A riqueza imobiliária no Brasil

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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

A concentração secular da riqueza imobilizada é uma das explicações para o não desenvolvimento aqui de uma economia de mercado de capitais

A forma de manutenção de riqueza com maior tradição no Brasil é a imobiliária. Esse tipo enriquecimento veio à baila, recentemente, pela revelação da lavagem de dinheiro sujo por uma “familícia” com a compra em “dinheiro vivo” de 51 imóveis dos 107 apropriados por desvio de verba pública para pagamentos de assessores parlamentares.

Em 18 de setembro de 1850, o imperador dom Pedro II assinou a Lei de Terras, por meio da qual decidiu-se a zona rural ser dividida em latifúndios, e não em pequenas propriedades. Ainda hoje, apenas 0,7% das propriedades têm área superior a 2 mil hectares (20 km2), mas elas, somadas, ocupam quase 50% da zona rural brasileira.

Essa concentração secular da riqueza imobilizada é uma das explicações para o não desenvolvimento aqui de uma economia de mercado de capitais, pujante como a norte-americana. Lá, o “sonho americano” de imigrantes poderem “fazer a América” com a conquista de terras pelo genocídio dos nativos propiciou recursos suficientes para muitos investidores comprarem ações de grandes corporações de capital aberto.

O patrimônio líquido, desde 2000, aumentou enquanto as taxas de juros caíram pela tendência deflacionária mundial, provocada pela globalização do comércio com nova divisão internacional do trabalho e pelas tendências demográficas. A análise da consultoria McKinsey – The rise and rise of the global balance sheet [Ascensão sem fim do balanço global] encontrou uma forte correlação inversa entre as médias móveis de cinco anos de patrimônio líquido e taxas de juros nominais após 2000.

Os ativos imobiliários ilustram a base dos ganhos de avaliação e sua relação com as taxas de juros. Os preços dos imóveis aumentaram, aproximadamente triplicando em média nos dez países da amostra da McKinsey, de 2000 a 2020.

No entanto, nem sempre houve o impacto esperado de uma renda de aluguel mais alta, dada sua proporção em relação ao valor da propriedade, avaliada como um custo de oportunidade de imobilizar esse capital em lugar de o vender para obter liquidez destinada às aplicações financeiras. Em alguns lugares, houve reversão dessa expectativa pela queda acentuada dos rendimentos de aluguel.

Os rendimentos de aluguel diminuíram, nesses casos, quando a queda das taxas de juros impactou os custos de financiamento. A queda das taxas de juros desempenhou, em outros casos, um papel decisivo no aumento dos preços dos imóveis, devido à fuga da renda fixa para a variável e, especialmente, em aposta na tendência firme de alta dos preços dos imóveis para serem revendidos e propiciarem ganhos de capital.

A oferta inelástica de terrenos, em solos urbanos de metrópoles, também desempenhou um papel, caso contrário, seria de esperar os aluguéis caírem à medida que as taxas de juros caíssem, em vez de os preços dos imóveis subirem. Austrália, Canadá, França e Reino Unido tiveram o maior crescimento no valor dos imóveis residenciais em relação ao PIB.

Dos ganhos de patrimônio líquido vinculados ao setor imobiliário em nível global, cerca de 55% derivaram de preços mais altos dos terrenos, enquanto 24% foram atribuídos a custos de construção mais altos. Os 21% restantes foram resultado de investimento líquido, ou seja, construção de novas casas ou melhorias nas existentes.

Segundo a McKinsey, metade do crescimento do patrimônio líquido das famílias veio do aumento das avaliações de ações, principalmente na China, Suécia e Estados Unidos. Outros 40% foram provenientes do aumento das avaliações de imóveis.

Os valores habitacionais na Austrália, Canadá, França e Reino Unido cresceram mais de um múltiplo completo do PIB. O patrimônio líquido das famílias também cresceu como resultado do aumento dos depósitos vazados para eles, devido à criação de dinheiro barato e medidas de estímulo (“afrouxamento monetário”), porém, a dívida no setor habitacional permaneceu relativamente estável em relação ao PIB.

Em síntese, avizinha-se um cenário esse longo período de divergência entre baixa de inflação e juros e alta de cotações de ativos pode estar terminando. É possível os altos preços dos ativos eventualmente reverter para retomar sua relação de longo prazo em relação ao PIB, ou seja, maior estabilidade na relação entre valor de estoque e fluxo de renda como aconteceu no passado.

O aumento do investimento na recuperação pós-pandemia, na economia digital ou na sustentabilidade poderá alterar a dinâmica poupança-investimento. A retomada inflacionária poderá pressionar as taxas de juros extraordinariamente baixas em vigor em todo o mundo até a pandemia, antes das quebras das cadeias globais de valor, tanto produtivas quanto comerciais.

Isso levaria a um declínio nos valores de mercado dos ativos imobiliários. Eles sustentaram o crescimento do patrimônio líquido global nas últimas duas décadas.

Cabe perguntar: é saudável para a sociedade os altos preços das casas, em vez do investimento em ativos produtivos, serem o motor do crescimento da economia? Não é improdutiva essa compra-e-venda de propriedade privada sobre estoque da riqueza, construída principalmente a partir de aumentos de preços sobre a riqueza existente?

A habitação de preço acessível, especialmente, se tornou uma reinvindicação cara à geração Milênio. Seus jovens não têm como comprar casas e iniciar famílias tão cedo como acontecia em gerações anteriores. Isso alimenta a inflação dos aluguéis.

Na Alemanha, há uma campanha popular em curso para tomar o controle das grandes empresas de imóveis para locação residencial e transformá-los em propriedade pública. Na Holanda, debate-se a ideia de proibir investidores comprarem casas de baixo custo para explorar a locação.

Em Seul, na Coreia do Sul, houve uma alta de 90% no preço médio de um apartamento e virou uma vergonha nacional as habitações em porões no subsolo sujeito às inundações e mortes de famílias. O líder chinês Xi Jinping fez da habitação a preço acessível uma bandeira-de-luta importante, na sua campanha pela prosperidade geral, ao declarar “casas são para morar, não para especulação”.

E aqui, no Brasil, simplesmente, o desgoverno alterou o nome do programa Minha Casa, Minha Vida e esvaziou o orçamento do subsídio social. Moradias a preço acessível são a questão econômica mais premente para a mobilidade social dos mais pobres.

A mobilidade propiciada pela tecnologia digital e a flexibilidade cada vez maior em trabalho presencial, na era pós-pandemia, podem aliviar parte da pressão. Isto caso ocorra uma fuga dos habitantes das metrópoles para cidades menores.

A demanda por imóveis residenciais sofre o forte impacto de três fatores: (i) demografia; (ii) renda das famílias; e (iii) crédito imobiliário. Por um lado, as tendências demográficas estão se alterando, por outro, renda e crédito têm maior volatilidade nas diferentes fases do ciclo econômico.

O mercado de trabalho na pandemia agravou a deterioração do emprego e do poder aquisitivo da população, afetando negativamente a dinâmica do mercado imobiliário. Também a deterioração das condições de crédito imobiliário, após abril de 2013, antes abundante e relativamente barato, reverteu o financiamento e o boom imobiliário.

Em termos de poder aquisitivo, a maior parte (66%) dos respondentes da pesquisa Raio X FipeZAP+, no 2 º trimestre de 2022, declarou dispor de uma renda domiciliar mensal igual ou inferior a R$ 10.000.

Em termos de objetivo, uma parcela majoritária, mas cada vez menor dos compradores (caiu de 67% no início de 2019 para 55%), declarou intenção de destinar o imóvel para moradia, enquanto o restante (45%) classificou a compra do bem como uma forma de investimento. Entre os optantes por essa finalidade prevaleceu o interesse na obtenção de renda com aluguel do imóvel adquirido (81%) em detrimento da valorização para revenda (19%).

Entre os declarantes com intenção de adquirir imóveis nos próximos meses, 88% dos respondentes declararam como objetivo seu uso para moradia, em particular, com finalidade de morar com alguém (82%). Morar sozinho eram 15% e 3% comprar para outra pessoa morar, ou seja, para ser cedido.

O custo de oportunidade para investidores em Campinas é notável: de jan 2013 a nov 2019, a variação do Índice FIPEZAP de Vendas acumulou 31%, enquanto o CDI variou 91%. Em São Paulo, dada a especulação imobiliária, de jan 2008 a nov 2019, a variação do Índice FIPEZAP de Vendas acumulou 243%, enquanto o CDI variou 212%.

Voltando à questão da compra de imóvel para lavagem de dinheiro, cabe a pergunta: se um corrupto se apropria de um dinheiro vivo de outros é para quê? Não é para colocar em caixas. É para usufruir, por exemplo, morando em mansão luxuosa. Esse símbolo de enriquecimento é atraente para o criminoso. Ele busca ascensão social. Só.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Rede de apoio e enriquecimento. Disponível em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com/2022/09/20/rede-de-apoio-e-enriquecimento-baixe-o-livro/

 

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