Por INÁCIO ARAUJO*
Considerações sobre a obra do cineasta e documentarista, recém-falecido
1.
Silvio Tendler foi um cineasta das passagens. Das passagens da história e de seu movimento contínuo. Seu primeiro filme, assim que chegou do exílio na França, foi uma reconstituição do governo de Juscelino Kubitschek. Os anos JK – uma trajetória política contrapunha um Brasil bem-humorado e sonhador, além de democrático, à sisudez que se vivia no período militar, quando o filme foi lançado, em 1981.
Os militares estavam deixando o poder em 1984, quando Silvio Tendler lançou Jango. Também trabalhando com material de arquivo, remontou a imagem do último presidente antes do golpe, João Goulart. Os arquivos da época não eram tão ricos como os de hoje, mas Silvio Tendler sabia trabalhá-los. Era tão artista quanto militante. Seus filmes empolgavam uma plateia que aspirava se ver livre da ditadura pela evocação do que tinham sido os velhos tempos.
Esses velhos tempos coincidem com a infância e início da adolescência do cineasta, nascido em 1950. Ainda adolescente, começou em 1965 a fazer parte do movimento cineclubista do Rio de Janeiro. A cultura já era um refúgio contra os movimentos autoritários, e desde então Silvio Tendler foi um militante de esquerda.
Em 1970 foi para o Chile, entusiasmado pela vitória da esquerda que levou Salvador Allende à Presidência. Dois anos depois, decidiu dar sequência a seus estudos em cinema na França. Ali esteve ligado a alguns dos nomes-chave do documentarismo moderno, como Jean Rouch.
Na França, deu sequência à sua ligação com o documentário, integrou um coletivo formado, entre outros, por Chris Marker e Armand Mattelard. Desse grupo surgiu o filme La Spirale, de 1975, radiografia do golpe de Estado do Chile e um dos documentários mais influentes daquela década.
Silvio Tendler aproveitou a ocasião para aprofundar seus estudos de história na Universidade Paris 7, no coração de uma Paris ainda sublevada, onde trabalhou com Pierre Vidal-Naquet. Na hoje École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, fez seu mestrado no célebre seminário “Cinema e história”, de Marc Ferro, tomando por tema o trabalho do documentarista holandês Joris Ivens.
2.
Nada surpreendente, portanto, que, voltando ao Brasil, em 1976, ele tenha se dedicado ao documentário e a desenvolver uma obra ligada ao desejo de democracia. Era uma época de frente única contra a ditadura e não espanta que, como homem de esquerda, Silvio Tendler tenha buscado personagens que foram ícones da era democrática, como Juscelino e Jango.
A história se movia, e Silvio Tendler a acompanhava. Dedicou documentários a Josué de Castro, autor, entre outros, do clássico estudo Geografia da fome, a Castro Alves, o poeta da Abolição, ao geógrafo Milton Santos e ao revolucionário Carlos Marighella.
Em 2011, completou a trilogia dedicada aos vultos políticos da era pré-ditadura com o documentário Tancredo, a travessia, dedicado a Tancredo Neves, que foi ministro de Getúlio Vargas e conviveu com a ditadura até ser eleito presidente da República de forma indireta – cargo que não chegaria a assumir.
Um ano antes, Silvio Tendler lançou a versão mais completa de Utopia e barbárie“, afresco da segunda metade do século XX. Não foi tanto a perspectiva política, de esquerda sempre, que tornou a recepção ao filme mais morna, mas a natureza do trabalho. Silvio Tendler era um documentarista autor, cujos filmes giravam em torno de suas crenças e opiniões. O documentário já estava na era da escuta, na era Eduardo Coutinho.
Silvio Tendler já enfrentava problemas de saúde e continuava a se dedicar ao ensino, como fizera desde o final dos anos 1970. O século XXI foi também o tempo de receber muitas homenagens, oficiais ou não, no Brasil e fora dele.
No entanto, Silvio Tendler não abandonou a militância do documentário. Trabalhou ainda na série Trilogia da Terra, terminada em 2014, composta por médias-metragens, dois deles com o título de O veneno está na mesa. Os três constituem uma enfática defesa da agricultura familiar e um não menos forte ataque ao uso de agrotóxicos na produção de alimentos, prática atribuída aos grandes produtores rurais.
Do início ao fim, Silvio Tendler foi um importantíssimo documentador das várias transformações sociais e políticas do país. Mais do que isso, foi fiel à esquerda, sem dúvida, ideologia com a qual interpretou o Brasil e a história em seus filmes.
*Inácio Araujo é crítico de cinema e escritor. Autor, entre outros livros, de Cinema: o mundo em movimento (Scipione).
Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo.
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