Política – o real e o possível

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Por LUIZ MARQUES*

O verdadeiro poder não reside na infantaria golpista, mas na engrenagem sistêmica do capital financeiro que a comanda. A luta pela soberania, portanto, exige mais que defender instituições

A política tem duas dimensões, o real e o possível. Os putschistas do 8 de janeiro de 2023, tomados isoladamente, são personagens medíocres com mentalidade de milicianos. Impressiona a limitação cognitiva do generalato brasileiro; do capitão-presidente nem carece dizer. O raciocínio binário sobre os problemas do país e a solução aventada aos moldes de uma máfia, ao planejar assassinatos para burlar a vontade popular nas urnas, demonstra o quanto nossas instituições pátrias distam das necessidades da nação no contexto de crise do imperialismo e da multipolaridade, em gestação.

Os diálogos divulgados nas redes sociais entre empresários (empreiteiros, proprietários de shopping centers, mega varejistas, exportadores de commodities), todos ressentidos com a vitória do estadista admirado pelo mundo, mas execrado na casa grande, revelam que a inteligência do golpe ainda não apareceu. Ela está concentrada no capital financeiro e no capital-nuvem do Vale do Silício. Parte das classes dominantes e da armada brancaleone assume a função da infantaria, no combate corpo a corpo, para a formação de um bloco contrarrevolucionário ao qual soma-se a mídia corporativa.

Esse é o real. O possível esteve no ataque ao Estado de direito democrático para implantar o regime de exceção, fazendo eco do rumor de botas em priscas eras. Para além da psicologia dos indivíduos envolvidos, existe um programa político que associa o neoliberalismo ao neoconservadorismo e ao neofascismo para: (i) assegurar a superexploração dos trabalhadores; (ii) desmontar os direitos adquiridos do trabalho; (iii) aprofundar a desindustrialização e as privatizações; (iv) transformar o país em um “fazendão” para o agronegócio e a especulação financeira; (v) submeter o aparelho estatal às Big Techs sem uma regulamentação; (vi) apropriar-se das “terras raras” com minerais essenciais para a tecnologia mais sofisticada. Tal é a agenda para solapar a soberania do Brasil.

Essa agenda só pôde vir à tona pelo enfraquecimento, cada vez maior, da participação social sobre a decisão de questões importantes no domínio político, econômico e cultural. A elite retirou do povo a maioridade para deliberar de forma organizada sobre temas fundamentais – terceirização, jornada de trabalho, medidas de controle ambiental, aplicação dos recursos públicos, acesso aos equipamentos públicos. Ajustes fiscais para aplicar a austeridade reduzem as diferenças ideológicas e queimam a energia da esquerda, pois a representação é incapaz de construir o projeto humanista de sociedade.

Os grupos hegemônicos desdenham o meio ambiente natural e o meio social, levam a termo o valor supremo moderno que, nem sublime e nem moral, é o verdadeiro estímulo do indivíduo burguês – o egoísmo. Um valor que, transformado em indiferença pela sorte do planeta e da humanidade, gera a alienação de bilionários que, em plena pandemia, se divertiam na estratosfera fora da gravidade.

Correlação atual de forças

As pessoas não contam na lógica de acumulação do capital, exceto como unidades econômicas para fornecer dados e informações que recrudescem a dinâmica de dominação. A concentração de poder faz dos cidadãos meros espectadores de seu destino. A força da palavra liberdade, independente do uso manipulado pela extrema direita, traduz a repressão à ideia de um autogoverno. As engrenagens sistêmicas possuem vida própria. Os indivíduos desejam opinar em tudo, na exata proporção em que suas opiniões ocas não influem em nada sobre os verdadeiros donos do poder contemporaneamente.

Segundo Lucien Goldmann, em Epistemologia e filosofia política, “existe um risco de a evolução tecnocrática ser tal que o homem se torne um executante, que a liberdade diminua ao ponto de desaparecer, salvo para uma pequena camada entre cujas mãos se concentrarão as decisões”. Daí o sentido operatório (processual) estar a cargo da tecnocracia no mosaico da opressão. A autogestão é a esperança de uma distribuição de responsabilidades à população, no âmbito da superestrutura.

O Supremo Tribunal Federal privilegiou o critério da responsabilização dos agentes do Estado no julgamento, em curso. Os operadores econômicos, manifestos ou latentes, do putsch frustrado foram poupados de um escrutínio no banco dos réus com a justiça. Condená-los publicamente colocaria em xeque o status quo e os artifícios capitalistas – legais ou ilegais – para subjugar os trabalhadores. Coisa que apenas uma revolução reuniria condições políticas para fazê-lo de um modo radical. Não é o caso. O momento é de fortalecimento das instituições, movimentos e reorganização do trabalho.

A correlação conjuntural de forças explica a opção. A iniciativa de setores ultradireitistas e legendas do Centrão, na Câmara Federal, para formular a “lei de anistia” reconhecidamente inconstitucional enquanto a Corte Suprema julga os que atentaram contra a ordem, sinaliza uma desautorização que desafia o procedimento judicial do STF. Antes se questionava o resultado das eleições; por ora, os rebeldes a favor das desigualdades antirrepublicanas negam aos ministros da instância máxima a competência para sentenciar os mentores visíveis do terrorismo, na Praça dos Três Poderes.

A insubordinação ao ordenamento da Constituição de 1988 condensa diferentes fatores individuais, históricos, políticos, ideológicos e até sociais. As criaturas do obscurantismo, saídas do esgoto da incivilidade, pegaram gosto pelo comportamento de turba contrariamente ao decoro parlamentar de antanho. O confronto que dá vazão a uma racionalidade tribal espetaculosa, para mobilizar o séquito de seguidores com vistas às manifestações do 7 de setembro, visa não permitir que a condenação do líder desmobilize as massas de manobra. Revigora a estapafúrdia “narrativa alternativa aos fatos”. Sem um gesto altivo do covarde inelegível (“Desculpa!”), os deputados travestem-se de Quixotes.

Hoje o possível para os extremistas de direita reside em manter holofotes acesos para exprimir um tragicômico jus sperniandis. A luta toma o rumo das ruas. As redes digitais da reação já murcham. À democracia resta vencer as desinformações, tirar as drummondianas pedras de atraso do caminho.

Brasil soberano, sem anistia

Ao reverso, o Fórum das Centrais, a Frente Brasil Popular, o Grito dos Excluídos e Excluídas e o Povo Sem Medo convocam a militância para o ato na data cívica de Independência Nacional sob o lema: “Quem manda no Brasil é o Povo Brasileiro – Sem Anistia”. Alto e bom som, “Pelo Brasil soberano, com direitos e sem golpistas! Donald Trump, tire suas garras do Brasil! Jair Bolsonaro e seus generais golpistas na cadeia! O Brasil é nosso! Donald Trump, Jair Bolsonaro e seus cúmplices querem meter as garras no nosso país, entregar nossas riquezas aos EUA e calar a voz do povo. Não vão conseguir”. A convocatória é em si um desagravo e um sinal para que domingo seja um dia abençoado pela luta.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.


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