Shangri-lá – um paraíso imaginário

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Por LUIZ GONZAGA BELLUZZO & MANFRED BACK*

A busca obstinada por um câmbio de equilíbrio de longo prazo revela-se uma quimera algébrica, uma ilusão que despreza a realidade intrínseca de um sistema capitalista movido por desequilíbrios e volatilidade financeira

1.

Shangri-lá é um paraíso terrestre fictício, um vale místico e utópico localizado nas montanhas do Tibete. No Ocidente, tornou-se sinônimo de uma utopia remota e exótica que representa o anseio por um mundo perfeito e harmonioso. 

O Shangri-lá dos economistas mainstream é a busca das crenças neuróticas do equilíbrio. Se algo estiver fora da ordem, basta colocá-lo nos trilhos do equilíbrio.

Grande representante da dita ciência econômica Sebastian Edwards apresentou em uma palestra no BIS (Banco de Compensação Internacional) seus argumentos a respeito da crença equilibrista.

Sebastian Edwards se empenha em perquirir as condições de equilíbrio na relação entre taxas de câmbio e a política monetária. Recentemente, percebeu que há algo de estranho ou errático na determinação da taxa de juros no regime de metas. Realizando testes de hipóteses com modelos econométricos, constatou contágio das decisões do banco central americano nas decisões dos demais bancos centrais.

O que nós pobres mortais chamamos de arbitragem de juros, diferença entre taxa de juros interna e externa, nosso cientista chama de contágio. E indagou: quem influencia quem? A taxa de juros em relação a taxa de câmbio ou vice-versa? Para dirimir a controvérsia valeu-se do modelo DSGE (Modelo Dinâmico Estocástico de Equilíbrio Geral) no propósito de impedir a contestação dos economistas do mainstream. (Estes poderiam alegar blasfêmia teórica).

Em sua caminhada, Sebastian Edwards chegou a duas conclusões importantes: exceto o banco central americano, nenhum banco central é totalmente independente para fixar sua taxa de juros no regime de meta de inflação, a outra, e os testes econométricos cravaram, com conta de capital aberta e livre movimentação de capitais, a taxa de câmbio é variável que influencia a determinação da taxa de juros.

“Os modelos que enfatizam movimentos de capital têm-se centrado sobre no “carry trade” como um dos principais determinantes das taxas de câmbio no curto prazo. Nesses modelos, uma taxa básica de juros mais baixa gera saídas líquidas de capital e, consequentemente, tende a desvalorizar a moeda”. (Sebastian Edwards)

2.

vEdwards percebe que algo não vai bem no reino do regime de metas inflacionárias. A independência dos bancos centrais, exceto o banco central americano, não passa de crenças na efetividade de normas e regulações.

A celebrada independência operacional não significa independência de fixar a taxa de juros. Os países de moeda não conversível estão obrigados a reagir às decisões de Washigton. A arbitragem e transmissão dependem do grau de abertura da conta de capitais.

Mas, Sebastian Edwards como tantos outros, não conseguem se livrar de dogmas e crenças. É refém do Shangri-lá do equilíbrio.

“Podemos, portanto, chamar uma crença de ilusão quando uma realização de desejo constitui fator proeminente em sua motivação e, assim procedendo, desprezamos suas relações com a realidade, tal como a própria ilusão não dá valor à verificação”. (Freud, O futuro de uma ilusão).

Sebastian Edwards propõe uma solução para o “desequilíbrio” constante que marca o curso das economias capitalistas. Para a ortodoxia nada mais constrangedor que admitir desequilíbrios constantes.

Investigações não alinhadas ao mainstream oferecem argumentos para afirmar que os desequilíbrios estão inscritos na estrutura e dinâmica do capitalismo. Postular uma meta de taxa real de câmbio de equilíbrio a longo prazo é mais uma aventura das mentes arraigadas às crenças do positivismo.

3.

Nos momentos de controvérsia aguçada, os príncipes e sacerdotes da ciência econômica (sic) convocam os quatro cavaleiros da ortodoxia – naturalismo, individualismo, racionalismo e equilíbrio – para espaldeirar a visão que afirma as permanentes oscilações nas relações entre câmbio e juros.

No entanto, as relações entre câmbio e juros assombram o mundo da racionalidade e do equilíbrio, como o fantasma de Banquo assombrava Macbeth. Se já é difícil prever a taxa de câmbio nominal de amanhã, é estapafúrdio fixar a taxa de câmbio real de equilíbrio, o Shangri-lá da utopia algébrica perfeita. Fixar uma taxa de câmbio de equilíbrio de longo prazo é imobilizar os movimentos que definem as relações entre inflação, juros e contas externas.

Aqui vamos homenagear Delfim Neto: “Lembremo-nos, apenas, que os mesmos economistas, há pouco tempo, acreditavam na mágica das “expectativas racionais” como o “estado da arte” da ortodoxia. Podemos e devemos divergir (porque é assim que aumenta nosso conhecimento), mas é ridículo dizer que a política do Banco Central namora a ‘heterodoxia’. Por quê? Pela simples e boa razão religiosa que, infelizmente, a “ortodoxia” não existe…”

“A progressiva abertura das contas de capital desde o fim dos anos 1970 suscitou a disseminação dos regimes de taxas de câmbio flutuantes, tornando dominante a dimensão financeira nas “relações de troca” entre as moedas nacionais, em detrimento de sua função de preço relativo entre importações e exportações”.

“As flutuações do câmbio ensejaram oportunidades de arbitragem e “especulação” ao capital financeiro internacionalizado e tornaram as políticas monetárias e fiscais domésticas reféns da volatilidade das taxas de juro e das taxas de câmbio”.

“No mundo das certezas, a economia está agarrada inexoravelmente ao equilíbrio de longo prazo, graças à operação das “forças naturais” do mercado, as sedutoras valquírias da eficiência, empenhadas na cavalgada rumo ao Walhalla do produto potencial, ou seja, aquele que supõe uma permanente trajetória de equilíbrio de pleno emprego sujeita apenas a suaves flutuações. Nessa concepção, a economia não se movimenta. É sempre igual a ela mesma, ancorada nas expectativas racionais do “agente representativo”.

Agora só falta incluir no regime de metas de inflação, a meta de taxa de câmbio de equilíbrio de longo prazo!

Credo quia absurdum (Creio porque é absurdo).

*Luiz Gonzaga Belluzzo, economista, é Professor Emérito da Unicamp. Autor entre outros livros, de O tempo de Keynes nos tempos do capitalismo (Contracorrente). [https://amzn.to/45ZBh4D]

*Manfred Back é graduado em economia pela PUC –SP e mestre em administração pública pela FGV-SP.

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