Uma breve história da peste – VI

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Por YURI ULBRICHT*

O significado da peste no Brasil colônia

1.

Semelhantes naves, carregas de pecadores e condenados, quando se libertam dos perigos do mar, traficam catolicíssima a peste portuguesa nas baías ultramarinas, em seguida, nas capitanias do reino, ainda que então essa esterilidade fosse atribuída a intempéries provocadas por virações pestíferas, como a que em 1563 tocou aquelas costas marítimas, como se lê no terceiro livro da Crónica da Companhia de Jesu, em que o padre Simão de Vasconcellos trata dos fundamentos que eles nelas lançavam:

1 – Estão na mão do grande Pai dos celleiros os tempos prosperos, e sazão das seâras: e assi como acontece muitas vezes, que a annos ferteis succedem os estereis; assi tambem na nossa seára espiritual da Bahia, á fertilidade dos annos passados succede neste de 1563 colheita menos copiosa. Foi a causa huma terrivel intemperie de ares, ou corrupção, que a modo de peste contaminou a mór parte da terra. Teve principio da banda da ilha de Itáparica, deu sobre a cidade, e d’ahi pela costa maritima correndo ao Norte, foi levando as aldeas de S. Paulo, S. João, S. Miguel, e outras muitas, que por aquella parte estavão de Christãos, e Gentios, e escaçamente deixou viva a quarta parte dos moradores d’ellas: orçou-se o número a passante de trinta mil almas, as da Capitania da Bahia sómente, espectaculo por huma parte miserando, por outra pera das graças ao Ceo (cujos são estes lanços) porque parece esteve cobiçando o fruto já assazoado dos dous annos passados, de tantas almas reduzidas á graça por meio de agoa batismal; e quiz aproveitar-se d’ellas antes que por sua natural inconstancia podessem perverter-se. Mas se faltou a occasião de crescimento dos bautizados, não foi pequeno o serviço de Deos que estes servos seus obrárão em acudir aos que cahirão doentes, e preparar os que acabavão; porque como forão ditosos nos principios de sua christandade, o fossem tambem nos fins d’ella. Andavão volantes em varias estancias, onde á volta dos já christãos, bautizarão in extremis muitos milhares de adultos gentios, que provavelmente correrião perigo, se não fossem em maré tão ditosa.

2 – Começou a doença por graves dôres do interior das entranhas, que lhes fazia apodrecer os figados, e bofes: e logo veio a dar em bexigas, tão pôdres, e peçonhentas, que lhes cahião as carnes a pedaços cheas de bichos mal-cheirosos. Não sabião os Padres a quem primeiro acudir; porque no mesmo tempo espiravão muitos em diversos lugares, e não era possível deixar o que já tinha posse, por acudir ao que a não tinha. Aconteceo ao Padre Gregorio Serrão, que assistia na aldea de Itáparica, estando ajudando hum d’estes a bem morrer, dizer-lhe hum moço, que havia parido huma India n’aquella mesma hora no meio do terreiro (cousa commua no tempo d’aquella doença, pelo aperto de dôres que cansava) e deixára o parto desamparado, e se fóra, e que a criança ficava a ponto de morrer; afligio-se o zelôso obreiro, porque era necessario ir acudir áquella alma, e por outra parte havia perigo de deixar est’outra. No meio d’estas ancias disse o Indio, que estava morrendo: «Não tomes pena, Padre, acude a esta alma, que eu esperarei por ti.» Foi o Padre, achou duas crianças gemeas, huma já morta, outra a ponto de morrer: bautizou esta, foi ella ao Ceo, e o Padre tornou ao seu doente, que achou ainda vivo, mas esperando por momentos por elle. D’este exemplo se podem tirar muitos do aperto d’esta contagiosa doença.[i]

A peste é dita um modo de contaminação cuja causa é uma corrupção do ar que se diz terrível e contagiosa, explicação natural que, todavia, remete à fonte úbere que inebria os céus, o grande Pai. Esse modo de contaminação observa sazão equiparável à das colheitas menos férteis, pois, se, em tempos menos prósperos, por alguma causa externa, o movimento de crescimento, que é o da lavoura, sofre alguma interrupção que compromete a formação do grão; também os movimentos de crescimento e deslocamento, que são os do conjunto dos lavradores, periodicamente padecem de interrupções que perdem as fadigas passadas, de modo que, se é da terra a praga que impede o movimento de crescimento vegetal, seja do ar a contraparte animal dela, a peste, impedimento de crescimento e deslocamento dos homens, gerando a primeira o padecimento das fomes, a segunda, o das enfermidades pestilenciais.

Principiando por uma banda, a peste corre a linha da costa, detendo-se onde cristãos encontram gentios, levando aldeias, diferentemente da peste que entra nas cidades, que vai chegando a alguns bairros, tirando a segurança da cidade e promovendo separações, mas não as leva inteiras a um só tempo. As misérias que acompanham a peste coincidem com a graça do Céu, que a lança para salvar as almas dos convertidos porém inconstantes, os quais a pestilente providência divina salva da perversão, salvando igualmente os frutos da catequese, converte-se assim a perdição do corpo em salvação da alma, e diviniza-se a ação da peste: espetáculo de desconcertante concerto da miséria e da graça.

Prestam o socorro à divina doença os servos de Deus, são os que obram nas estâncias assoladas, correm-nas batizando os gentios, pois pela conversão da alma as salvam dos perigos que os corpos correm. Os lanços da peste fazem com que muitos ao mesmo tempo em diversos lugares adoeçam e pereçam, de modo que falte quem os assista ou lhes possa acudir as almas. Em meio aos apertos da contagiosa doença, o que é incomum e extraordinário se faz coisa normal e usual, invertem-se as razões cotidianas da vida, demanda-se a reconversão dos ofícios, muitos passam a ser exercidos por um único. O repentino das mudanças demonstra o quanto a vida tem de transitório, gerando ânsias que envolvem a pena e a esperança, a que se junta a angústia trazida pela irmã que com a peste caminha:

38 – Cousa commum he andarem os males acompanhados, e que a huma peste se siga logo peste. Experimentárão este teor da natureza (bem á sua custa) os moradores da Bahia: o anno passado de 1563 passou gemendo toda esta Capitania com huma quasi peste, ou corrupção pestilente, que tirou a vida a tres partes dos Indios (estrago miseravel!) Entra o anno de 1564, e vemos que entra com elle huma terrivel fome, como nova mortandade, e não pequena angustia dos Padres que das aldeas tinão cuidado. Foi a causa da fome a mesma que a da doença, a intemperie do ar, applicada primeiros aos corpos, agora aos frutos: era lastima grande; porque nascendo estes fermosos, alegrando a vista, e incitando a esperança, morrião no melhor mal logrados; murchando primeiro vencidos da injuria dos tempos, até cahir em terra, seguindo os passos de homens apestados. Erão em grande quantidade os que acabavão cada dia por essas aldeas a mãos d’esta fome tyranna: e era necessario aos Padres trocar o genero de trabalho; e o que dantes applicavão á conversão das almas, applical-o agora a remedio dos corpos: buscavaão-lhes o sustento da vida; porém o mais que podião ajuntar, vinha ser nada entre tantos.[ii]

Como que peste ou corrupção pestilente são modos de dizer quaisquer doenças oriundas do destempero do ar que sejam terrivelmente contagiosas e que façam gemer toda a região por onde andam, a qual sofre estragos miseráveis, pois perde grande parte dos moradores, que todavia nãos são igualmente atingidos, pois os índios a sofrem mais.

A intempérie do ar causa como que peste, quando contamina os corpos dos homens; quando, porém, a terra, ela passa aos frutos e é causa de fome, de modo que cada um dos dois males, fome e peste, sejam efeitos diversos de causa comum. Entretanto, não podendo conter a injúria da intempérie, isto é, a causa deles, buscam os padres o remédio segundo o efeito, consistindo o da peste na conversão das almas de corpos perdidos, já o da fome, na sustentação do corpo, de modo que aquela envolva o cuidado da vida espiritual, esta, o da terrena.

Tendo aparecido pelas bandas da ilha de Itaparica, em 1563 avançando sobre a cidade da Capitania da Bahia, daí acompanhando o recorte da orla continental, caminha a malcheirosa peste para o norte: chega às aldeias, dura até 64, então desaparece. Depois disso, sobrevém à Capitania do Espírito Santo uma pestilência que, como venha a dar em bexigas e em estragos semelhantes, parece ser a mesmíssima do norte, que, vagabunda, desceu menos miseranda e mais vagarosamente, até que aparecesse cruel em 1565 nas aldeias mais ao sul:

70 – Ultimamente foi mandado [o Padre Diogo Jacome][iii] á Capitania do Espirito santo, e encargado alli da residencia de huma aldea (de duas que havia) do Indio Principal, chamado o grande Gato. Aqui depois de trabalhar incansavelmente, com zelo de varão apostolico, na cultura d’aquella gente barbara, de trazer á Fé, cathequizar, e bautizar grande numero d’elles, por fim de seus trabalhos quiz o Senhor acabar de lavrar este servo seu com huma cruel pestilencia de bexigas que veio sobre aquellas aldeas, tão deshumana, que contaminou quasi todos, e raros dos contaminados deixou com vida. Vio-se alli hum espetaculo lastimoso; porque as casas igualmente servião de hospitaes de enfermos, que de cimiterio de mortos: os vivos entre os mortos erão quasi iguaes, e não sabieis de quaes havieis de ter mais compaixão; se dos vivos pera acudir a seu remedio, ou se dos mortos pera usar com elles da commua piedade de huma sepultura. Aquelles vos chamavão a vozes, estes com o cheiro pestifero de quatro em quatro huns sobre outros podres, e corruptos. O Padre Diogo metido entre elles de dia, e de noite com outro companheiro Pedro Gonçalves, erão os Sangradores, os Cirurgiões, os Medicos, e juntamente os Parochos, Recoveiros, e em tudo sós; porque á presença de tão grande miseria, apenas achavão quem ajudasse a levar hum defunto a sagrado; ou porque todos erão enfermos, ou porque os que o não erão assi fugião da corrupção, e máo cheiro d’elles, como da mesma morte. Tal houve que em meio do caminho fugio, deixando o peso do defunto todo em as mãos dos Padres, que cahirão de fraqueza com elle. Não he novidade n’esta gente; cuja natureza he tão endurecida por silvestre, que em qualquer doença trabalhosa desamparão os pais aos filhos, e os filhos aos pais: assi o fizerão muitos n’esta, acolhendo-se o que pera isso tinha forças, pera o sertão, sem respeito algum da natureza, ou da graça.

71 – Cansado pois de tão excessivo trabalho, consumido a puro desgosto de tão triste successo, vendo tão brevemente desfeita, assolada, e desamparada huma numerosa aldea, que cordialmente amava, por quem suára, e trabalhára tanto, perdeo o alento, e forças, e entrou em huma grande febre. Com esta foi trazido á Casa da Villa: e ainda aqui quiz Deus proval-o com novo refino de trabalho, e de obediencia: porque cuidando o Superior, passados alguns dias, que estava melhor, vendo a grande necessidade d’aquella aldea quasi despovoada, convidou só por alto o Padre pera tornar a ella: porém aquelle que em toda sua vida fora exemplo de obediencia, não quiz na morte diminuir o lustre d’ella. E supposto que o vigor vital lhe significava o contrario, poz-se comtudo nas mãos do Superior e foi. Porém servio a ida de voltar presto com mais hum acto de virtude heroico; mas com o alento já tão perdido, que quasi chegou morto. No pouco tempo que lhe restou de vida, tudo era suspirar ao Ceo, com actos abrazados, pedindo a Deos misericordia, pera si, e pera os que vira acabar n’aquella cruel peste, tão faltos de soccorro espiritual. Chegou o quinto dia depois de sua vinda, e recebidos os Sacramentos todos, abraçado com huma devota Imagem, deixou esta carne mortal, e foi, como se crê, gozar este bom servo do descanso eterno, no mez de Abril do anno de 1565. Jaz sepultado na nossa Igreja de San-Tiago d’aquella villa. D’este varão deixou huma lembrança o Padre Joseph de Anchieta, e falla d’elle com palavras maiores, chamando-lhe varão de muita obediencia, de grande zelo da salvação dos Indios, que trabalhou muito entre elles, com grande charidade até acabar a vida; e finalmente que veio a morrer por obediencia. E na verdade dois quilates enxergo grandes n’esta morte: que arriscou este servo de Deos a vida pela charidade dos Indios, a quem pretendeo acudir; e pela obediencia do Superior, a quem pretendeo satisfazer.[iv]

Quando vem sobre os gentios a peste, ela se mostra terrivelmente sublimada, pois contamina muitos deixando poucos com vida, despovoando as aldeias. Distingue-se o lastimoso espetáculo desta peste: as casas servindo de hospitais e de cemitérios; os vivos, mortificados em suas casas, igualando-se aos mortos insepultos, movem a compaixão pelas dores, estes, a piedade pelo abandono; fundem-se as vozes, os gemidos, os lamentos, a ainda viva agonia, e o cheiro da pestífera corrupção de podres defuntos, condensa-se o ar; os zelosos cuidadores de almas atuam noite e dia como médicos e cirurgiões de corpos, prolongam-se indefinidamente os trabalhos, as sangrias, e, movidos embora por verdadeira caridade cristã, estão sós ante a tanta miséria e a presença da morte, de tal sorte que o espetáculo da peste se mostre muitíssimo variado, não sendo nunca o mesmo em todo lugar, gerando-se a partir da natureza mesma sobre a qual incide a doença sobrenatural, que se lhes apresenta desumana e cruel nas aldeias.

A doença dos excessos e de excessivos trabalhos, por cujo triste sucesso dela se consomem tantos, assim os que nela acabam como os que desampara, distingue, aliás, a virtude heroica dos que, ainda que obedientes a chamados a que cumpre atender, impossibilitados embora de socorrer a carne mortal, ainda assim prestam com grande zelo o socorro espiritual, envolto em excessivo suor e risco, movido, porém, pela grande caridade verdadeira que, em exemplos tais, se estende até que acabe a vida.

2.

A aparição colonial das pestes católicas envolve a miríade de eventos gerados pelo pestífero encontro com o estrangeiro cujos sucessos estão profundamente implicados nas sucessivas gerações que deram no que hoje é o brasileiro, nome corporal que, aliás, se incorpora à escrita portuguesa por volta de 1680, com Gregórios de Matos[v], que, embarcado para seu degredo, põe os olhos na ingrata pátria, e se despede:

Vá visitar os amigos
no engenho de cada qual,
e comendo-os por um pé
nunca tire o pé de lá.

Que os Brasileiros sãos bestas,
e estarão a trabalhar
toda vida por manter
maganos de Portugal.[vi] 

Brasileiro, inicialmente, sequer gentílico é, o sufixo de ofício -eiro antes se reporta aos que tornavam à metrópole traficando o pau da tintura vermelho, a mercância que ficou sendo o nome da pátria brasileira. Designados por quem se despede, tanto o nome como os amigos que ficam vem de fora, o que mostra ser prevalente a permanente presença do estrangeiro na ulterior composição do povo cujo próprio nome se tira das mercâncias que se levam de um reino para outro. A satírica designação do ofício de besta prevalece sobre o brasílico do padre Anchieta e sobre a dama gentil brasiliana[vii], do frei José de Santa Rita Durão[viii], designantes respectivamente da técnica, -ico, e do lugar de nascimento, -ana, pois acabou sendo aquela, à maneira dos peruleiros e dos cocaleiros, a sorte de atividade, estrangeira, preponderante por estas bandas:

neste Brasil concorrem de todas as partes diversas condições de gente a comerciar, e este comércio o tratam com os naturais da terra.[ix]

O impacto do avanço comercial que contata os gentios desmorona populações, quando os lanços da peste escoltam esses como que povoadores de fora, que, todavia, pela largueza da terra povoam o Brasil a poucos lanços[x].

A comunicação, não só pelos corpos, senão ainda pelos panos e mercâncias a que se pega[xi], converte a peste, antes errabunda, que se renovava passo a passo, em peste circulante, que, envolta na trama relativamente regular do tráfico, se expande no ritmo do negócio, sucedâneo moderno de guerra constante. O evento da peste desliga-se dos encontros esporádicos que atraem seu padecimento, pois vincula-se a malhas mais amplas que o promovem reiteradamente, repercutindo-o além das adjacências.

Essa atividade comercial, continuamente intensificada, que periodicamente gera o evento da peste circulante altera a natureza dos eventos nos lugares onde ocorre, a tal ponto que o movimento historicamente instituído do comércio coincida com a escala e velocidade da infestação da doença. A multíplice sobreposição de eventos semelhantes prescritos pela realização do preço das mercâncias nos vários locais onde ocorrem regulares as transações comerciais multiplica as vias para a circulação da peste, pois são esses os trânsitos mais frequentes e extensivos dos vetores dela. Assim, as transmissões infecciosas historicizam-se, sendo a circulante aquela cujos sustentáculos, existentes e subsistentes, consistem no deslocamento dos corpos comandados pelos ciclos de realização dos preços vinculados à dinâmica mercantil, o que acrescenta à fisiologia mesma da doença o conceptáculo a partir do qual o aparecimento do doente gera a aparição do evento pestífero, pois, a doença, ao gerar a peste, como não seja Deus a gerar seu Filho, usa de um terceiro de quem a produza e pela qual força efetue a sua fecundidade, cuja razão há de ter proporção e conformidade com a natureza da cópula. Tem, portanto, a peste duas naturezas, a da doença visível estéril, distinta em pessoas, que permanece fisiologicamente o que já era, e a do evento invisível fecundante que, à proporção em que anda entre os homens, começa a ser o que antes não era. A existência da primeira não implica necessariamente a fecundação geradora, o derivativo insistente na compleição gregária historicamente instituída que a dissemina e que faz da peste o móbil cuja razão de crescimento é proporcional à dinâmica correlacional de seus vetores e receptáculos, pois, com o fim do movimento, some.

A fecundidade venérea derivada da integração global dos modos de produção material da vida social projeta a primeira peste pandêmica, que contemporaneamente se distribui simultaneamente por toda a superfície do globo, afetando toda a população, não do demo, mas do orbe. Tal peste tem seu conceptáculo simbiótico no mercado, inicialmente considerado como foco e local de convergência das gentes e palco onde se realiza o valor de troca das mercadorias, mas cuja forma contemporânea abarca toda a urbe, ela mesma metamorfoseada em grande mercado, cujo centro está em toda parte, cujos limites não se definem, onde impera caótica uma circulação de corpos premida pela necessidade de o capital adiantado no processo de produção, conformador material da vida social sob seu comando, completar seu ciclo de valorização, realizando o valor de troca na circulação; de modo que o movimento do capital implique o evento pestífero da pandemia, pois ambos crescem a partir de uma dinâmica que é própria da malha de comunicação sobre a qual se assenta a produção e reprodução material da vida em escala continuamente acelerada, irracional, anárquica, pois considerada pura quantidade crescente.

Acumulam-se grandes populações em grandes cidades-mercado, no interior das quais o corpo da urbe se desagrega, aglomerando-se em desconcerto muitíssimos corpos sem cujo povoamento se desestrutura a acumulação capitalista, os quais, correndo cotidianamente atrás da própria vida, geram a dinâmica privilegiada para a circulação letal da doença gregária. É no tempo da peste que os que estão sujeitos ao trabalho submetido ao mando do capital realizam cabalmente o dito do Eclesiástico, o que se abstém do comer acrescenta dias a sua vida, convertida a atividade mesma pela qual se haveria de vivificar o homem em vetor de mortes em massa. A contínua aceleração dos ciclos de valorização promove a igualmente contínua aceleração do deslocamento dos corpos a eles sujeitos, sem cuja interrupção se sustenta a via de crescimento da peste pandêmica, que se vai gerando à imagem e semelhança do valor, porquanto o efeito proveitoso de um coincida com o da outra, a saber, penetrar o corpo do homem, só.

*Yuri Ulbricht é mestre em filosofia pela USP.

Para ler a primeira parte acesse https://aterraeredonda.com.br/uma-breve-historia-da-peste-i/

Para ler a segunda parte acesse https://aterraeredonda.com.br/uma-breve-historia-da-peste-ii/

Para ler a terceira parte acesse https://aterraeredonda.com.br/uma-breve-historia-da-peste-iii/

Para ler a quarta parte acesse https://aterraeredonda.com.br/uma-breve-historia-da-peste-iv/

Para ler a quinta parte acesse https://aterraeredonda.com.br/uma-breve-historia-da-peste-v/

Notas

[i] De Vasconcellos, Simão. Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil. Volume II. Editôr A. J. Fernandes Lopes, 1865. 1-2. pp. 6-7.

[ii] De Vasconcellos, Simão. Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil. Volume II. Editôr A. J. Fernandes Lopes, 1865. 38. p. 25.

[iii] De Vasconcellos, Simão. Livro III da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil (anno de 1565). Volume II. Editôr A. J. Fernandes Lopes, 1865. 68. p. 39: “Na villa do Espirito santo acabou o curso d’esta presente peregrinação o Padre Diogo Jacome. Foi este Padre Coadjutor espiritual na Companhia, grande servo de Deos, e de abrasadas entranhas na salvação das almas. Pela conversão d’estas deo o ultimo vale á patria, e aos collegios da Europa, e se veio metter nos desertos entre a gentilidade do Brasil”.

[iv] De Vasconcellos, Simão. Livro III da Chronica da Companhia de Jesu do Estado do Brasil (anno de 1565). Volume II. Editôr A. J. Fernandes Lopes, 1865. 70-71. p. 40-41.

[v] Calmon, P. História do Brasil. Século XVI – As origens. Volume I. p. 104.

[vi] De Matos, Gregório. Poemas escolhidos. Seleção, prefácio e notas de José Miguel Wisnik. Companhia das Letras. Satírica: Embarcado já o poeta para o seu degredo, e postos os olhos na sua ingrata pátria, lhe canta desde o mar as despedidas, p. 129.

[vii] Santa Rita Durão, J. Caramurú. Poema épico do descubrimento da Bahia. Regia Officina Typografica, Lisboa, 1781. II, 72.

[viii] Calmon, P. História do Brasil. Século XVI – As origens. Volume I. p. 104.

[ix] Diálogo das grandezas do Brasil. Primeira edição do apógrafo de Lisboa. Transcrição de Caesar Sobreira. Cepe Editora. p. [48].

[x] Diálogo das grandezas do Brasil. Primeira edição do apógrafo de Lisboa. Transcrição de Caesar Sobreira. Cepe Editora. p. [48].

[xi] Bluteau, R. Vocabulario portuguez & latino. “Peste. (…) não só pelo contacto corporal se communica a peste, mas pegase aos pannos, vestidos, roupas, cartas, papeis, & envolta nas mercancias, se leva de hum Reyno para outro, & causa differentes symptomas, segundo o differente temperamento, & disposição dos corpos, que infesta (…)”.

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