Por GABRIEL LUIZ CAMPOS DALPIAZ*
A verdadeira compreensão da realidade desigual não é um impasse, mas o ponto de partida para transformá-la, elevando a razão sobre as contradições
1.
O filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel estabeleceu a dialética como uma corrente lógico-filosófica que serve como método para a efetivação do conceito. Se a ciência busca por meio dos particulares afirmar sobre o universal, para consolidar um conceito, no caso há um exercício de linguagem para corresponder o objeto empírico.
Os positivistas (analíticos em sua vertente inicial) reconhecem que um enunciado deve carregar um valor semântico a-histórico, no sentido de que em qualquer contexto ele deve representar o que de fato está transcrito. Já uma vertente mais flexível, como algumas correntes da fenomenologia (continentais), pode partir do pressuposto pragmático, em que o enunciado deve ser entendido de acordo com o contexto que está inserido.
Porém, os próprios filósofos analíticos mesmo divergindo entre si, seja com Ludwig Wittgenstein tardio ou com Willard Van Orman Quine, viram em última instância os limites do valor semântico a-histórico, que se torna insustentável como um pressuposto universal e necessário, mas representa apenas um recorte específico da realidade.
Já a tradição fenomenológica hegemônica, como a de Edmund Husserl, propõe a suspensão do juízo (epoché) sobre o mundo para se centrar nos fenômenos. A própria consciência é uma consciência de algo, há um fator intencional. Porém, a inteligibilidade sobre o objeto se dá somente pelo fenômeno por meio do qual a consciência descreve os fatos. Nega-se conhecer a totalidade, como uma totalidade concreta, como no caso da dialética hegeliana e marxista.
Por não trabalharem com as categorias da totalidade, isso implica em um viés fatalista sobre o próprio movimento da história. Se as categorias e os conceitos são relativizados somente pelo contexto, então não há verdade, somente há o Nada, a filosofia, nestes contextos, pode se voltar em favor de um niilismo.
As antinomias dessas vertentes, acabam tornando-se um freio ao desenvolvimento da razão, tanto pelos positivistas quanto pelos fenomenólogos. Enquanto a dialética analisa essas antinomias não como limites para compreender o real, mas as utiliza de forma a elevar a razão sobre as contradições até o esgotamento do próprio conceito. O reflexo nessa ação está ligado ao fato de que o real pode ser pensado, racionalizado e modificado por meio de uma categoria central: o trabalho.
Enquanto os analíticos e continentais partem da multiplicidade do objeto para aquilo que acreditam ser a essência primordial, um real dado como fator a-histórico, a dialética inverte a ordem, parte do imediato dado como a-histórico e abstrato, para sua essência múltipla e histórica mediada pela razão.
Em sua Ciência da Lógica, Hegel eleva a dialética como ciência. Em princípio o Ser aparece como absoluto e imutável, mas na verdade é o imediato indeterminado vindo, igualmente, a ser o Nada. O puro nada é o mesmo que o puro ser por ser vazio de determinações e abstrato. Contudo, aplicado de maneira particular e concreta, reconhece-se o caráter do real e suas determinações contraditórias que existem em um contexto específico. Volta-se ao devir de Heráclito no qual o real é multável, dinâmico e histórico.
Hegel desenvolveu seu método lógico que é capaz de compreender a dinâmica do mundo, entregando uma ciência em que as contradições são parte inerentes da constituição do ser e não antinomias como expressões da limitação do próprio desenvolvimento do conceito.
2.
Partindo da realidade, mais especificamente da categoria que representa a forma histórica do poder, o Estado, para as duas correntes (positivismo e fenomenologia), essa instituição assume diversas manifestações. Em sua essência, porém, costuma ser caracterizada de maneira negativa (como opressora a liberdade do homem), geralmente em razão do histórico autoritário dos governos fascistas na Europa da primeira metade do século XX. Assim, qualquer nação do Sul Global que busque consolidar o poder estatal como forma de resistência ao imperialismo tende a ser vista por essas correntes filosóficas como autoritária.
Na dialética tem-se o inverso, o Estado como categoria abstrata pode ser apontada como uma instituição que abarca uma sociedade composta por uma ou mais etnias em um limite territorial. No seu conjunto diverso manifesta o seu espírito (consciência) e as suas relações sociais. Agora, partindo dessa forma abstrata, o cientista discorre sobre as determinações que sustentam o conceito.
Como exemplo cita-se o conceito de Estado nos Estados Unidos que difere significativamente da forma contemporânea de Estado observada em algumas repúblicas do Sahel que se insurgiram contra o imperialismo. Embora ambos se fundamentem na concepção abstrata de Estado, apresentam diferenças marcantes em seus fundamentos mais gerais: de um lado é o espírito materializado do imperialismo, do outro é a manifestação histórica de uma resistência neocolonial, que utiliza o aparato do Estado para efetivar a sua resistência.
Fica evidente que a dialética não nega a contextualização que o enunciado aparece, uma questão de pragmática, mas não relativiza a verdade, a semântica no caso. Nisso, parte-se do enunciado em sua forma geral para as suas determinações, o caminho da consciência entre o real e a razão, emerge dentro do objeto e volta universalizando a categoria desenvolvida em conceito. Assim, surge um conceito universal e necessário – como na semântica – mas que existirá até o seu esgotamento em um contexto particular – como na pragmática. No caso do Estado, enquanto uma categoria histórica, deixará de ser após cumprida a sua missão.
Outra observação para se pensar a superação da neocolonização é identificar as categorias voltadas aos grupos minoritários, como racial e de gênero que estão condicionados pelas relações sociais nas quais participam. No contexto do mundo capitalista, essas categorias funcionam como parte das relações de produção, e suas expressões específicas evoluem concomitantemente com as lutas de classes. Torna-se, portanto, necessário trabalhar essas categorias com urgência, reconhecendo a lógica capitalista e a divisão social do trabalho em que esses grupos se encontram.
3.
No caso dos negros e indígenas no Sul Global, devido a relação de dominação do capital, eles estão incorporados à lógica de produção por meio de uma divisão racial do trabalho. Historicamente, foram destinados a ser a base da mão de obra escravizada, sendo que a taxa de mais-valia absoluta extraía o valor produzido em longas jornadas diárias de trabalho. Atualmente, continuam, em grande medida, expostos a serviços mal remunerados, o que acentua a exploração.
Nesse caso, como a raça também é vista como uma categoria, a sua dinâmica se dá pela lógica de produção em que está inserida. Brancos latino-americanos nos países da Europa Ocidental e nos Estados Unidos, se tornam racializados: são conhecidos “apenas” como latinos. Assim, essa classificação os enquadra ao grupo de explorados pelo capital.
No caso das mulheres, os blocos históricos representados pelas aristocracias-burguesas determinam sobre o trabalho: uma divisão sexual e a sua naturalização. De maneira geral, a classe dominante possui poder de deliberar sobre os corpos das mulheres, especialmente se pertencerem a minorias étnicas ou sociais. Do mesmo modo, as mulheres enfrentam, em grande medida, duplas jornadas como o trabalho assalariado e o serviço doméstico, e quanto mais profundo for o recorte social, mais exploradas e marginalizadas se encontram, em função das relações históricas de dominação.
O reconhecimento da totalidade e a libertação das minorias sociais é parte inseparável da superação neocolonial. Sabe-se, porém, que o conceito nem sempre abarca o universal que o campo progressista desejaria. A primazia da dialética consiste em compreender que a forma universal do conceito de emancipação não pode ser imposta como um ideal abstrato; deve, ao contrário, emergir a partir dos próprios resquícios conservadores, analisados nas contradições concretas e no espírito da realidade particular onde está inserido, superando-os.
No âmbito de efetivar a superação neocolonial, está o plano concreto em que é necessária a mudança material da realidade vigente. Um exemplo disso é a China, um país que exporta valor de uso a vários países, principalmente aos africanos. Entrega infraestruturas básicas e complexas, interligando não somente o comércio, mas relações bilaterais, promovendo em certa medida industrialização.
Num outro eixo, há um ponto já pensado pelos filósofos do idealismo alemão: eles viam a industrialização como meio de inserir inteligibilidade ao processo social. Em sociedades que passaram de economias agrárias para industriais ocorreram transformações materiais e espirituais da nação, principalmente decorrentes das mudanças nas relações sociais de produção.
A industrialização, neste cenário, revela a contradição mais profunda do capital, entre capitalistas e trabalhadores – neste último grupo, incluem-se as minorias –, ou seja, uma contradição de classes. Mao Tsé-tung percebeu que essa contradição existe, mas pode ser obscurecida por uma ainda maior: a contradição principal entre imperialismo e nação. Assim, até países do Sul Global que tentam se industrializar, mesmo pela via do capital, sofrem algum tipo de bloqueio pelo império.
Esse conhecimento aprofundado da realidade, onde é possível compreender o movimento das categorias, conceitos e das contradições é característica primordial da dialética. É um método científico apropriado para pensar a realidade desigual.
Na conjuntura atual, iniciativas que desafiam a hegemonia unipolar do imperialismo, como as lideradas pela China e Rússia, surgem como uma potencial via de superação. As contradições materiais que aparecem, não devem ser empecilhos, mas o ponto de partida para a razão mediar sobre o conceito. Antinomias como impasse para conhecer a totalidade e modificar o real, deixemos com os positivistas e fenomenólogos. Por fim, adotar a dialética como método e estratégia é uma lógica revolucionária e necessária ao Sul Global que historicamente, no campo da práxis, acompanhou e mostrou resultados emancipatórios ao longo dos séculos XX e XXI, seja desde a União Soviética, até a China atualmente.
*Gabriel Luiz Campos Dalpiaz é mestrando em filosofia na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS).
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