Socialismo Ambiental

Imagem: Franjoli Productions
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Por VINÍCIO CARRILHO MARTINEZ*

Sem a ação humana, a práxis decidida de cada um/a, o sistema manterá em funcionamento suas fantasmagorias: a regeneração humana e planetária tem data limite para iniciar e a data no meu calendário diz que é hoje

Na volta da Bienal de Arte Moderna, em São Paulo, na minha frente vinham um vovozinho e sua filha.

Coincidente, na chegada ao nosso destino, fui fumar no mesmo local em que eles estavam. Aí o vovozinho (pai da senhora) disse que iria ao banheiro. A filha apontou o caminho reto, mas ele ia se desviando.

Então falei para ela ir, que olharia suas malas. Ela demorou para se decidir, dizendo que era teimoso, que fazia tudo sozinho. E me contou que em dezembro será um senhor centenário (100 anos!).

É vovozinho mesmo, mas não usa nem bengala de apoio.

Passado esse tempinho, a filha foi ao seu encontro para redirecioná-lo e voltou rápido, depois, ele veio sozinho.

Lembrei dessa história espantosa porque ontem estava vendo um podcast sobre mercado financeiro e o apresentador, falando sobre a necessidade de uma previdência (que logo não será mais pública, por causa do golpe de 2016, do Temer: uberização, pejotização), disse que a Humanidade chegará aos 150 anos: a “nova” medicina fará isso. Tomou o cuidado de não dizer que será tão rápido.

Olhando a COP30, um marco sensível neste momento de negacionismo global[1], pensei que, para chegarmos aos supostos 150 anos, primeiro, as atuais gerações terão que salvar o planeta do esgotamento (com muita consciência, convicção, Ciência e tecnologia – principalmente energética) e, somente em seguida, essas gerações futuras poderiam herdar uma Terra apta à Regeneração: porém, sendo um processo, a práxis se inicia hoje. Ou começamos hoje ou não haverá amanhã algum para ser regenerado. Se nada fizermos individualmente e coletivamente (organizadamente) as provas desleixadas, inerciais pela nossa inépcia e indolência, por certo, serão a contraprova das expiações futuras e próximas.

Essa regeneração que vislumbramos na crônica é óbvia, na forma da sobrevivência humana, e será uma Revolução ambiental – com a diferença de que não será nos moldes da Revolução Francesa e jacobina. Também é óbvio que “nada muda per si”, o sistema de produção atualizado pelo fractal não é uma entidade aleatória, metafísica, abstrata.

Por mais que o sistema produtivo hegemônico do Capitalismo digital tenha algoritmos reconditamente fascistas[2], fantasmagóricos, em seu funcionamento há uma lógica funcional de dupla face: a pulsão de morte do modelo político fascista e a pulsão exploratória e consumerista.

Ou seja, sem a ação humana, a práxis decidida (reflexão e ação) de cada um/a o sistema, obviamente, manterá em funcionamento suas fantasmagorias. Em suma: a regeneração humana e planetária tem data limite para iniciar e a data no meu calendário diz que é hoje.

Essas futuras gerações, se tudo isso ocorrer, seriam muito mais equilibradas, conscientes, menos consumistas, niilistas e hedonistas. Também pensei que será um tipo de prelúdio socialista, se houver vida por aqui. E o mais curioso é que será um reencontro com o “Socialismo utópico”.

Na verdade, será um Socialismo Ambiental, natural, imposto pela lógica mais simples – a lógica do “deixe viver”, oposta ao sentido atual do “deixe fazer, deixe passar”. Se houver vida na Terra até lá, veremos triunfar a real Ciência Natural, capaz de reverter o processo de destruição planetária em curso e, ao fazer isso, anular o próprio modelo capitalista em andamento: destrutivo, corrosivo, corrompido.

Será um Socialismo Ambiental com seu escopo numa Ciência Natural e naturalmente humanizada em sua premissa e em seus princípios, com uma meta clara: salvar a Humanidade enquanto regenera o planeta desgastado, abusado, estiolado. Neste sentido, será um Bellum Organum – prontos para a guerra pela Ética; do belo, justo e honesto – e, assim, será o oposto do sentido primário, colonizador, destrutivo, do Novum Organun[3].

Afinal, se a metade da população mundial (ou menos do que isso) que mais consome e polui, e contribui com a degradação ambiental, mudar sua rotina para além do hedonismo, egoísmo, da impulsividade planejada para o consumo do aqui e agora, se menos da metade mudar esse curso em si, é óbvio, que a quantidade estará mudando a qualidade – a qualidade presente nas atuais relações sociais, econômicas, ambientais, culturais.

Por fim, a viagem de volta, o vovozinho no ônibus, me remeteram ao artigo 225 da CF88 (Constituição Federal de 1988)[4]: essa história do Socialismo Ambiental (Estado ambiental[5]) está lá. É a própria história do planeta Terra em regeneração.

Há um pouco de idealismo nisso, porém, é fundamental sabermos que não se trata aqui de uma mera suposição, especulação, um desejo infundado (honesto, mas infundado em condições reais), não é uma premissa “ideológica”, um vir-a-ser sem possibilidades concretas.

Não, esse Socialismo Ambiental (utópico, sem dúvida) que contamos na crônica de uma viagem de volta da Bienal de Arte Moderna, na verdade, a seguirmos a lógica da sobrevivência (a única lógica ofertada atualmente), é a única saída viável. Ou nos regeneramos (mudando a cada um, cada contexto, cada realidade) ou não teremos condições de alterar o sistema corrosivo vigente, desse nível de capitalismo altamente predatório e só mudando-o (na transformação de nossa própria aceitação, identificação: hábitos, costumes), nós teremos alguma chance de mudar os sinais planetários absolutamente negativos que temos à frente.

No fluxo corrente, no nosso dia a dia, vamos do esgotamento dos recursos naturais ao que será um insuportável aquecimento global. Então, a questão é muito prática e urgente, sem que mudemos por exemplo a obsolescência da mercadoria (a exemplo da crescente e incontrolada troca-troca de celulares e de roupas e de sapatos) nós nos esgotaremos muito rapidamente: parece que dessa vez a Humanidade se colocou um problema muito difícil de resolver.

Além do mais, isso quer dizer que o idealismo é provido de ideias, que o idealismo provém de ideias e, se não temos ideias, o nosso problema é ainda mais grave –, pois, o nosso problema não seria apenas o distinto e específico problema que temos pela frente, mas, sobretudo, o fato de não termos a mínima ideia de como enfrenta-lo.

Então, a ausência de ideias implica em derrota certa e declarada. Como ensinou Kant: “Sapere aude”. Ouse saber, procure saber, procure por ideias mais equilibradas e viáveis (do ponto de vista conceitual, lógico – eco-lógico[6]). Procuremos por ideais exequíveis, emancipatórios[7] – isso é fazer política realista, notadamente a política ambiental, social, moral.

*Vinício Carrilho Martinez é professor do Departamento de Educação da UFSCar. Autor, entre outros livros, de Bolsonarismo. Alguns aspectos político-jurídicos e psicossociais (APGIQ). [https://amzn.to/4aBmwH6]


[1] E também uma contradição ou paradoxo, porque a Petrobrás muito em breve estará explorando óleo na Foz do rio Amazonas – o paradoxo se acentua porque a empresa retrata um símbolo nacional e a nossa soberania energética.

[2] https://aterraeredonda.com.br/ensaio-sobre-capitalismo-digital-e-tecnofascismo/. Acesso em 12/11/225.

[3] BACON, Francis. Novum Organum & Nova Atlântida. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2005.

[4] CAPÍTULO VI

DO MEIO AMBIENTE

 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; (Regulamento)

II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; (Regulamento) (Regulamento) (Regulamento) (Regulamento)

III – definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; (Regulamento)

IV – exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; (Regulamento)

V – controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; (Regulamento)

VI – promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;

VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. (Regulamento)

VIII – manter regime fiscal favorecido para os biocombustíveis destinados ao consumo final, na forma de lei complementar, a fim de assegurar-lhes tributação inferior à incidente sobre os combustíveis fósseis, capaz de garantir diferencial competitivo em relação a estes, especialmente em relação às contribuições de que tratam a alínea “b” do inciso I e o inciso IV do caput do art. 195 e o art. 239 e ao imposto a que se refere o inciso II do caput do art. 155 desta Constituição. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 123, de 2022)

VIII – manter regime fiscal favorecido para os biocombustíveis e para o hidrogênio de baixa emissão de carbono, na forma de lei complementar, a fim de assegurar-lhes tributação inferior à incidente sobre os combustíveis fósseis, capaz de garantir diferencial competitivo em relação a estes, especialmente em relação às contribuições de que tratam o art. 195, I, “b”, IV e V, e o art. 239 e aos impostos a que se referem os arts. 155, II, e 156-A. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 132, de 2023)

§ 2º Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei.

§ 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

§ 4º A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. (Regulamento)  (Regulamento)

§ 5º São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais.

§ 6º As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas.

§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 96, de 2017). Acesso em 12/11/2025.

[5] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999.

[6] GUATTARI, Félix. As três ecologias. Campinas, São Paulo: Papirus, 1991.

[7] MARTINEZ, Vinício Carrilho. *Educação e Sociedade*: Sociologia Política da Educação. São Carlos: Amazon, 2025. Disponível em: https://www.amazon.com.br/dp/B0FXSXHN7R.

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