Por EMILIANO JOSÉ*
A “proposta de paz” que exclui a principal força política palestina e celebra a vitória do massacre consolida uma paz de cemitério, onde o vencedor dita os termos sob a ameaça de abrir ainda mais as portas do inferno
1.
A história não tem linha reta. Disso, não podemos ter dúvidas.
EUA e Israel promoveram um massacre em tempo real. E digo em tempo real porque um massacre à luz do dia, capaz de ser visto por milhões de pessoas, nas telas do mundo inteiro. Sem que as grandes nações do mundo movessem uma palha destinada a paralisar tal massacre, tal genocídio, repetição de um holocausto, ironicamente pelo governo de um povo vítima daquele outro holocausto.
E não tema o uso do termo, por quaisquer elegâncias. Trata-se, até os dias atuais, de uma autêntica limpeza étnica, na verdade um crime continuado, vindo desde o final dos anos 1940, quando teve início.
Israel só pôde realizar o atual massacre, primeiro, porque os EUA deram garantias. Sem elas, não ocorreria. Segundo, pelo silêncio das grandes potências. Ressalte-se a voz firme de Lula, a condenar insistentemente o genocídio.
Há nesse momento uma espécie de voz unânime a celebrar a proposta de paz vinda dos EUA. Posso, à luz da correlação de forças, à luz do quase extermínio de um povo, à luz do quase extermínio do Hamas, tentar entender essa quase unanimidade.
Que jeito havia? Como resistir a tal proposta? Até porque a proposta veio com um aviso, vindo do império: ou aceitam a proposta ou as portas do inferno se abrirão. Como se elas não estivessem abertas havia tanto tempo.
Estavam abertas, sim, mas o presidente dos EUA avisava: caso não fosse aceita a proposta, Gaza arderia em chamas, continuaria mergulhada em sangue, mulheres e crianças assassinadas sem dó nem piedade. Nem o Hamas tinha chance de recusar. Por absoluta impossibilidade. Apesar de a proposta insistir na não-participação do partido nos destinos políticos de Gaza, no que resta do povo palestino.
2.
Faço parênteses para dizer não concordar com a rotulação permanente do Hamas como “grupo terrorista”. Aceitasse isso, e deveria aceitar serem terroristas os vietnamitas, os argelinos, os angolanos, os moçambicanos, os brasileiros, os argentinos, os chilenos, os argelinos, todos os povos capazes de organizar a resistência aos regimes autoritários, às potências dominantes, e até aos norte-americanos, inconformados com o domínio britânico.
Alguns vitoriosos, outros, nem tanto. Resistência, no entanto. Sagrado direito à resistência. Tão sagrado, a ponto de a ONU jamais ter considerado o Hamas como grupo terrorista.
Curioso é ouvir isso, de nossa mídia ocidental, da brasileira em particular, a repetir insistentemente o mantra “grupo terrorista Hamas”. E nunca chamar assim o governo de Israel, cujos assassinatos na faixa de Gaza ultrapassam largamente a casa das 60 mil pessoas, entre as quais, maioria, de mulheres, crianças, civis.
Israel nasceu da ação de atentados terroristas, aí sim, e os registros históricos não me deixam mentir, quem quiser vá atrás deles. Por exemplo: ao atentado do Hotel King David, 22 de julho de 1946, dirigido por Menachem Begin, mais tarde primeiro-ministro de Israel.
Ação da organização terrorista-sionista, denominada Irgun, Organização Militar Nacional. Nele morreram 91 pessoas, e foram feridas outras 45. Há estimativas de números maiores.
Em julho de 2006, Benjamin Netanyahu, liderando outras lideranças sionistas da extrema-direita, participaram da celebração do 60º aniversário do atentado terrorista, provocando, então, reações do Reino Unido.
A proposta de paz do presidente norte-americano, já se disse, mas não custa insistir, nasce com a exclusão da principal força política palestina, o Hamas. Com estúpida ideia de colocar um Tony Blair à frente da administração. Sob a sombra de transformar toda a região de Gaza num resort de luxo, como propôs o presidente dos EUA.
É um discurso de escárnio. Escárnio de vencedores. Escárnio de quem tem as mãos marcadas pelo sangue de milhares de vítimas.
A proposta de paz, e não creio pudesse receber tal nome, surge no momento da detenção de centenas de ativistas, outra vez, cuja intenção era levar ajuda a Gaza, a evidenciar a natureza autoritária, discricionária do governo de Israel.
Tá legal, eu aceito o argumento, mas não me altere o samba tanto assim, como diria Paulinho da Viola. Não me rendo a tanta unanimidade. Não cultivo ilusões. Aceita-se tal proposta na linha da casa do sem jeito. Pela correlação de forças. Pelo cruzar de braços das grandes potências.
Estava certa a Rússia quando não aceitou o cerco feito pela OTAN, e reagiu. Tinha e tem armas para tanto.
Palestina lutou e luta. Mas, momentaneamente, tal a disparidade de forças, é levada a concordar, fazendo ressalvas, com a dita proposta.
Não sabemos como sobreviverá a Palestina. Como aquele povo se reerguerá. Força, já demonstrou. Muita força. Menos pelas armas, escassas.
E mais pela força de ideais. Pelo sentido de pertencimento. Pela segurança de constituir uma nação. Nação milenar.
3.
Resta aos povos do mundo seguir mobilizado contra a ofensiva de limpeza étnica, evidente. Se as potências mundiais cruzaram os braços, o mesmo não ocorreu com as populações de todo o mundo. Foram imensas mobilizações, contra o massacre e a favor da paz.
As grandes causas demoram a triunfar. Assim, com a causa palestina. Eles viram as portas do inferno se abrir, desde a chegada das forças terroristas do sionismo. Mas não seguiram o conselho de Dante de abandonar a esperança.
Um país tão isolado como Israel, não obstante fortemente armado graças ao apoio dos EUA, não tem chance de seguir promovendo massacres, como tem feito ao longo da história.
Estamos às portas de uma nova concertação mundial, com o avanço da China e dos países do chamado Sul Global. Fundada no multilateralismo, e não na dominância de um império, e império em decadência. Espera-se dessa nova concertação uma nova economia, capaz de distribuir renda mundo afora. Um novo equilíbrio de forças.
Uma nova ONU, capaz de efetivamente arbitrar os conflitos mundiais, sem a guilhotina dos vetos oriundos do Conselho de Segurança. Um mundo de paz. Nesse novo quadro, há a esperança do reerguimento da Palestina, cuja nação deve seguir adiante dirigida pelo próprio povo palestino.
*Emiliano José é jornalista, escritor, membro da Academia de Letras da Bahia. Autor, entre outros livros, de O cão morde a noite (EDUFBA). [https://amzn.to/4mLENaB]
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
C O N T R I B U A





















