Por REGINALDO RODRIGUES RAPOSO
Apresentação do livro recém-editado de Carl Dahlhaus
1.
Carl Dahlhaus nasceu em Hannover em 1928 e foi um dos mais importantes musicólogos do século XX. Como representante da estética musical, Carl Dahlhaus tornou mais claros os vínculos algo congênitos entre a música, a filosofia e a literatura. Entre os historiadores da filosofia da música, ele foi o mais preparado para substanciar teses histórico-estéticas, oferecendo observações analíticas concretas como corroboração; entre os musicólogos, foi quem assumiu esse mesmo rigor na leitura de textos filosóficos, tão intrincados quanto relevantes para a atividade artística.
A partir de 1967, ocupou a cadeira de História da Música (sucedendo Hans Heinz Stuckenschmidt) na Technische Universität (tu) em Berlim, onde faleceu em março de 1989. Escreveu livros sobre história, estética e teoria musical, críticas teatrais[i] e musicais, e centenas de artigos, ensaios e monografias a respeito de autores “da Idade Média ao Pós-modernismo, de edições acadêmicas ao jornalismo polêmico”.[ii]
Os escritos e o pensamento sobre a música do período que vai do clássico-romântico ao expressionismo alemão — da primeira à segunda escola de Viena — são particularmente objetos centrais em sua obra. Foi também editor e organizador de vários livros e coleções, entre elas a Neues Handbuch der Musikwissenschaft [Novo manual da musicologia] em treze volumes, iniciada pela editora Athenaion e posteriormente assumida e publicada pela editora Laaber entre 1980 e 1995, e cujo célebre sexto volume, Die Musik des 19. Jahrhunderts [A música do século XIX] é de sua autoria.
Entre as publicações mais citadas e comentadas pela musicologia e pela filosofia da música em língua portuguesa constam: Musikästhetik [Estética musical], publicada pela primeira vez em 1967; seus vários escritos sobre Richard Wagner, entre eles Richard Wagners Musikdramen [Os dramas musicais de Richard Wagner], publicado pela primeira vez em 1971; a coletânea Schönberg und andere: Gesammelte Aufsätze zur Neuen Musik [Schönberg e outros: ensaios reunidos sobre a Nova Música], de 1978, editada pela Schott; Ludwig van Beethoven und seine Zeit [Ludwig van Beethoven e seu tempo], de 1987; e Klassische und romantische Musikästhetik [Estética musical clássica e romântica], do ano seguinte, ambos pela Laaber.
Autor até então inédito no Brasil, Carl Dahlhaus teve uma única obra inteiramente sua publicada em língua portuguesa: o livro Estética musical, traduzido por Artur Morão, publicado em Lisboa em 1991. Isso torna a presente tradução de A ideia da música absoluta (Die Idee der absoluten Musik, lançado em alemão em 1978 e reeditado algumas vezes pela editora Bärenreiter) a primeira publicação brasileira de um livro deste que é por consenso um nome fulcral dos estudos musicais no século xx — “o musicólogo mais importante de nossa geração”.[iii]
Vale mencionar também a extraordinária publicação em dez volumes de seus escritos completos, Carl Dahlhaus. Gesammelte Schriften, também pela editora Laaber, a partir do ano 2000. Tal como consta na quarta capa da edição, “como quase nenhum outro musicólogo, Carl Dahlhaus, através de sua obra, influenciou o desenvolvimento da historiografia científica musical moderna assim como a literatura sobre música como um todo”.
2.
A ideia da música absoluta articula em dez capítulos questões estético-musicais concernentes a este que foi um tema marcante no meio musical do século xix e que foi extensamente discutido pela musicologia do século xx. Como o próprio Carl Dahlhaus diz, ao revisitar a questão alguns anos depois da primeira publicação de seu livro, “a ideia da música absoluta surgiu de uma barafunda quase labiríntica de circunstâncias”,[iv] além de profusas fontes documentais das mais contrastantes, mas surpreendentemente atinentes, sejam elas filosóficas ou literárias.
Por exemplo, entre Immanuel Kant e Ludwig Tieck, Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Richard Wagner, ou Novalis e Stéphane Mallarmé, Dahlhaus aponta no livro afinidades inusitadas — que o distanciamento geográfico ou temporal tendia a obscurecer — no que se refere a pressupostos[v] a partir dos quais tais figuras lidavam com questões de interesse musical então prementes.
Para Carl Dahlhaus, é no esclarecimento dessas mesmas relações e sobretudo desses pressupostos que reside a possibilidade de uma compreensão ao mesmo tempo precisa, ampla e crítica do desenvolvimento permeado de “desvios” (Umwege) do conceito de música absoluta, que requer antes de tudo o olhar de um historiador das ideias.
Ademais, o livro, como evidência do conhecido virtuosismo do autor na articulação das referências e de sua escrita que não subestima o fôlego do leitor, faz seu título e tema ressoarem algo da provável matriz etimológica latina “absolutus”, que reverbera elementos do discurso sobre a modernidade filosófica: separado, abgelöst, unbedingt, não condicionado etc.[vi]
Sopesando o que ele denomina “metafísica romântica da música instrumental” e a filosofia que se desdobra principalmente a partir do idealismo alemão – a recepção de Ludwig van Beethoven e o discurso estético-musical (sistemático ou não) do século xix – Carl Dahlhaus discorre sobre o alcance da ideia da música absoluta e a dimensiona também para além de uma música “separada”, “autônoma”, de “depois do fim da arte” (para dialogar com Arthur Danto,[vii] contemporâneo de Dahlhaus), como um sentido meramente denotativo da expressão e moldado historicamente[viii] — algo marcante desde a leitura do título do primeiro capítulo: “Música absoluta como paradigma estético”.
A tradução, por sua vez, esforça-se para preservar características do texto original, como a estrutura sintática do alemão de Carl Dahlhaus, tomando como pressuposto a ordem rigorosa e eloquente com que Carl Dahlhaus expõe os elementos argumentativos.
A opção por manter determinadas estruturas mais complexas do original, talvez em detrimento de uma compreensão mais imediata (posto que por vezes não tão profunda), justifica-se sobretudo por certo enlevo que se presume no autor justamente nessa escrita dilatada e contínua, que, diante da trama brilhantemente identificada, define de maneira universal uma interação intensa e também contínua entre a prática musical regular e o pensamento sobre a arte musical enquanto atividade humana; e Carl Dahlhaus o faz de “modo fascinante”,[ix] como diz Hermann Danuser, editor de suas obras completas — o mesmo fascínio presente em A ideia da música absoluta, obra ricamente elaborada e plena de alma [seelenvoll].
Além disso, a presente edição conta também com o acréscimo de um pequeno trecho de 1982[x] que aparece pela primeira vez no volume 10 de Neues Handbuch der Musikwissenschaft [O novo manual da musicologia], na seção dedicada à “Estética e estética musical”, que revisita a ideia da música absoluta, sintetizando a questão e trata especificamente de algo que figurou como uma “incompreensão histórica”.
Essa “incompreensão histórica”, no entanto, bastante profícua do ponto de vista histórico-musical, como mais um dos pressupostos (filosóficos) para a concepção de uma “música absoluta”. Trata-se da fórmula do “aprazimento desinteressado” presente na terceira Crítica de Kant (1790) — como algo relativamente pouco explorado em A ideia da música absoluta, o que talvez contrarie a intuição filosófica mais imediata diante de seu título.[xi]
*Reginaldo Rodrigues Raposo é doutorando em filosofia na USP.
Referência

Carl Dahlhaus. A ideia da música absoluta. Tradução: Reginaldo Rodrigues Raposo. São Paulo, Editora Zain, 2025, 224 págs. [https://amzn.to/4kTz5Cj]
[i] Dahlhaus teve uma experiência em dramaturgia em Göttingen durante os anos 1950, quando escreveu diversos textos não musicológicos, principalmente críticas teatrais.
[ii] Stephen Hinton, “The Conscience of Musicology: Carl Dahlhaus (1928-1989)”, Musical Times, v. 130, n. 1762, p. 737, 1989.
[iii] György Ligeti, “Gedenkworte für Carl Dahlhaus”, em Orden pour la mérite für Wissenschaften und Künste, vol. 22: Reden und Gedenkworte 1987-1989, 1992, p. 159.
[iv] Cf. Carl Dahlhaus, “Ästhetik und Musikästhetik”, em Systematische Musikwissenschaft (Neues Handbuch der Musikwissenschaft, vol. 10, 1982, pp. 81-108).
[v] No célebre texto de advertência de seu livro Musikästhetik [Estética musical], ele afirma que “a estética musical, que foi no século xix a instância suprema do pensamento sobre a música, encontra-se hoje, entre seus detratores, exposta à suspeita de ser especulação ociosa, pairando demasiado acima da realidade musical para lhe dizer respeito ou nela intervir. Não se deve, porém, ignorar que os juízos sobre a música — e até sobre a atividade musical — são sustentados por pressupostos estéticos, de que importaria tomar consciência, quer para deles se certificar quer para a seu respeito ganhar uma distância crítica”. (Carl Dahlhaus, Estética musical, 2003, p. 9, grifo nosso).
[vi] Cf. Herbert Schnädelbach, “Hegel. Kunst und Musik”, em Musik in der deutschen Philosophie: eine Einführung,2003, p. 58; sobre a relação entre o absoluto e a absolvência do ponto de vista histórico-filosófico na consideração da particularidade da modernidade filosófica: Martin Heidegger, “Hegels Begriff der Erfahrung”, em Gesamtausgabe, vol. 5: Holzwege, 1977, pp. 115-208, mais especificamente pp. 135-7.
[vii] Em After the end of art [Após o fim da arte], de 1997, Arthur Danto retoma o tema hegeliano do “fim da arte” à luz da questão da autonomia da arte no século xx.
[viii] A expressão tem lastro na documentação histórica, assim como na própria concepção da ideia de obra musical sob a fórmula opus perfectum et absolutum no século xvi (Musica Nicolai Listenii, 1549, no fac-símile editado por G. Schünemann, 1927, cap. 1. Cf. Carl Dahlhaus, Estética musical clássica e romântica, em Gesammelte Schriften, vol. 5, 2003, p. 394, e nota do editor na p. 887). No entanto, como Dahlhaus observa no início do segundo capítulo do presente livro, ela aparece pela primeira vez como absolute Musik em 1846, sob a pena de Wagner, fazendo referência a Beethoven.
[ix] Carl Dahlhaus, Gesammelte Schriften in 10 Bänden,2000, vol. i, p. 653.
[x] Carl Dahlhaus, “Ästhetik und Musikästhetik”, em Systematische Musikwissenschaft (Neues Handbuch der Musikwissenschaft, vol. 10, 1982, pp. 81-108).
[xi] Agradeço ao professor Sidney José Molina Junior (FAAM), ao professor Marco Aurélio Werle (USP), e à FAPESP (processos 2022/12666-2 e 2019/27194-6) – igualmente essências para a realização deste trabalho.
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