Negacionismos & extrema-direita

Peter Doig, Casa vermelha, 1996
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Por MARKO MONTEIRO*

Prefácio do livro recém-lançado de José Szwako

Ao ser convidado para prefaciar este livro, fiquei ao mesmo tempo honrado e um pouco preocupado, confesso. Os temas abordados pela obra, o negacionismo e a extrema-direita, infelizmente estão entre aqueles que dão o tom aos nossos tempos atuais de uma maneira cada vez mais contundente. Esse “espírito do tempo” reacionário, no qual novas formas de fascismo emergem associadas a mudanças sociais, tecnológicas e econômicas, traz uma malaise, um mal-estar à reflexão que talvez em outros tempos não teríamos. A recusa da modernidade (como se debate no cap. 3) não como crítica pós-colonial ou progressista, mas como busca do retorno a um passado idílico, traz uma enorme decepção existencial a muitos de nós, que não se supera com uma busca pelo “copo meio cheio”, onde quer que isso possa ser encontrado. Tenho dificuldade de ver essa parte, aliás, pois a cada aparente derrota da extrema-direita em um momento, vemos vitórias cada vez mais marcantes no momento seguinte.

Enquanto ainda luto (como muitos de nós) para processar anos depois todos os acontecimentos da pandemia de covid-19, um período que marcou tanto o nosso tempo e que ajudou a visibilizar de alguma forma os temas desse livro, vejo que o debate sobre negacionismo está longe de estar saturado ou mesmo bem resolvido. Este livro nos mostra o quanto ainda precisamos pensar sobre ele e o quanto ainda precisamos decifrá-lo, interpretá-lo de maneiras mais inovadoras para reagir a ele de formas mais efetivas. O sucesso retumbante e aparentemente inescapável de ideologias reacionárias pelo mundo todo; o reordenamento da ordem global em marcha a alguns anos, tendo seu ponto mais agudo com a nova eleição de Donald Trump nos EUA em 2024; a crescente presença de pessoas e partidos ligados ao fascismo e nazismo europeus do século XX na cena institucional no século XXI; todos esses elementos tornam este trabalho de grande relevância para o pensamento social e político dos nossos tempos.

Dentre os avanços analíticos e teóricos que vejo como contribuições do livro para o debate público atual, considero importante em primeiro lugar a sua teorização do próprio conceito de negacionismo, construída pelo autor de uma forma não essencialista e abraçando a sua conformação histórica, contextual e politicamente situada. Por mais que pareça banal a alguns, buscar uma leitura não metafísica do negacionismo (que implica ao mesmo tempo visões não essencialistas de verdade e fatualidade da ciência) ainda é um desafio para o debate sobre o que seja negacionismo. Essas teorizações conformam e condicionam por sua vez as respostas que inventamos para esse problema. A guerra a respeito de como definir o que são fatos, e de como falar que eles não existem enquanto tais de forma metafísica, não é de hoje, como escrevi em outro lugar[ii], por um outro convite também de Szwako.

Mas em outros tempos, como falei, o peso desse debate talvez fosse outro: outrora uma conversa talvez muito especializada entre linguistas ou filósofos, ou um embate interno à ciência envolvendo ciências “humanas” e “exatas”, tal discussão agora se mudou para o centro dos debates públicos a respeito do que é a vida e onde ela começa; do que é sexo ou gênero; de como a ciência pode ou não provar determinadas verdades e orientar decisões; ou sobre o papel de instituições como o próprio Estado. Nesse contexto, adotar visões não essencialistas pode jogar uma leitura “construtivista” no colo de negacionistas do clima ou das vacinas; e uma discussão sobre gênero e sexualidade pode gerar debates sobre a realidade dos corpos que envolve grandes dilemas existenciais de um e outro lado do espectro político. Esses embates envolvem posições aparentemente incomensuráveis entre si, pois uma só existe em detrimento da outra, gerando impossibilidades e ausências de pontes e diálogos que vêm marcando a cena política atual em diversos temas.

A sensação de que crescentemente alguns grupos vivem em “bolhas” ou “caixas de ressonância” isoladas entre si, gerando esse tipo de ausência de zonas comuns, vem sendo umas das tônicas analíticas sobre as redes sociais e a internet, que reconfigura a arena do público no século XXI. Nesse contexto, torna-se difícil, também, teorizar sobre esses fenômenos, pois é cada vez mais elusiva a existência de pontos em comum, e por vezes o que desejamos é a zona do conforto da acusação e denúncia do outro como iludido, ignorante ou inimigo.

Considero, assim, a tarefa de definir e teorizar de forma mais sofisticada o negacionismo um dos desafios mais difíceis e importantes da disputa intelectual e política atual: pois uma das maiores vitórias da extrema-direita contemporânea tem sido a de repetidamente conseguir pautar o debate público, reenquadrando as nossas percepções e nossas categorias em função da sua compreensão de mundo. Por mais que possamos achar essas visões “distorcidas”, negadoras do real e da verdade, ou simplesmente burras, não se escapa a elas nem na “esfera pública”, nem nas eleições, nem no debate acadêmico. Especialmente quando tais visões começam não só a reorganizar a forma como nomeamos os fenômenos (globalismo, ideologia de gênero, wokeness, dentre tantos outros termos que ganharam legitimidade nos tempos atuais), mas marcam políticas concretas que impactam nas nossas vidas materialmente, nossos corpos e nossas formas de existência.

O livro consegue, também, recuperar de forma densa a história desses movimentos no Brasil, outra tarefa que se perdeu nas inúmeras análises que seguiram as agora aparentemente longínquas Jornadas de Junho de 2013. Os negacionismos atuais, como se discute no livro, não começam em 2020 com a pandemia, nem começam em 2018 com a eleição presidencial e a vitória política da extrema-direita no Brasil. Não começam em 2016, com a vitória de Trump, 1º nos EUA ou o vergonhoso processo de impeachment da presidenta Dilma. Szwako retorna corretamente aos caóticos protestos de 2013, quando em meio à convulsão social aparentemente amorfa ou acéfala, surgem todo tipo de movimentos mais ou menos organizados em torno de ideias protoautoritárias ou protofascistas. Já nos protestos desse período víamos pessoas clamando por golpe militar, muito antes do 8 de janeiro de 2023 quando este golpe por pouco não ocorreu, como fica aparente nas evidências levantadas até o momento.

Afinal como se contrapor ao negacionismo sem cair novamente no simplismo de uma noção binária e essencialista da verdade? Acusar o outro de distorcer o real reafirma a existência de um real “verdadeiro”, alcançável por meio da ciência bem-feita, movimento que não evitou nem consegue se contrapor politicamente à força atual desses movimentos. Compreender o negacionismo nas suas características sociológicas nos ajuda a ter em mente que são forças atuantes, que conseguem se impor de forma muito hegemônica contemporaneamente e que, para agir contra elas, é preciso essa compreensão da sua política, do seu caráter constituído e, esperamos, provisório.

Outra contribuição importante do livro de Szwako é a de contextualizar melhor e situar o discurso muito comum sobre a “crise na ciência”. O livro nos confronta com a necessidade de negar o pânico: até que ponto a ciência está “em crise”? O que significa essa aparente crise de legitimidade de uma instituição tão central para nossas configurações contemporâneas de Estado e de democracia?[iii] Para ele, não devemos aderir acriticamente a visões de perda de credibilidade da ciência, o que nos impede de perceber a resiliência de formas e instituições frente a ataques e tentativas de destruição. E entender essa resiliência nos dá tanto força para continuar resistindo ao fascismo latente e explícito, quanto nos mostra caminhos de resistência importantes e já trilhados por outros atores.

Isso fica muito claro no cap. 2:

“No lugar da premissa de terra arrasada no terreno da ciência e seu entorno, que enseja uma leitura de crise tout court, sugerimos a análise do conflito político e de como o negacionismo é nele mobilizado, não só atravessando Estado e sociedade, mas também governo, oposição e burocracias e, ainda, no interior de uma mesma instituição oficial. Supomos desse modo ser possível readequar o tom do pânico a que nos referimos há pouco. Na cena nacional, os atores que questionam a ciência de maneira deliberada e renitente convivem e disputam predominância com aqueles que são ambíguos em relação a ela, outros que a questionam pontualmente e, ainda, outros tantos que aderem a seus consensos. Há, portanto, uma miríade de posições sobre a ciência em disputa no xadrez político; todas se inscrevem em terreno movediço, sem zona estável de conforto.”

Falar de crise da ciência tem virado lugar comum da crítica atual sobre os negacionismos, especialmente durante e após a tragédia associada à pandemia da covid. Essa tragédia, além das centenas de milhares de mortes, incluiu uma crise institucional e federativa criada em boa parte pelo governo federal sob Bolsonaro; as ações de negação da autoridade da ciência em diversos momentos-chave como a questão das máscaras e da vacinação; e os ataques a instituições públicas de pesquisa, acusadas de serem politizadas e de negarem a verdadeira solução à crise, que incluiria o suposto tratamento precoce, a cloroquina, dentre tantas outras coisas. A agenda de teorização do negacionismo é ao mesmo tempo uma agenda política de defesa de determinadas formas de relação entre a ciência e a vida social, ou seja, não separamos a análise desses negacionismos de uma necessidade política de rediscutir e readequar o contrato social da ciência na sociedade. Como esclarece Szwako:

“Se não trouxemos respostas práticas, o realismo implícito em nossa agenda pode, ao menos, propor alternativas teóricas mais realistas para talvez inspirar o combate a discursos e grupos paracientíficos. Seja como for, analogamente às fake news que, bem compreendidas, não são um problema “de comunicação” nem “do jornalismo”, mas sim um problema político (…), também os negacionismos e o anti-intelectualismo não são questão “epistemológica”; bem entendidos, eles estão calcados no conflito político, referidos, enfim, ao conjunto dos atores, interesses e ideologias em jogo nos conflitos pela ciência e ao redor dela.”

Em conclusão, entendo que há aqui uma contribuição potente e efetiva ao debate sobre nosso momento reacionário. Por vezes, a leitura sobre negacionismo nos leva ao pânico, ou ao desânimo, ou mesmo a uma sensação de impotência: afinal, como podem tantas pessoas negarem “a verdade”? Como podem reagir a consensos aparentemente tão sólidos? Ler este livro nos resgata a urgência da teoria e da política, de uma compreensão mais rica que nos tire da letargia e recoloque a questão nos seus termos mais práticos, permitindo uma visão de ação. Ação não só constantemente possível, mas também urgentemente necessária.

*Marko Monteiro é sociólogo, antropólogo e professor associado no Departamento de Política Científica e Tecnológica da UNICAMP. Autor, entre outros livros, de: Dilemas De Humanos, Os – Reinventando O Corpo Numa Era (Bio) Tercnolog (Editora‎ Annablume).

Referência


José Szwako. Negacionismos & Extrema-Direita. Telha, 2025, 232 págs. [https://amzn.to/47l2T7v]

Notas


 [ii] MONTEIRO, Marko. Guerras da Ciência In: SZWAKO, José; RATTON, José Luiz. (Org.) Dicionário dos Negacionismos no Brasil. 1. ed. Recife: CEPE, 2022. p. 161-165.

[iii] EZRAHI, Yaron. The Descent of Icarus: Science and the Transformation of Contemporary Democracy. Cambridge: Harvard University Press, 1990.


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