Eleição em Porto Alegre – um programa mínimo

Marina Gusmão, Cobra doce.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por TARSO GENRO*

Porto Alegre já foi um ícone da esquerda mundial, que projetou a cidade em todo o mundo.

O que tem de muito novo no cenário da luta democrática, em escala global, é que a formação de um novo bloco hegemônico reacionário ou conservador, antidemocrático e tendencialmente fascista, se dá – nos dias de hoje – através do deslocamento do seu centro de poder interno – até então ocupado pelo conservadorismo e pela direita tradicional, para o domínio de uma extrema direita que, através da redes sociais e dos porões da internet (nos seus meandros do crime organizado) dão o “tom” e o “subtom”, para uma parte significativa das classes dominantes nacionais.

Estas abandonaram todas as simulações do apreço à democracia e se deslocaram para o campo do fascismo: um fascismo mais rude e mais duro, que dispensa quaisquer formulações intelectuais e se prepara para uma nova luta direta contra o liberalismo democrático.

As modulações conceituais para definir o que é “esquerda” e o que é “direita” mudam, segundo a natureza dos conflitos econômico-sociais e culturais, fluentes em cada território da política. Em cada contexto histórico a decisão eleitoral das “partes” da sociedade – representadas pelos partidos e frações de partidos que atuam em cada cenário – nunca resulta de um cálculo geométrico que coteje – de forma mecânica – as ideias “majoritárias” ou “minoritárias”, que opõem politicamente grupos e classes: os contingentes eleitorais organizam suas afinidades por uma série de motivos – próximos e remotos – fixos ou variáveis, que desafiam qualquer padrão de análise que até ali poderia ter alguma validade.

Penso que o corte político local, que separa homens e mulheres, entre-classes e intraclasses, hoje é – muito menos – a posição “objetiva” que estes grupos e classes ocupam na hierarquia social de uma cidade ou de um estado e – muito mais – a sua subjetividade, mais, ou menos propensa, a acordar com o fascismo contra a democracia ou optar pelo caminho democrático para enfrentar a hidra fascista.

Se isto está correto, o corte decisivo dos sistemas de alianças estaria situado, então, entre quem estaria contra a massa de cidadãos que não tolera a infecção do fascismo – como mal radical que degrada a condição humana ao mais baixo do que espécie pode chegar – e quem não aceita mais a democracia liberal e passa a compactuar com a ditadura e a política do medo.

Porto Alegre já foi um ícone da esquerda mundial, que projetou a cidade em todo o mundo. É a mesma cidade que hoje é dirigida por um prefeito totalmente estranho àquela tradição, eleito em eleições livres, que é negacionista e privatista, apoiador de um ex-presidente que nos envergonha em todo o mundo, que estimulou a negação da ciência e que foi derrotado, na cidade de Porto Alegre, por Lula no segundo turno das eleições presidenciais, por sete pontos de diferença (Lula 53,50 %, Jair Bolsonaro 46,50 %).

Tais percentuais mostram que a cidade ainda vive e tem memória e que aqui seria um campo propício para uma grande unidade popular e democrática, que resgatasse – remodelada pelo tempo e pelas novas mutações tecnológicas – a utopia de uma cidade democrática, aberta, culta e participativa, que já foi modelo para o mundo.

Considerando que a extrema direita – hoje – colonizou a direita tradicional e dirige, politicamente, partes do nosso país e do mundo, o resultado das eleições presidenciais em Porto Alegre deixou claro que mesmo em condições extremas e adversas Porto Alegre não se transformou – como foi dito no curto reinado de Bolsonaro – numa” cidade de direita”. Muito menos de esquerda, todavia. O que pode caracterizar Porto Alegre, por este indício eleitoral, é apenas (e é muito para nos guiar na conjuntura da eleição) que numa hipotética intentona fascista contra o Estado democrático de direito sua maioria não seria pró-fascismo e não admitiria uma ditadura de qualquer tipo para governar nossas vidas.

Reporto-me, com todo respeito aos companheiros dirigentes do campo de esquerda e centro-esquerda de Porto Alegre e ao centro democrático, fragmentado em todos os partidos tradicionais, que os movimentos táticos que os Partidos do campo progressista fizeram, até agora – em direção às eleições municipais – estão adiando de forma imprudente as negociações políticas estratégicas (programáticas e de unidade política) para as eleições municipais do próximo ano.

Falo em “partidos progressistas” de forma proposital, assim como falo em “campo antifascista” também propositalmente e faço-o porque o “progressismo” só pode existir, hoje, a partir da experiência da democracia social e do compromisso irrestrito com a democracia política.

O que tenho sustentado é que, ao contrário do fascismo, que nas suas alianças com a direita tradicional e a extrema direita, mostrou que pode ser ao mesmo tempo autoritário e liberal-radical – “libertarista” em termos de economia – que soube unir os fascistas e os conservadores num pacto de morte durante a pandemia, saibamos nós apresentar hoje um programa mínimo de regeneração da cidade, com premissas ideológicas simples e diretas e princípios programáticos que façam as pessoas recuperar o gosto pela política e retomar as virtudes da solidariedade.

E, para isso, precisamos acordar as regras da unidade programática, buscando depois uma candidata ou candidato, ao mesmo tempo capaz de nos unificar e de fazer a cidade vencer a resignação ao autoritarismo dos “síndicos” sem programa e sem iluminação criadora.

*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios). https://amzn.to/3ReRb6I

A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • O que significa dialética do esclarecimento?cultura maleta 19/09/2024 Por GILLIAN ROSE: Considerações sobre o livro de Max Horkheimer e Theodor Adorno
  • Armando de Freitas Filho (1940-2024)armando de freitas filho 27/09/2024 Por MARCOS SISCAR: Em homenagem ao poeta falecido ontem, republicamos a resenha do seu livro “Lar,”
  • Pablo Marçal na mente de um jovem negroMente 04/10/2024 Por SERGIO GODOY: Crônica de uma corrida de Uber
  • Coach — política neofascista e traumaturgiaTales-Ab 01/10/2024 Por TALES AB´SÁBER: Um povo que deseja o fascista brand new, o espírito vazio do capitalismo como golpe e como crime, e seu grande líder, a vida pública da política como sonho de um coach
  • Annie Ernaux e a fotografiaannateresa fabris 2024 04/10/2024 Por ANNATERESA FABRIS: Tal como os fotógrafos atentos ao espetáculo do cotidiano, a escritora demonstra a capacidade de lidar com aspectos da civilização de massa de maneira distanciada, mas nem por isso menos crítica
  • Mar mortocultura cão 29/09/2024 Por SOLENI BISCOUTO FRESSATO: Comentário sobre o livro de Jorge Amado
  • UERJ afunda em um Rio de crisesUERJ 29/09/2024 Por RONALD VIZZONI GARCIA: A Universidade Estadual do Rio de Janeiro é um lugar de produção acadêmica e orgulho. Contudo, ela está em perigo com lideranças que se mostram pequenas diante de situações desafiadoras
  • Hassan NasrallahPORTA VELHA 01/10/2024 Por TARIQ ALI: Nasrallah entendeu Israel melhor do que a maioria. Seu sucessor terá que aprender rápido
  • Guilherme BoulosValério Arcary 02/10/2024 Por VALERIO ARCARY: A eleição em São Paulo é a “mãe” de todas as batalhas. Mesmo se perder em quase todas as capitais fora do Nordeste, se a esquerda ganhar em São Paulo equilibra o desfecho do balanço eleitoral
  • Direito dos trabalhadores ou lutas identitárias?Elenira Vilela 2024 30/09/2024 Por ELENIRA VILELA: Se ontem dizíamos “Socialismo ou barbárie”, hoje dizemos “Socialismo ou extinção” e esse socialismo contempla em si o fim de toda forma de opressão

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES