Pandora

Wassily Kandinsky, Composição IX, 1936.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por YVES SÃO PAULO*

Trecho da apresentação da nova edição, recém-publicada, da novela de Henry James

O Conde Otto Vogelstein é a personagem ideal para o “tema internacional” que figura em alguns dos contos e romances de Henry James; é o estrangeiro que embarca numa caixa de madeira e metal para atravessar o Atlântico e descobrir diferenças entre americanos e europeu. Desde o princípio tem bem estabelecido o fato de que chegará à nova terra como um estudioso dos costumes e da psicologia deste povo, constantemente conflitando suas visões com o que conhecia previamente, ou seja, com o que conhece a partir de seu mundo.

O que Vogelstein conhecia previamente não somente se encontra marcado por suas próprias experiências, como também por aquelas de seus antepassados, que deixam para sua prole mais que o título de Conde, também um punhado de noções morais. Embebido por este peso do passado do qual não consegue se dissociar, Vogelstein procura compreender seus objetos de estudo, dificilmente conseguindo encaixá-los num padrão, por mais que tente, categorizando ora por “tipo”, ora por “raça”.

Quando conhece a senhorita Pandora Day durante a viagem para o outro lado do oceano, não consegue se valer dos pressupostos europeus para definir a moça que lhe parece completamente diferente de todas as outras que algum dia encontrou, nem mesmo em semelhança àquelas garotas americanas com quem travou contato algumas estações antes, ainda em sua terra natal.

Toda aquela sociedade lhe aparece de modo de modo particular, e a pena de James é sagaz em pintar uma nação que começa a se desenvolver sobre conceitos diferentes dos que regiam as relações europeias. Surge aqui algo da mitologia que cerca o “ser americano” [ser estadunidense, para ser mais preciso], seu povo, sua cultura, a psicologia das pessoas que por lá vivem, seu apresso pela liberdade de modo singular, tão bem representada pela figura da senhorita Pandora Day; a moça que aparentemente consegue tudo por conta própria, ainda que a senhora Bonnycastle diga que eles, da elite de Washington, dão espaço para ela crescer, ao que o senhor Bonnycastle retruca de que há algo do esforço da jovem.

Se a senhorita Day consegue trilhar seus caminhos por conta própria e vencer nesta jovem nação, abandonando sua cidadezinha de origem e buscando os ares eruditos das grandes cidades e da “alta sociedade”, há algo de seu próprio esforço, mas há também algo de permissividade de quem a cerca. James parece deixar em aberto os debates a esse ponto, para que seu leitor consiga se embrenhar em meio à narrativa e por conta própria seguir os passos do estrangeiro, descobrindo quem é esta moça que encanta o protagonista da narrativa, ou melhor, aquele que abre os caminhos para a narrativa, porque sem dúvida a protagonista desta trama é Pandora Day.

Dos olhos do Conde Vogelstein, e da pena de James, não podem escapar as vistas para o que a América produz, seu lado aberto, a senhora Bonnycastle (em seu nome já encontramos uma referência de James ao fato de ser boa anfitriã) com sua casa aberta para todas as pessoas importantes de Washington, até mesmo recebendo o presidente recém-eleito; as maledicências da senhora Dangerfield (também no nome já indicativo de sua personalidade, um campo perigoso), que adverte Vogelstein a tomar certo espaço [de distância] da  senhorita Day; os negros ociosos, há pouco libertos, que vagueiam pelas margens do rio que Vogelstein navega durante piquenique com a senhorita Day.

É uma América, James sutilmente aponta, que abre espaço para algumas pessoas, mas há quem permaneça às margens – como o mordomo que atente à porta da casa onde a senhorita Day permanece por alguns dias –, como os negros avistados pelo jovem germânico que estão sempre neste aspecto de fronteira. A sutileza é uma de suas marcas registradas, enxergando num livro, na posse de uma cadeira, ou num gesto fugaz de uma de suas personagens marcas mais profundas não somente a respeito de quem é aquela figura, como também reflexo do ambiente que habita.

*Yves São Paulo é doutorando em Filosofia na UFBA. É editor da Revista Sísifo e autor do livro A metafísica da cinefilia (Editora Fi).

Referência


Henry James. Pandora. Tradução: Yves São Paulo. Amazon, Kindle, 2021.

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES