Sobre a PEC da blindagem

Imagem: Geronimo Giqueaux
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Por ROBERTO VITAL ANAV*

A blindagem aprovada no Congresso não protege a democracia, mas os seus membros. Ao criar uma casta intocável, inverte o legado da luta histórica pela imunidade e nos lança numa perigosa encruzilhada entre o Estado Democrático de Direito e os interesses obscuros que se protegem da Justiça

1.

A imunidade parlamentar para delitos de opinião foi uma conquista democrática histórica. No passado, poucos parlamentares de esquerda que conseguiam se eleger eram perseguidos judicialmente. O deputado socialdemocrata alemão Karl Liebknecht foi o único membro de sua bancada a votar contra os créditos de guerra para o Império Alemão (II Reich) engajar-se na Primeira Guerra Mundial (1914-18). Pouco tempo depois, prosseguindo sua propaganda antimilitarista e contra a guerra, foi preso.

Os comunistas e socialistas sempre defenderam a imunidade parlamentar para delitos de opinião, alegação frequente para persegui-los. A maioria dos democratas, de diversas tendências, sempre entendeu da mesma forma a imunidade parlamentar: o discurso político, verbal, escrito ou difundido por meios de comunicação, deve ser protegido contra qualquer medida repressiva, de caráter policial, jurídica ou política.

Entretanto, a incitação à violência contra grupos, etnias e opositores, bem como à discriminação étnico-racial, de gênero, orientação sexual, religiosa e outras, são crimes de ódio. Não podem ser confundidos com crimes políticos protegidos por imunidade.

Até agora, a direita mundial embaralhava esses dois conceitos deliberadamente, o que obriga os democratas, progressistas e a esquerda a travarem o combate cada vez mais necessário pelo esclarecimento político em sociedades bombardeadas por discursos populistas e fake news.

A ascensão de partidos de extrema direita em escala mundial esteve frequentemente associada à defesa cínica da liberdade de expressão para pregar preconceitos, discriminação e mesmo incitação ao ódio e à violência, confundindo muitas pessoas não engajadas politicamente e angariando votos com a cobertura populista dessas distorções das liberdades democráticas.

2.

Nessa semana, a Câmara dos Deputados brasileira cruzou todas as fronteiras imagináveis no campo da ética, da democracia ou mesmo da segurança pública. Com a decisão de 17/09/25 (ainda a ser ratificada pelo Senado, o que se espera, não sem boa margem de dúvida, que não ocorra), qualquer processo ou investigação contra parlamentar deve ser aprovado pelo Legislativo. Isso inclui crimes comuns, de corrupção e de abusos eleitorais, pelos quais inúmeros parlamentares foram e são investigados e processados (poucos, entretanto, punidos – embora isso tenha ocorrido com maior frequência em tempos recentes).

Note-se a absurda inversão da história: em dezembro de 1968, o segundo governo da ditadura militar (sob a presidência do Marechal Costa e Silva) pediu autorização do Congresso Nacional para processar o deputado Márcio Moreira Alves, do MDB (única oposição consentida), por discurso de forte crítica às Forças Armadas, que usurpavam o poder político. A negativa do Congresso levou à decretação do Ato Institucional no 5 (AI-5) em 13/dez/68, fechando o Congresso, eliminando o habeas corpus, instituindo censura à imprensa e outras barbaridades. Foi chamado “golpe dentro do golpe”.

A repressão, as torturas e assassinatos nos calabouços clandestinos – como nos casos de Rubens Paiva, Alexandre Vannucchi Leme, Olavo Hansen e centenas de outros – multiplicaram-se. Intelectuais, professores e artistas, além de militantes contra a ditadura, tiveram que se exilar. O AI-5 durou 11 anos.

Naqueles tempos ditatoriais, com uma Constituição (1967) promulgada por um Congresso manietado, sob bipartidarismo imposto de cima e o olhar vigilante da ditadura, ainda era preciso autorização do Congresso para processar um parlamentar por delito de opinião. Ou seja, um ritual democrático sobrevivente em meio ao autoritarismo em vigor desde o golpe de 1964. O AI-5 rasgou o véu desse resquício democrático, para que o regime militar fosse até o fim em seu extermínio da democracia e adentrasse o período mais trevoso de nossa história no pós-Segunda Guerra Mundial.

Na atualidade, uma perversa inversão leva o Congresso a afrontar os demais poderes da República (polícia investigativa, Ministério Público, Judiciário) ao blindar seus integrantes em relação a crimes de corrupção, abusos eleitorais e crimes comuns. Destaque-se que a Constituição de 1988 declara os parlamentares invioláveis, civil e penalmente, por suas opiniões, palavras e votos (art. 53).

O que se buscou, agora, foi estender a proteção a crimes alheios ao exercício do mandato. A extensão ocorre em profundidade – o rol dos crimes cuja investigação e processo passam a requerer autorização legislativa – e em extensão, alargando-se até presidentes de partidos políticos sem mandato parlamentar. Cria-se, dessa forma, uma casta protegida e privilegiada, que se auto protege contra as instituições de combate ao crime organizado ou individual.

A coroar o absurdo, a adoção obscena do voto secreto para a decisão de autorizar ou não a investigação ou processo protege os parlamentares e presidentes de partidos do olhar dos eleitores e da mídia, deixando-os livres para acobertar seus pares, sem que os cidadãos comuns possam identificar quem votou a favor ou contra. É um Olimpo sem deuses, inalcançável aos mortais comuns, cujos integrantes, como os deuses gregos, dividem-se, combatem uns contra os outros, mas protegem-se reciprocamente dos simples humanos.

3.

O próximo passo é o crime organizado eleger seus líderes para o Congresso ou a presidência de partidos políticos, a fim de imunizá-los contra a polícia e a justiça. Eles possuem recursos para tanto e seguramente já estão planejando essa empreitada. Estaremos, assim, no pior dos mundos: criminosos auto protegendo-se contra investigações e processos, com a cumplicidade de seus pares no Congresso, cada um cuidando de encobrir seus pecadilhos e pecados maiores contra a sociedade, a ética e a democracia, enquanto os interesses fundamentais da população serão, no máximo, objeto de discursos para registro com fins eleitoreiros.

Há exceções, certamente. Houve votos contrários. Felizmente, não foi um voto isolado e logo reprimido, como ocorreu com Karl Liebknecht em 1914 no Parlamento alemão. Naquela ocasião, a maioria absoluta do Partido Social Democrata Alemão infringiu suas próprias decisões anteriores de votar contra os créditos de guerra.

Mas – ai de nós! – também aqui e agora, das plagas em que se imaginava fundar-se a ética, a luta pela transparência e pelo interesse social pingaram votos – embora minoritários – para a aberração que acaba de envergonhar o país. Doze malditos votos pela mancha eterna que jamais será eliminada da memória nacional. Malditos, sim, porque provenientes de onde jamais poderiam ter vindo. Pior, lastreados pelo discurso cínico da “decisão amarga pelo bem maior” – no caso, a não aprovação da anistia ao golpismo. Bastou um dia para derrubar esse pretenso argumento, já que a traição demonstrou (como se fosse preciso!) sua completa ineficácia contra a recidiva da moléstia crônica do golpismo no Brasil.

Olhando de conjunto, esse esquema mafioso pôde ser aprovado devido à passividade da sociedade. Por quanto tempo será mantido? Pelo tempo que durar a tolerância social ao abuso, ao arbítrio e à impunidade.

O cenário torna-se ainda mais complicado com a proximidade da votação da anistia, que buscaria reverter a conquista inédita na nossa história, de condenação da intentona golpista desencadeada desde 2021 e culminada em 8 de janeiro de 2023. 

Saberão os movimentos sociais, agrupamentos políticos e organizações civis democráticas e progressistas reverter esse cenário? Fica posto o desafio.

*Roberto Vital Anav é pós-doutorado em história econômica pela Universidade de São Paulo (USP).


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