Miséria da russofobia europeia

image_pdf

Por JOÃO QUARTIM DE MORAES*

A russofobia atual é menos um resquício da Guerra Fria e mais o sintoma de uma estratégia expansionista da Otan, que traiu promessas e cercou a Rússia, usando a Ucrânia como peão em seu jogo geopolítico

1.

Provavelmente a maior das muitas trapaças políticas que pavimentaram o desmantelamento da União Soviética foi a promessa não cumprida do governo estadunidense de dissolver a Otan em troca da dissolução do Pacto de Varsóvia.

Se Mikhail Gorbachev e parceiros acreditaram na promessa, comportaram-se como imbecis. Se não acreditaram e mesmo assim baixaram os braços, foram traidores. As consequências perversas desta imbecilidade ou traição são bem conhecidas.

Constatando que a situação internacional lhes era extremamente propícia, os chefes do “Ocidente” imperialista mobilizaram a máquina de guerra da Otan para enquadrar governos e países que não se inclinaram perante a nova ordem planetária que eles pretendiam impor.

Diferentemente dos países do antigo bloco socialista do leste europeu, que aderiram ao bloco sob hegemonia estadunidense, a Rússia manteve dignidade e independência: não permitiu que a Otan ultrapassasse suas fronteiras e estreitou sua aliança com a China Popular.

O restante do continente europeu ficou à mercê do dispositivo bélico do “Ocidente”, que avançou até a fronteira russa, cercando-a de bases militares, e desfechou uma sucessão de guerras para recolonizar a periferia, punindo povos e governos que não aceitavam o “diktat” do “pensamento único” neoliberal.

Não é outra a razão do novo surto de hostilidade contra a Rússia, que contamina largos setores da opinião oeste-europeia. Essa hostilidade não tem mais o forte conteúdo ideológico da guerra fria contra o comunismo; seu conteúdo principal é o confronto geopolítico entre o bloco sob hegemonia estadunidense e a aliança sino-russa.

A Ucrânia tem longa tradição reacionária. Lutou ferrenhamente contra a Rússia socialista. Colaborou com a Alemanha hitleriana na invasão da União Soviética. Em 21 de fevereiro de 2014, um golpe fascista orquestreado pelos chefes da Otan depôs o presidente Viktor Yanukovych porque ele se recusou a assinar um pacto que submetia seu país à União Europeia e à hegemonia estadunidense.

Logo ao assumir o governo, os golpistas revogaram a lei que reconhecia o russo como língua oficial nas regiões onde ele predominava. No Parlamento ucraniano, deputados contrários ao golpe foram espancados. De todo o Ocidente cristão e plutocrático, vieram aplausos aos golpistas de Kiev, cujos apoiadores desencadearam campanhas terroristas contra os russos em geral e os comunistas em particular.

2.

Aos que subestimam o caráter fascista do governo instalado em Kiev, convém lembrar o massacre de Odessa de 2 de maio de 2014, em que mais de trinta manifestantes contrários ao golpe anti-russo morreram queimados no prédio do sindicato comunista, cercado e incendiado pelos neonazistas ucranianos.

Quando Vladimir Putin reagiu à guerra de destruição que o governo ucraniano estava montando abertamente contra as populações russas, com o apoio da Otan, não faltaram liberais globalizados para tomar partido pelo “Ocidente”. Esperavam fazer com a Rússia algo parecido com o que tinham feito com o Iraque, a Iugoslávia, o Afeganistão e a Líbia. Frustraram-se.

Foi a Rússia que acertou devidamente as contas com os agressores, destroçando o batalhão ucraniano neonazista Azov e executando seu chefe, Nikolai Kravchenko, em Mariupol. Admirador de Hitler e do criminoso de guerra Stepen Bandera, patriarca do nazismo ucraniano, Nikolai Kravchenko especializou-se em agredir militantes sindicais; participou do massacre dos sindicalistas em Odessa. Naquela ocasião Vladimir Putin avisou os assassinos: “sabemos quem vocês são e vamos atrás de vocês”.

Nos anos seguintes, o estado de guerra permaneceu em baixa intensidade, até 2019, quando Volodymyr Zelensky, provocador contumaz e reacionário assumido, elegeu-se presidente da Ucrânia. Cumprindo o papel de que fora incumbido, intensificou as agressões mortíferas contra a população majoritariamente de língua russa da região fronteiriça do Donbas e ativou o projeto de aderir à Otan.

Já cercada de bases do cartel bélico do “Ocidente”, a Rússia considerou uma ameaça gravíssima a perspectiva de instalação de dispositivos da Otan em território ucraniano. “Rússia coloca forças perto da Ucrânia e alarma o Ocidente” noticiou por aqui, em abril de 2021, o também alarmado jornalismo sabujo. De fato, Vladimir Putin decidira não esperar que o cerco se apertasse mais. Tomou a iniciativa de rompê-lo no campo da batalha, desencadeando o que chamou “operação militar especial”.

Em pleno terceiro ano de guerra, a operação se tornou a principal frente de batalha da guerra larvada do confronto internacional provocado pelos chefes da Otan que estão usando o regime fantoche ucraniano para dar uma lição à Rússia e reafirmar sua hegemonia planetária.

Em um momento em que nos vira o estômago a abjeta covardia do Estado terrorista israelense em Gaza, é bom lembar que esta operação genocida, comandada pelo neonazista Benjamin Netanyahu, é aceita sem maiores críticas pelos governos da Otan empenhados na recolonização da periferia. Os mesmos que se enternecem perante os males que a guerra trouxe para o povo ucraniano.

*João Quartim de Moraes é professor titular aposentado do Departamento de Filosofia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A esquerda militar no Brasil (Expressão Popular). [https://amzn.to/3snSrKg]

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES