esse pilar. Se o dólar perder sua credibilidade, os efeitos atingirão todo o mundo dolarizado.

Se investidores globais passarem a duvidar da estabilidade dos ativos denominados em dólar, reduzirão sua exposição aos EUA, repatriarão capital para seus países de origem, ou buscarão “ativos alternativos” mais seguros ou rentáveis – ouro, euro, franco suíço, ativos ESG etc.

Se o dólar se desvalorizar muito, os emergentes experimentarão a apreciação de suas moedas em relação ao dólar e reduzirão a competitividade exportadora e baratearão importações. A instabilidade nos fluxos comerciais e financeiros gerará volatilidade – como já ocorre com o real, uma das moedas mais líquidas e especuladas entre emergentes. Logo, a ausência de uma moeda global confiável criará mais incerteza, não menos.

A maioria dos contratos internacionais (commodities, petróleo, fertilizantes, eletrônicos etc.) é nominada em dólar. Uma mudança repentina ou desvalorização duradoura do dólar gerará uma reprecificação global das commodities, afetando exportadores líquidos como o Brasil. Verão suas receitas nominais em dólar caírem, mesmo com a manutenção dos volumes.

4.

Para o Brasil, suas vulnerabilidades são a alta dolarização passiva da economia em commodities, reservas, contratos financeiros. A volatilidade estrutural do real atrai especuladores de curto prazo, mas repele investimento produtivo. O Banco Central autônomo, mas subordinado ao regime de meta inflacionária, inibe respostas flexíveis como controle de capitais, câmbio competitivo, expansão coordenada.

Criará oportunidades estratégicas se desdolarizar reservas internacionais com gradual alocação em euro, ouro, RMB, e SDRs. Necessita ampliar acordos de compensação de pagamentos bilaterais com China, Argentina, Índia.

E mesmo liderar no BRICS uma rede de pagamentos multilateral, com compensação em moedas locais ou cesta digital (modelo de SDRs do Sul Global). Brevemente, deverá usar o Drex (real digital) como plataforma de contratos programáveis em moeda nacional para reduzir riscos cambiais no financiamento de longo prazo.

Reações possíveis dos emergentes à crise do dólar seriam acordos em moedas locais para reduzir dependência do dólar no comércio bilateral tal como Brasil-China ou Índia-Rússia.

A diversificação de reservas protegerá contra risco cambial e de sanções, por exemplo, Rússia e China aumentam ouro e RMB. A criação de redes de pagamento alternativas – como CIPS (China), SPFS (Rússia), PayNow (Singapura) – evitará sanções e taxas do SWIFT. Moedas digitais soberanas (CBDCs) como Drex (Brasil), e-Rupia (Índia), e-CNY (China) reforçarão a soberania monetária e controle de capitais.

A erosão do privilégio exorbitante dos EUA não leva, por si só, a um mundo mais justo ou multipolar. Leva, no curto prazo, a um mundo mais volátil, com incerteza cambial, instabilidade financeira e maior poder dos grandes emissores de moeda.

O Brasil pode reproduzir sua dependência histórica ou agir estrategicamente para reforçar sua soberania monetária, diversificar seus parceiros e instrumentos financeiros. Deve propor novos pactos monetários no Sul Global, como alternativa aos dois polos imperiais: o decadente norte-americano e o emergente chinês.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/4dvKtBb]


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