Novo contrato social

Imagem: Alexander Zvir
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Por VINÍCIO CARRILHO MARTINEZ & JOSANA CARLA GOMES DA SILVA*

Direitos humanos, sociabilidade, condição humana

É preferível avisar ao leitor que esse texto não se propõe ser uma tese, no sentido habitual (combatida por antíteses) e nem acadêmica, como se fosse um recorte de tese de doutorado. Tampouco é uma tese sobre a história, como as de Walter Benjamin. Trata-se apenas de um ensaio, como os de Francis Bacon, e assim deve ser lido – talvez, na melhor das hipóteses, possa ser inspirador de alguma tese.

A humanidade só tem um contrato social: das condições e determinantes da interação social. Assim, na verdade, não há “novo contrato social”, posto que é o mesmo contrato social que a humanidade refaz, reafirma continuamente. Sob condições, revezes drásticos, perigos extenuantes de desintegração social ou, ao invés disso, apostando-se na reafirmação da interação social, é ainda o mesmo contrato social, motivador do processo civilizatório.

Este é o processo refeito desde Lucy, o “grito primal” ou Prometeu, ou desde que a humanidade aportou na super-ação do homo sapiens. Ou desde que nos reconheçamos como humanidade, o homo sapiens sapiens: o humano que reconhece sua potencialidade, capacidade de sapiência (pensamento e ação), enquanto super-ação com vistas à intencionalidade política, como sociabilidade política: super-ação vocacionada à política (decisão) e que é a fonte primária da superação humana – no sentido de que o ser social (homo sociologicus) converte-se (superando-se) na insurgência do “animal político” (zoon politikon).

É óbvio que superação é transformação e ninguém transforma a si sem contribuir com a modificação do meio. Veremos que o vice-versa também é correspondente. Obviamente que as condições determinadas, impostas e independentes das escolhas individuais (via de regra pelo poder econômico) são ou podem ser decisivas – ao menos por algum período de tempo. Porém, não são deterministas, irrevogáveis, pois, se fossem, não haveria mudanças significativas ou somente haveriam transformações controladas, nunca para fora do sistema e de sua lógica.

Na prática, não haveria Lucy, Prometeu ou o proletariado insurgente – esta é uma regra básica da teoria social moderna. Portanto, também é óbvio que a força social – especialmente a que alavanca as transformações sociais – deve, precisa, ser vista dentro e fora do sistema, “de um suposto processo determinado a acontecer”, dentro e além das condicionantes exteriores, mesmo que globais: a concepção funcionalista não se dá bem com a história política.

Não é o caso desse texto, no entanto, podemos pensar que existem indivíduos desviantes ou que, até mesmo as dificuldades podem ser arroladas como motivações irresistíveis à mobilidade e ao impulso decisivo de forças não contidas, previstas, “programadas”. Assim, o desvio que outrora era tido como uma abominação vem a ser uma diferença (SILVA, 2021). Diferença essa que nos torna humanos, que nos humaniza e transforma nossa vivência.

De acordo com Goffman (1988), a sociedade encara o desvio da norma como algo que coloca em risco a espécie humana, no entanto é fato que desde o paleolítico as comunidades incluíam seus anciãos e pessoas com alguma dificuldade de locomoção ou deficiência (SILVA, 1984). Seriam essas comunidades “pré-históricas” mais humanas, mais desenvolvidas intelectualmente que o homem moderno/nós?

Num discurso elevado de Sêneca (à maneira dos estoicos), Bacon nos disse que: “As coisas boas que acompanham a prosperidade são desejadas, mas as coisas boas que vem com a adversidade são admiradas […] Mas em geral a virtude da prosperidade é a temperança; a virtude da adversidade é a fortaleza; a qual, a moral é a virtude mais heroica […] Até mesmo no Antigo Testamento, se você escutar a harpa de Davi, ouvirá muito de marcha fúnebre – assim como canto alegre; e a pena do Espírito Santo laborou mais descrevendo as aflições de Jó do que a felicidade de Salomão. Prosperidade não vem sem muito medo e desgosto; e adversidade não está sem confortos e esperanças […]. Certamente a virtude é como o olor precioso, mais fragrante quando ele é queimado ou esmagado, pois a prosperidade descobre melhor o vício, mas a adversidade descobre melhor a virtude”. (BACON, 2007, p. 22-23).

As necessidades nos levaram a cruzar o Rio Estige, em busca desesperada pelo banquete dos deuses – como nos contou Bacon (2002), em sua narrativa peculiar, na forma de um mundo de política, polis, e que mesmo não tendo no espaço público um amplo salão para alojar todo o povo ainda forjaria o nascimento da política, sob a era do neolítico inventivo de outra fase, uma das mais profícuas, do interminável processo de hominização.[i]

Processo esse que ocorre face a face, o homem se torna homem quando em face de seu igual, a cultura e o ambiente são modificados e adaptados em função do homem, a humanidade normaliza tudo a sua volta de modo que o ambiente o beneficie. A cultura e o ambiente são influenciados e influenciadores da natureza humana, essa humanidade que conhecemos é construída através e a partir das relações estabelecidas entre homem e homem, homem e cultura, homem e ambiente e modificadas de acordo com o lugar e período em que ele se encontre (VYGOTSKY, 2008).

Desse modo, quando Marx (2003) dize, no famoso Prefácio, que “a humanidade não se propõe problemas que não possa resolver” está reafirmando nossa capacidade de superação nas intenções e ações decisivas de humanização. Está observando a fabricação social do homo sapiens (nós), em um ininterrupto contínuo de superação das determinações iniciais – por meio, exatamente, da inteligência social – da humanidade, que se fez e se faz enquanto espécie e nunca isoladamente.

Trata-se da inteligência coletiva (social), da superação das necessidades persistentes pela exímia potência humana. Essa mesma que deu início ao que conhecemos como códigos: linguístico, social. A partir dos códigos instituímos os símbolos e seus significados (VYGOTSKY, 2008) que orientam e regem o que chamamos de sociedade e codificam o modus operandi com o qual necessitamos nos enquadrar e guiar nossa conduta num sistema que impele à produção contínua.

Entenda-se essa potência de superação de duas formas: síntese e super-ação. Esta super-ação é uma ação decisiva, a decisão política, a práxis revolucionária que sempre supera as dificuldades, necessidades, e as transforma em possibilidades, acionando-se as potencialidades que (movendo-se) nos fazem continuamente humanos – ou mais humanos, para o bem e para o mal.

Esta super-ação age coletivamente, com a consequência de (continuamente) nos fazer (obrigar a sermos) seres sociais capazes de atuarmos na práxis de superação da própria humanidade – de modo genérico, e na hominização que há em nós. Portanto, não se trata de ação isolada, mas de força social atuante na fabricação social de seres sociais destacados e impulsionados pela capacidade de superação dos atuais níveis limitadores da inteligência social.[ii] A super-ação é uma dialética, um moto contínuo formador de indivíduos sociais e de capacidade socializadora (intencional) e transformadora das necessidades resistentes em potencialidades revigorantes.

O que não se desprende de uma suposição de haver elos substantivos de um forte contrato social; com a diferença de que se supõe um contrato social que considera as dificuldades negadoras – até mesmo da socialização e humanização. Bem como se destaca a capacidade de enfrentar tais restrições, negações, com a mesma infindável capacidade humana de nos afirmarmos no seio social – ainda que, em muitas circunstâncias, já venha desintegrando-se enquanto ligações, relações sociais. Afinal, essa potencialidade de superação não pertence a um ou poucos, uma vez que é a condição essencial da humanidade e de seu incontido processo civilizatório.

Nisto está a dialética – essa disposição genética, ontológica, teleológica –, tão móvel quanto a síntese: a super-ação que é sempre decisiva no fazer-se humano. Esse contrato social nos exige, em consciência e ação, (re)fazer um pacto conosco: o de sermos melhores humanos amanhã do que fomos capazes de sermos hoje.

É um pacto severo, indócil, exigindo-nos conexão, interação, nos níveis e valores humanos mais difíceis de serem alcançados e mantidos no córtex decisivo dos indivíduos sociais decididos em hominização. É um pacto que nos exige uma superação a cada dia (humanos melhores amanhã, do que hoje): superar a si implica na interação social que corrobora a superação da espécie.

É fácil perceber que não há como ser diferente, afinal a humanidade (e cada um de nós) não se supera por inércia, por forças metafísicas ou geração espontânea. Ao contrário disso, o processo civilizatório decorre do pacto consciente, ativo (não só reativo), contínuo, de sempre fazer-se humano. É esse o custo individual do pacto social: a humanidade sempre se modifica, modificando-nos a todo custo. É da nossa quantidade, de super-ação, que advém a qualidade humana superior.

É possível aprender com erros ou mediante as adversidades? Por suposto que sim e a trajetória humana com suas criações técnicas ou sociais demonstra isso. A questão mais relevante nos diria que mais importante do que responder à questão anterior (bastante óbvia) nos diz que “apreender a diversidade”, tomar para si as experiências humanas efetivamente socializadoras, ajuizando-se em benefício da inteligência social, é muito mais produtivo do ponto de vista da hominização: aprender com a heterogeneidade, com as diferenças, diversidades, nos permite ver que a humanidade é muito mais ampla do que o espelho nos revela.

Esta é ainda a lógica dos Direitos Humanos: avançar na adversidade, superar as dificuldades, as desigualdades, consolidar a “unidade na diversidade”. é assim que o direito se revela humanizador, profundamente ético, antropológico, sociológico. É o que somos, um contrato de apostas futuras.

no espectro dos direitos humanos, podemos inferir que a interação social se avoluma quando ocorre inclusão social modificada pela heterogeneidade, na medida em que atua como fonte de socialização: sociabilidade crescente na diversidade. Este é o poder dos direitos humanos, alargar as raias do processo civilizatório, sempre repactuando com a humanidade os valores humanos mais inclusivos, socializadores e progressivos.

Enfim, esta é ainda uma forma válida e justificável de observarmos os direitos humanos como força social – pacificadora, no sentido de que promulga e revigora as forças sociais inerentes à socialização como processo contínuo e faz inibir as forças sociais degenerativas da sociabilidade. Este é o efetivo poder social dos direitos humanos – um contrato social em que os valores humanos são a origem e a razão da pacificação social.

Por fim, pode-se ver claramente que é neste conjunto que se constitui a matriz da heterogeneidade: a capilaridade social que move as diversidades para o reencontro no eixo humanizador do direito. Estamos bem longe disso? Não há resposta única, determinista, especialmente porque esta é a força de nossa origem e condição essencial enquanto espécie: super-ação (agir para adaptar e superar) e síntese progressiva. Em todo caso, aprimoremos nossa filosofia e práxis desde já. Isto nos fará ainda mais humanos.

*Vinício Carrilho Martinez é professor do Departamento de Educação da UFSCar.

*Josana Carla Gomes da Silva é doutoranda em Educação Especial na UFSCar.

Referências


BACON, FRANCIS. A sabedoria dos antigos. São Paulo: Editora da UNESP, 2002.

BACON, FRANCIS. Ensaios. Rio de Janeiro: Vozes, 2007.

BENJAMIN, WALTER. Obras escolhidas – Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1987.

GOFFMAN, ERWIN. Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradução: Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos -LTC, 1988. 158 p.

MARTINEZ, VINÍCIO CARRILHO. Necrofascismo: Fascismo Nacional, Necropolítica, licantropia política, genocídio político. Curitiba: Brazil Publishing, 2022.

MARX, KARL. Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo : Martins Fontes: 2003, p. 03-08.

SILVA, JOSANA CARLA GOMES DA SILVA. Dupla excepcionalidade: identificação de altas habilidades ou superdotação em adultos com deficiência visual. Dissertação (Mestrado em Educação Especial). Universidade Federal de São Carlos. São Carlos: UFSCar, 231 f. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/14750/Disserta%c3%a7%c3%a3o_Silva_JCG_2021.pdf?sequence=1&isAllowed=y.

SILVA, OTTO MARQUES. A epopeia ignorada: a pessoa deficiente na história do mundo de ontem e de hoje. São Paulo: CEDAS, 1987. 470 p.

VYGOTSKY, LEV SEMENOVICH. Pensamento e linguagem. 2008.

Notas


[i] Igualmente, não é o intuito desse ensaio navegar pelas formas mais contundentes da negação da Política, as formas de ataque mais viscerais em conflito com a sociabilidade e de confrontação aos níveis essenciais de Interação Social, quer sejam sistêmicas – como limitações intrínsecas a qualquer sistema social de respostas igualmente sociais – quer sejam as modalidades de achaque que se desenrolam por meio das sistemáticas crises do capital financeiro, tais como o Fascismo clássico ou Fascismo resiliente, altamente reprodutivo e ajustável aos tempos de redes antissociais e do Estado Rentista. Como ensaio talvez nem precisasse do anúncio formal de seus objetivos; no entanto, citaremos ao menos um: delinear um “contrato social” em que a sociabilidade seja guia da Interação Social (enquanto objeto da Sociologia) e no contexto afirmativo dos Direitos Humanos Fundamentais – no sentido de que são direitos fundamentais ao povo pobre, excluído, negro, expropriado até mesmo do Princípio da Dignidade Humana.

[ii] Veja-se, pontualmente no atual deslinde histórico, a força determinante que meia dúzia de empresas globais de comunicação, tecnologia e entretenimento, exercem sobre o caminho traçado à própria inteligência humana, condicionando-se os valores humanos aos hábitos de ostentação, consumismo, de “alienação da política”, como quem foge da luta social nas ruas para o ninho do sofá, com os dedos em riste a fim de lacrar ou cancelar teses, relações humanas, negócios ou outras pessoas.


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