Por PAUL KRUGMAN*
A desigualdade dos EUA é menos uma questão de mercado e mais uma questão de poder, onde normas sociais e políticas moldam a distribuição de renda
A importância do poder do trabalhador
Após a Segunda Guerra Mundial, as disparidades de renda na América permaneceram relativamente estreitas por mais de uma geração. Alguns eram ricos e muitos eram pobres, mas não havia a extrema desigualdade, a fragmentação econômica e a guerra de classes tal como veio a existir depois.
Então, começando por volta de 1980, a desigualdade aumentou, chegando a níveis incrivelmente altos tal como se vê atualmente. Como ficou documentado na postagem anterior (Parte I), não apenas o 1% superior na distribuição de renda se afastou dos 99% restantes, mas dentro do 1% superior o 0,1% superior, o 0,01% superior e o 0,001% superior também se afastaram daqueles que ganham menos do que eles.
Ora, essa concentração de riqueza no topo está corrompendo a política nos Estados Unidos. A afirmação de Elon Musk de que Trump não teria vencido em 2024 sem ele é bastante plausível. Ademais, aqueles que bajulam Trump doando milhões para seu fundo inaugural e comprando suas criptomoedas estão claramente recebendo tratamento favorável.
Esse ponto ainda será discutido, contudo na presente postagem dar-se-á continuidade à discussão já iniciada na postagem anterior sobre as causas do aumento da desigualdade na América.
Na postagem anterior, afirmou-se que a razão mais importante para o aumento da desigualdade ocorrida desde 1980 foi uma mudança no poder político no poder de barganha dos trabalhadores norte-americanos. Parece certo que globalização e a mudança tecnológica contribuíram para que acontecesse. Contudo, os números que dão expressão aos seus efeitos simplesmente não justificam as alegações de que se constituem nas principais razões para o aumento da desigualdade na América.
Vai-se, agora, por isso, começar a desenvolver o argumento de que a causa principal do aumento da desigualdade é política. A maior parte da presente postagem, no entanto, versará sobre os fatores impulsionadores do aumento da desigualdade entre 1980 e 2000.
Por que ficar aí? Porque é requerido mais espaço e mais tempo para discutir adequadamente os efeitos da “financeirização” e da ascensão de fortunas gigantes, as quais foram propiciadas pelas novas tecnologia. Tais efeitos começaram a se manifestar principalmente depois de 2000; sabe-se já que aceleraram a concentração de riqueza no topo. Eis que o aumento da desigualdade antes de 2000 preparou o terreno para o momento oligárquico que os Estados Unidos vivem agora.
Os seguintes pontos serão discutidos nesta postagem: (i) Porque o poder é a chave para se reconstruir a história da desigualdade; (ii) porque os sindicatos são importantes; (iii) porque ocorreu a ascensão do CEO imperial.
Porque o poder é tão importante
Até a década de 1940, a economia institucional, que entre outras coisas dava muita ênfase às relações de poder, era uma vertente importante do pensamento econômico americano. Mas depois da guerra, por várias razões – incluindo, ironicamente, a ascensão da economia keynesiana (mas isso é outra história) – ela foi amplamente expulsa do seu domínio pelos modelos matemáticos.
Nesses modelos, os quais indivíduos maximizadores de lucro e utilidade levam os mercados ao equilíbrio; por isso, esse tipo de análise deixa pouco ou nenhum espaço para os economistas falarem sobre os efeitos do poder. Além disso, não parecia haver muita razão para gastar muito tempo analisando a desigualdade de renda, em parte porque a desigualdade era relativamente baixa e em parte, convenha-se, porque os economistas acadêmicos estavam sob pressão para evitar que fosse tomados como “socialistas”.
Mas o aumento da desigualdade desde 1980, além de obrigar o aumento do foco sobre esse tema, deixou claro que as histórias simples contadas com a ajuda da oferta e da demanda são muitas vezes inadequadas para explicar certos fenômenos econômicos. Certamente, se mostram assim para explicar por que as pessoas recebem quantias diferentes de renda.
Então, é preciso tratar de quatro evidências-chaves, as quais fizeram com que muitos economistas norte-americanos começassem a levar a sério o papel do poder na distribuição de renda.
Os salários rígidos
Em 1992, Truman Bewley, um economista de Yale que havia se especializado em modelos econômicos altamente matemáticos, ficou obcecado com uma questão que deu origem ao título de um livro de 1999: Why Wages Don’t Fall During a Recession (Porque os salários não caem durante uma recessão). Como durante as recessões costuma existir muito mais pessoas procurando emprego do que o número de empregos disponíveis, parece adequado pensar que os salários deveriam cair.
Nessas condições, os empregadores poderiam claramente contratar novos trabalhadores com salários substancialmente mais baixos em relação ao que estão pagando à sua força de trabalho atual. Assim, eles substituiriam os trabalhadores existentes por funcionários novos e mais baratos – poderiam, também, exigir cortes salariais dos trabalhadores contratados já que estes teriam dificuldade em encontrar novos empregos.
Então, por que os salários não caem? O fato é que eles não caem, exceto em condições muito extremas. Por exemplo, um estudo de 2015 sobre a distribuição das mudanças salariais em períodos de alto desemprego descobriu que os salários não caíram nos anos que se seguiram imediatamente após a crise financeira global. No gráfico seguinte, o eixo vertical é a percentagem de trabalhadores que receberam um determinado aumento salarial (em logs) de 2009 a 2010. Por exemplo, uma parcela de 0,2 dos trabalhadores (20%) não viu nenhuma mudança, enquanto 10% receberam aumentos salariais modestos:

Como se vê no gráfico acima posto, houve um grande pico em zero: eis que muitos trabalhadores não receberam aumento salarial. Mas quase nenhum enfrentou um corte salarial real. Por quê?
Bewley fez algo muito incomum para um economista: ele saiu e conversou com as pessoas, especialmente com os empresários. O que eles disseram a ele foi que os cortes salariais eram muito ruins para o moral dos trabalhadores, que eles se sentiriam desprezados e que, por isso, a economia de custos com os cortes salariais não valia a pena.
Em outras palavras, as percepções dos trabalhadores sobre a justiça distributiva são muito importantes; elas afetam os salários que recebem. Mas o que determina o que eles consideram justo?
A grande compressão
Como se explicou anteriormente, a distribuição relativamente igualitária de salários e outras rendas que prevaleceu por várias décadas após a Segunda Guerra Mundial não evoluiu gradualmente. Aconteceu mais ou menos repentinamente, com uma rápida compressão das diferenças de renda durante a guerra e talvez alguns anos depois.
Os economistas Kopczuk, Saez e Song obtiveram uma imagem muito útil da mudança na desigualdade salarial ao longo do tempo com base nos dados da previdência social. Eles usam o coeficiente de Gini – que, neste estudo, não se apresenta como a medida favorita, mas boa o suficiente para os propósitos desta postagem – para medir a desigualdade; mostraram, assim, uma queda acentuada seguida por período prolongado de estabilidade e, em seguida, um grande aumento após 1980, tal como foi visto no poste anterior. Lembre-se, um Gini menor significa menor desigualdade:

Houve um declínio vertiginoso na desigualdade durante a década de 1940. Esse declínio pode ser atribuído em grande parte aos controles do tempo de guerra, que limitaram os aumentos salariais, mas eram muito mais vinculativos para os trabalhadores com salários mais altos. Esses controles foram suspensos em 1947, mas reimpostos durante a Guerra da Coréia.
Portanto, a queda inicial na desigualdade não é difícil de explicar. O que os economistas acham muito mais intrigante é o fato de que a desigualdade salarial não voltou ao “normal” depois que os controles foram suspensos. Em vez disso, salários relativamente iguais persistiram por décadas, não voltando aos níveis anteriores da “grande compressão” até o final dos anos 1980.
De alguma forma, um período de relativa igualdade salarial parece ter criado um novo normal para as diferenças salariais, que se tornou o padrão por várias décadas. Mais tarde se discutirá sobre o que impôs as novas normas (adiantando, os sindicatos foram muito importantes para que isso ocorresse), mas por enquanto o ponto a ser acentuado é que a desigualdade de renda parece ser menos determinada pela mão invisível do mercado do que pelas mãos visíveis dos próprios trabalhadores e empregadores no processo de negociação, de modo bem diferente do que surge o curso de introdução à Economia.
Mas se as novas normas levaram a salários mais altos na base, isso não deveria ter levado o nível de desemprego? Bem, isso leva à próxima evidência.
O salário-mínimo dos EUA
Os Estados Unidos têm um salário-mínimo nacional de US $ 7,25 por hora, mas esse valor não é aumentado desde 2009. Nos anos seguintes, a inflação corroeu esse salário em termos reais a ponto de torná-lo provavelmente irrelevante para a economia.
No entanto, muitos estados e algumas cidades têm seus próprios salários-mínimos; e eles são muitas vezes muito mais altos do que o nacional. Eis uma consequência não intencional, mas útil desse fato: quando os governos locais aumentam os salários-mínimos, isso fornece evidências sobre os seus efeitos. Se Nova Jersey aumentar o seu salário-mínimo enquanto a Pensilvânia não o faz, uma comparação das tendências de emprego nos condados vizinhos fornece uma estimativa do efeito do salário-mínimo sobre o emprego. O curso de introdução à Economia diz que um salário-mínimo mais alto deveria produzir desemprego; ora, isso acontece?
David Card e Alan Krueger fizeram um estudo pioneiro com base nessa percepção no início dos anos 1990 e descobriram que o aumento do salário-mínimo de Nova Jersey não teve efeito visível sobre o nível dos empregos. Desde então, houve muitos, muitos desses estudos, e eles confirmam o resultado de Card-Krueger.
O que esses resultados dizem ao entendimento possível da desigualdade de renda? Não parece evidente que os salários-mínimos em si respondam por uma grande parte da história do aumento da desigualdade. Mas o seu fracasso em destruir empregos nos diz que há muito mais “espaço de manobra” nos salários do que sugerem as explicações baseadas em oferta e demanda. E que, portanto, mais espaço deve ser concedido ao poder e as normas sociais já que eles desempenham papéis importantes.
Ora, ademais, há funcionários que basicamente definem seu próprio salário…
A remuneração dos executivos
Como uma empresa decide quanto pagar ao CEO e aos altos executivos em geral? Ora, ela não pode olhar apenas para a taxa de salário vigente no mercado. Mesmo um cínico tem que admitir que alguns CEOs são melhores do que outros; ademais, o valor do talento de um determinado executivo pode depender das especificidades da empresa para a qual ele foi contratado. Na prática, a remuneração dos executivos é definida por conselhos de remuneração nomeados pelo… próprio poder executivo das empresas.
O potencial para autonegociação sempre foi óbvio. Ainda assim, na década de 1960, os CEOs recebiam “apenas” cerca de 20 vezes mais do que seus trabalhadores. Desde então as coisas, bem, mudaram. Em sequência, apresenta-se um gráfico que mostra a proporção entre o salário do CEO e os ganhos dos trabalhadores típicos:

Não parece haver uma explicação plausível para essa explosão salarial em termos de globalização ou tecnologia. Então, há outra coisa, que presumivelmente envolve o poder e as normas sociais, produziu essa mudança.
O papel dos sindicatos
O quebra-cabeça associado à “grande compressão” não se deve ao fato de que ela aconteceu – eis que preços, salários e muitos outros aspectos da economia estavam sujeitos a extensos controles governamentais, não apenas entre Pearl Harbor e o Dia V-J, mas em 1947 e novamente de 1950 a 1953. O enigma vem do fato de que persistiu por tanto tempo. O que sustentou o novo normal?
Grande parte da resposta, certamente, foi a existência de um poderoso movimento sindical. A filiação sindical disparou durante o final dos anos 1930 e aumentou ainda mais durante a guerra. A sindicalização então diminuiu gradualmente, mas ainda era um quarto da força de trabalho em 1973:

Mesmo esses números subestimam o efeito que os sindicatos tiveram sobre os ganhos dos trabalhadores americanos. As empresas em que os trabalhadores não eram sindicalizadas tinham também de se preocupar já poderia existir esforços para construir esse tipo de organização; por isso, muitas delas pagavam os seus trabalhadores como se fossem sindicalizados – observa-se, pois, uma espécie de efeito penumbra cobrindo até mesmo os sindicalizados. Os sindicatos também estabeleceram normas que tendiam a afetar os salários, mesmo quando não havia ameaça imediata de uma eleição sindical.
Um livro clássico publicado em 1984 intitulado What do Unions Do? (O que os sindicatos fazem?), escritopor Richard Freeman e James Medoff, argumentou que os sindicatos são uma força poderosa na redução da desigualdade salarial. Os sindicatos não apenas aumentam os salários de seus membros, mas também tendem a aumentar mais os salários dos trabalhadores com menores ganhos e com menos educação formal. Há uma enorme literatura de acompanhamento do fenêmeno que é difícil resumir; contudo pode se apresentar algumas ressalvas, por exemplo, é notório que o quadro apresentado sobre a situação das mulheres é menos claro do que aqueles referente aos homens.
O que é triste e irônico vem do real. No mesmo momento em que Freeman e Medoff estavam documentando as maneiras pelas quais os sindicatos tornavam a América menos desigual e mais justa, o poder sindical estava entrando em colapso rapidamente.
Por que a sindicalização diminuiu? Suspeito que muitos leitores presumirão que os sindicatos costumavam ser fortes porque os grandes estavam principalmente na indústria de transformação; quando os Estados Unidos começaram a se desindustrializar, eles perderam força. Se a desindustrialização ocorreu de um modo quase inevitável, o declínio dos sindicatos não seria, também, inevitável?
A resposta é “não”. É verdade que a indústria costumava ser mais sindicalizada do que o resto do setor privado – 32% em 1980, contra 15% em outros setores. Mas a indústria agora é muito menos sindicalizada do que era naquele tempo. Ainda mais ao ponto, a razão pela qual os grandes sindicatos costumavam estar na indústria era que empresas industriais como General Motors e Ford também eram as maiores empregadoras.
Hoje, os EUA são predominantemente uma economia de serviços na qual os maiores empregadores são empresas de varejo: a Walmart tem 1,6 milhão de trabalhadores, a Amazon possui 1,1 milhão. Não há nenhuma razão fundamental para que não haja sindicalização nessas empresas – na verdade, a UPS, que é o terceiro maior empregador, consta como uma empresa em que os trabalhadores são, sim, sindicalizados. Mas essas empresas cresceram em um ambiente político hostil à organização sindical e permissivo em relação aos esforços corporativos para esmagar os sindicatos, muitas vezes usando táticas ilegais.
Ademais, veja-se, os sindicatos continuam a representar muitos trabalhadores em outras economias avançadas (que também têm uma desigualdade muito menor do que a dos Estados Unidos).
Portanto, se os sindicatos eram uma força importante que limitava a desigualdade, o seu declínio se deve essencialmente a uma fator político. Por que o ambiente político mudou tão fortemente contra os sindicatos nos EUA? Veja-se para tanto o próximo poste…
Os CEOs imperiais
Em 1955, a Fortune publicou um artigo intitulado How top executives live (Como vivem os principais executivos). A resposta, é claro, foi que eles vivem “muito bem” – mas não tão bem quanto 20 anos antes. Em geral, a vida do CEO parece incrivelmente modesta para os padrões atuais. Quão importante vem a ser levar em conta fatos culturais?
Obviamente, o universo material e cultural da elite empresarial foi totalmente transformado. Mas por quê? É difícil ver aí os efeitos da globalização ou de tecnológica. Também não está claro por que, para as corporações, tornou-se mais importante agora ter bons líderes do que no passado.
Em geral, as pessoas que determinam a remuneração dos executivos – o conselho corporativo ou um comitê de remuneração especialmente nomeado – não têm (a) o conhecimento nem (b) o incentivo para determinar o que o CEO deve receber. Além disso, muitas vezes são nomeadas pessoas intimamente ligadas pessoalmente aos CEOs. Então, numa primeira aproximação, pode-se dizer que os CEOs determinam seu próprio salário. Por que, então, eles “apenas” se sentiam capazes de pagar a si mesmos 20 vezes mais do que seus trabalhadores na década de 1960, mas dez ou mais vezes mais hoje?
Novamente, a explicação mais provável é política. Antes da década de 1980, grandes pagamentos aos executivos podiam gerar uma grande reação pública que abalava o prestígio das empresas. Os próprios executivos podem ter sido menos inclinados a cortejar o rancor quando enfrentavam altas taxas marginais de impostos, de modo que não podiam manter muito do que ganhavam.
Mas os ventos políticos mudaram e pode muito bem ter havido uma crescente sensação de segurança no que se refere às grandezas das remunerações. Se todo mundo está negociando grandes acordos salariais, por que não se pode fazer o mesmo?
Assim, os Estados Unidos se tornaram uma nação de corporações governadas por CEOs imperiais que pagam a si mesmos quantias incrivelmente grandes. Mas mesmo isso não é bem o fim da história.
A oligarquia atualmente existente
A partir de 2000, a América viu o surgimento de fortunas verdadeiramente enormes, particularmente nos setores financeiro e tecnológico. Parte da explicação para essa mudança abrupta está nas mudanças tecnológicas, incluindo o surgimento da internet. Isso, junto com a desregulamentação financeira, permitiu uma explosão de negociações financeiras. Essa explosão na “financeirização” da economia acabou permitindo o crescimento das enormes fortunas tecnológicas. E com isso veio o grande aumento do poder político do dinheiro e a saga de Elon Musk e Donald Trump.
*Paul Krugman é professor de economia na Universidade da cidade de Nova Iorque (CUNY). Foi agraciado com o prêmio Nobel de Economia em 2008. Autor, entre outros livros, de A consciência de um liberal (Record).
Tradução:Eleutério F. S. Prado.
Para ler a primeira parte clique em https://aterraeredonda.com.br/a-desigualdade-nos-estados-unidos/
Publicado originalmente em Stone Center on socio-economic inequality.
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA





















