Por GUSTAVO ROBERTO JANUÁRIO*
O martelo quebrado revela sua dependência de nós; o smartphone funcional esconde nossa submissão a ele – eis o paradoxo central da técnica moderna
O martelo
Nossa relação com a tecnologia pode ser representada pela seguinte ideia de Martin Heidegger: “somente quando o martelo quebra, passamos a perceber a importância do martelo”. Uma frase simples, mas reveladora da complexa estrutura da presença e da ausência que define nossa interação com as ferramentas.
Enquanto o martelo funciona, ele desaparece na ação. Ele não é percebido como algo distinto; é um prolongamento do braço, do gesto e da intenção. O instrumento se funde à nossa ação, tornando-se uma extensão do braço que visa pregar o prego. Nesse estado de uso, o martelo é quase invisível para a consciência.
O problema surge no “quebrar”. Quando o martelo falha (seja quebrando o cabo ou errando o alvo), ele se torna um problema: ao deixar de funcionar, o martelo se separa da ação, exigindo atenção. Assim, quando o martelo quebra, o fluxo do “fazer” é interrompido: o humano precisa agora olhar para o artefato, compreender sua falha e avaliar sua própria dependência dele.
Esse momento de ruptura introduz o problema em si: o que era invisível (o martelo) se torna visível, não apenas como ferramenta, mas como metáfora da relação ontológica entre o ser e suas criações. O martelo “falha” e, ao fazê-lo, revela que sempre esteve na mediação do agir humano. A quebra do “martelo” evidencia a fragilidade do controle que temos sobre o mundo.
Ele aparece. Somos forçados a olhar para o martelo, saindo do foco da tarefa e nos voltando para o instrumento (o martelo quebrado).
Se você já martelou o dedo, bem sabe o que é isso! Logo surge o pensamento: “Esse martelo está com um problema. Comprarei outro.” E, mesmo comprando outro martelo, você ainda martela o próprio dedo. Que contradição!
É nesse momento, quando algo “dá errado”, que a verdadeira questão se revela: será que, mesmo quando funcionava, era o martelo que ditava as regras? O martelo teria vida própria, ou sou eu que o controlo?
Smartphone
Aplicar essa reflexão ao smartphone nos faz perceber que a influência da tecnologia no século XXI é muito mais profunda e sutil. Se o martelo é uma extensão do braço, o smartphone é uma extensão da consciência. Não apenas amplifica capacidades cognitivas (memória, comunicação, navegação, atenção) mas define o que percebemos e como percebemos.
O smartphone nos “usa”. Diferente do martelo, que é um objeto passivo, o smartphone é um sistema ativo. Os algoritmos de recomendação e os sistemas de personalização moldam o horizonte da experiência. O que lemos, vemos e até desejamos é filtrado por interesses comerciais e mecanismos cognitivos que fogem ao nosso controle. Neste novo arranjo, o ser humano deixa de ser o artesão que controla a ferramenta (o martelo) e se torna a matéria-prima (o dado) que alimenta o algoritmo.
Ele nos usa para gerar dados, transformando nossa atenção no verdadeiro produto a ser vendido. O dispositivo nos usa ao criar uma dependência incontornável: tentar viver sem ele significa arriscar a exclusão, seja social ou mesmo profissional. A ferramenta não é mais uma opção, é uma exigência. O smartphone deixa de ser uma opção e se torna uma exigência do sistema. Somos obrigados a usá-lo para participar do sistema e, assim, somos usados por ele para manter esse mesmo sistema funcionando.
Tente ficar sem WhatsApp ou e-mail por uma semana. Você rapidamente se torna social e profissionalmente disfuncional. Você é obrigado a usá-la e, portanto, é usado por ela para manter o sistema funcionando.
Assim, o ciclo se completa. Criamos instrumentos para resolver problemas e ganhar poder sobre o mundo. Esses instrumentos, por sua vez, mudam o mundo de tal forma que agora nós precisamos nos adaptar à lógica deles. Aí reside o paradoxo: o homem se torna um apêndice da máquina que criou, passando a servir às necessidades da própria ferramenta (carregar a bateria, atualizar o software, alimentar o algoritmo com dados).
A inversão do poder e o ciclo do vício
O paradoxo da relação homem-técnica é que criamos ferramentas para controlar o mundo, mas terminamos controlados por elas. O perigo reside em reduzir tudo a “recurso”: quando o humano é visto apenas como unidade produtiva ou perfil de consumo. Mas há salvação: reconhecer os perigos e refletir criticamente sobre eles.
O smartphone é o melhor exemplo desse duplo movimento. Ele oferece poder: permite acesso instantâneo à informação, viabiliza comunicação global e assegura maior eficiência”. Mas, ao mesmo tempo, sequestra nossa atenção e cria hábitos. O gesto quase inconsciente de verificar mensagens ou redes sociais é semelhante ao ato de “manter o martelo sempre afiado: uma ação que mantém a ilusão de controle, mas que é, na verdade, uma obediência silenciosa ao dispositivo.
A economia digital se ergue sobre a conversão da atenção em mercadoria. Nós trabalhamos para o sistema sem perceber: enquanto rolamos a tela, alimentamos bancos de dados; enquanto reagimos a estímulos, consolidamos padrões de comportamento que reforçam o enquadramento técnico.
O reconhecimento e afirmação do outro, isto é, a alteridade, foram e são necessários na construção da dignidade do homem. Ser humano exige a abertura para o mundo. A tecnologia digital reconfigura essa abertura: A abertura transforma-se em disponibilidade permanente em atender às solicitações advindas das mídias e grupos de WhatsApp.
O problema deixa de ser meramente psicológico e passa a afetar a própria essência do ser. O “ser-aí” Heideggeriano é substituído pelo “ser-online”, onde o valor do tempo é medido por interações e curtidas. A própria angústia existencial se atualiza, trocando o pavor do nada pelo medo de ficar de fora, que torna a desconexão insuportável.
A solução não é abandonar a tecnologia, mas uma tomada de consciência que nos permita reencontrar a dimensão do existir dentro do mundo técnico. O que nos escraviza não é o instrumento, mas a forma como o encaramos. Penso ser necessário e urgente um uso mais moderado e saudável do instrumento smartphone.
Nessa esteira, se o reconhecemos como um espaço onde o ser pode se manifestar de novas formas, então há salvação. Usar o dispositivo para criar, refletir, educar, comunicar-se profundamente ou preservar memórias é uma maneira de restaurar o caráter humano da técnica.
A virada é ética. Resistir à redução do mundo ao útil e recuperar o espanto, a escuta e o silêncio. É desligar o aparelho não como rejeição, mas como reconquista do tempo. É olhar para a tela como se olha para o martelo quebrado e perceber que o problema, em última instância, não reside no instrumento, mas na forma de utilização que dele fazemos.
Assim, a consciência que liberta não é a de quem abandona o instrumento, mas a de quem o usa sem se perder nele. O martelo e o smartphone, separados por séculos, revelam o mesmo paradoxo: ambos são pontes entre o humano e o mundo, mas podem transformar-se em prisões quando esquecemos que somos nós os responsáveis pelo sentido que eles carregam.
A tarefa é ética e existencial: reencontrar no uso dos instrumentos um caminho de abertura, e não de servidão. Com isso, o instrumento deixará de ser nosso senhor e voltará a ser o que deveria sempre ter sido, qual seja, uma expressão da liberdade humana.
*Gustavo Roberto Januário é procurador federal.
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