Da miséria do meio artístico

José Herman, Esboço de um mineiro agachado
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Por ARTHUR MOURA*

Temos uma arte enfraquecida do ponto de vista social, mas pujante desde suas exigências de mercado

Introdução

A condição da arte no capitalismo é uma condição acessória, deixando, por isso, de cumprir com uma função social transformadora. As expressões artísticas são, no entanto, palco de lutas, como ressalta o professor Nildo Viana. Essas lutas giram em torno de determinadas contradições sociais presentes na sociedade capitalista. Esse tensionamento, ainda assim, não esconde a hegemonia burguesa nas artes. Pelo contrário. É cada vez mais clara tal orientação, ainda que as expressões artísticas muitas vezes tenham um caráter popular, refletindo não o conjunto de interesses do proletariado, mas os valores da classe dominante e suas classes auxiliares, ainda que tenha a frente representantes de setores subalternizados, o que torna a questão ainda mais complexa do ponto de vista da compreensão e resolução dos problemas existentes.

Nesse sentido temos uma arte enfraquecida do ponto de vista social, mas pujante desde suas exigências de mercado. É claro que nesse processo é necessário olhar detalhadamente cada campo das artes, mas ainda assim é possível fazer uma afirmação geral: a arte, o cinema, a música, o teatro, estão encurralados pelo capital, servindo muito mais a um processo alienante de produção e consumo onde os artistas são facilitadores dessa condição. A miséria do meio artístico reitera a posição de subalternidade do conjunto das artes e seus produtores, que se tornaram escravos do mercado. O público, por sua vez, consome todo esse pacote, que inclui a música (por exemplo) como um dos itens a ser consumido dentro de um contexto onde o principal é o estilo de vida do artista, geralmente banal mas atrativo do ponto de vista do espetáculo em torno dos valores capitalistas. É necessário ressaltar também que o critério para a mudança radical da arte está intimamente associada ao contexto histórico e social das lutas entre as classes sociais e as crises agudas do capitalismo que empurram as classes para confrontos determinantes.

Qual é a natureza da miséria e como se manifesta?

Em tempos de miséria e crise aguda da sociedade burguesa, a arte é uma das poucas manifestações capazes de denunciar a barbárie capitalista não só transgredindo, mas rompendo com estereótipos, repetições e limites da mesmice reiterada pela indústria cultural e suas expressões decadentes. A relação contraditória entre arte e capitalismo, ou seja, entre uma expressão que se pretende livre dos limites impostos pela classe dominante e o sistema sócio-econômico dessa classe, forma o nó que muitas vezes, ou pelo menos na maioria, forja o que chamei o ciclo dos rebeldes. Esse ciclo se repete em quase todas as expressões artísticas da contemporaneidade aniquilando tais manifestações ao passo que faz emergir o mais puro chorume equivocadamente denominado arte, produções caricatas e clichês, manifestas por artistas em sua maioria despreocupados com questões sociais mais sérias.

Por miséria do meio artístico podemos entender basicamente os limites que atravancam e emperram o desenvolvimento da arte a patamares mais elevados. São fatores como a subjetividade neoliberal, que transforma os artistas em concorrentes, instrumentalizando as relações em meios para se lucrar geralmente com produções já bastante visadas pelas exigências da indústria cultural. Outro elemento sem dúvida é a precária formação ou a baixa escolaridade (e ausência de uma teoria crítica) entre músicos, atores, cineastas, entre outros, o que torna impossível a organização horizontal entre aqueles que criam uma determinada expressão artística abrindo caminhos para os valores dominantes. A ausência de escolaridade não é só a formal, mas a musical, teatral, literária ou uma formação técnica no campo do cinema ou ainda uma formação do ponto de vista crítico não-institucional. Isso leva os artistas a se tornar uma espécie de serviçais do capital em busca de poder e estrelato, o que na maioria das vezes é somente uma ilusão alimentada pelo espetáculo. A ausência de uma formação crítica e de organização cria hiatos que muitas vezes são ocupados com o uso indiscriminado de drogas levando o artista a um completo imobilismo do ponto de vista profissional e criativo. A dependência química ou a toxicomania é um elemento bastante presente no meio artístico sendo parte desse montante de questões a que o artista está envolto.

A miséria se manifesta por meio da regressão seja da audição ou do olhar. No meio musical a regressividade é compensada pela fabricação de personagens quase sempre estereotipados que em geral falam sobre suas vidas pessoais cotidianamente e quando são questionados sobre assuntos mais sérios tendem a serem excêntricos e ambíguos como forma de tangenciar os temas abordados, explicitando a fragilidade dos seus pensamentos. A imagem nesse caso é tão importante (talvez mais!) que a música produzida. O público consome um certo estilo de vida, gostos, hábitos que é vendido por meio do espetáculo, da superexposição ininterrupta do dia a dia de uma estrela. Esse cotidiano espetacularizado tem um combustível imprescindível sem o qual a propaganda se torna impossível: as polêmicas ou tretas em torno de assuntos banais. Quando os assuntos são sérios, as abordagens são absolutamente rebaixadas. Por polêmica, nesse caso, entende-se brigas pessoais em torno de assuntos irrelevantes. A música, portanto, é um acessório, como o cordão de ouro ou o jatinho particular, as mulheres ou as drogas. O artista sabe que para se manter no hype é preciso estar disposto a jogar esse jogo. Ao se ver refém dessa lógica, a produção musical ganhou novas proporções e sentidos.

A miséria, portanto, se alicerça nos seguintes pontos:

  • Subjetividade neoliberal
  • Ausência de escolaridade
  • Dependência química (toxicomania)
  • Ausência de uma organização coletiva de caráter revolucionário
  • Ausência / desconhecimento de uma teoria crítica e método revolucionário
  • Hierarquia nas relações
  • Regressão da audição / produções regressivas
  • Egoísmo / concorrência / corporativismo / imobilismo
  • Falta de condições materiais

A importância da metodologia no processo de produção artístico é vital. A arte é um campo que se diferencia das ciências e de outros campos do conhecimento humano por motivos particulares, mas que ao prescindir de um método de produção deixa também de se desenvolver e aprimorar suas expressões, estéticas e conteúdos. Há um enorme problema para se pensar isso no campo artístico devido a uma ideia bastante abstrata e subjetiva do que vem a ser arte, podendo cada um, portanto, embasar e metodologizar ou não suas produções. Há também uma vaga noção (despolitizante) de que as culturas são espontâneas devendo, portanto, estar livre de qualquer amarra metodológica e teórica. A anti-metodologia pode ser vista até como um mérito ao se buscar uma certa diferenciação de outras expressões humanas mais rígidas.

Essa etapa, podemos dizer, mais livre do processo criativo é normal nas primeiras descobertas. Mas é no próprio decorrer desses processos que o produtor começa a se defrontar com os seus limites pessoais e intelectuais. Alguns buscam resolver esse problema instruindo-se em novas socializações; já outros buscam algum tipo de investigação sistemática do problema, como cursos, aulas e formações livres na internet. O fato é que a anti-medotologia mostra-se bastante limitada já nos primeiros processos de produção artística, levando o produtor a buscar algum tipo de deslocamento. A completa negação de uma teoria e um método de produção leva os produtores em algum nível a estagnações e imobilismo evidente. Essa postura para além disso funciona como uma linha de frente que promove embates constantes contra o desenvolvimento da arte. O profissionalismo, portanto, seria o ápice desse desenvolvimento produtivo? Não necessariamente. O termo profissionalismo está intimamente ligado a todo um modo de funcionamento das relações mercantis e isso não quer dizer desenvolvimento da arte; pelo contrário. Esse profissionalismo é também um entrave. Mas há aí alguns elementos que podem e devem ser ressaltados como necessários a uma metodologia de produção, como por exemplo, pensar a produção como um trabalho em que há divisão de funções que não necessariamente precisam ser hierarquizadas, mas que devem obedecer a um determinado programa onde se pensa o início, meio e fim da produção assim como toda a estrutura e cadeia produtiva. A negação de uma teoria e uma metodologia é nada mais que a expressão infantilizada da produção artística, egoísta e incapaz de qualquer avanço substancial.

É constitutivo desse processo intensa desvalorização dos sujeitos que criam, distinguindo uns dos outros de forma hierarquizada o que acaba sendo naturalizado devido a uma aceitação generalizada de valores conservadores. Nesse movimento de inversão de valores, a miséria é vista como algo brilhante e necessária (como uma espécie de sucesso ou virtude), haja vista a falta de alternativas e empenho para uma possível emancipação social da arte. Nesse sentido, o sucesso está ligado a inserção de um determinado artista nas esteiras da indústria cultural; como consequência, a miséria se reflete na criação artística, tornando-a regressiva e previsível, venal e superficial adaptadas às exigências do momento. Os sujeitos por sua vez estão asfixiados em relações utilitárias e são constantemente desestimulados a pensar criticamente abstendo-se de qualquer compromisso com qualquer tipo de transformação radical da sociedade e da própria arte. Assim, a arte se torna raquítica ocupando sobretudo o papel de entretenimento como forma de suportar a vida no capitalismo.

As relações são utilitárias no sentido em que só se estabelecem por meio de recompensas imediatas, de trocas entre mercadorias, já que o próprio artista se tornou ele mesmo uma mercadoria. Essas trocas beneficiam aquele que tem mais status ao passo que também resulta em ganhos para o que se associa diretamente àquela determinada figura de prestígio e poder na cena cultural. É como se alguns detivessem chaves que abrem portas em determinado campo. Essas associações são sobretudo políticas e exclui a maioria, criando figuras míticas e diferenciadas construindo artificialmente um status quo da arte. É como se fossem totens materializando o fetiche da mercadoria. Esse fator de seletividade é o que determina os autorizados e os desautorizados a serem vistos, ouvidos, lidos, etc. Dessa forma se consolidam cânones enquanto a base dos comuns forma um imenso lamaçal.

A miséria do meio artístico é também reflexo da miséria social causado por um sistema de exploração e concorrência entre os indivíduos e confronto constante entre as principais classes sociais que compõem esse modelo de sociedade: a burguesia e o proletariado. No capitalismo a arte tem uma função específica, qual seja, reproduzir os valores da classe dominante ao passo que sobra pouco espaço para expressões autênticas sendo estas combatidas veementemente muitas vezes por meio da criminalização direta.

A desvalorização da arte funciona como força motriz da manutenção do estado de coisas da sociedade moderna capitalista, já que a arte não tem tanta importância nos processos de sociabilidade. A modernidade, inclusive o seu conceito, foi forjado muito por conta das artes. O cinema é a arte moderna por excelência, tecnológica, visual, viva e cativante. A desvalorização da arte também nos remete à desvalorização do trabalho, sobretudo o exercido pelas classes baixas, já que há trabalhos que possuem prestígio e outros sem qualquer status. Muitos devem se lembrar do comentário do jornalista Boris Casoy sobre os garis que desejavam feliz natal: “que merda, dois lixeiros desejando felicidades do alto de suas vassouras. Dois lixeiros… o mais baixo da escala do trabalho.” Mesmo sendo obrigado a se retratar sabemos que é exatamente assim o pensamento da classe dominante, suas classes auxiliares e seus intelectuais orgânicos.

Tudo isso não é diferente, pois, do mundo da arte. Essa desvalorização, para que surta efeito, precisa ser reproduzida não só pela classe dominante, já que nesse caso, trata-se de uma parcela muito pequena da sociedade. As ideias dominantes de uma época são as ideias da classe dominante dessa determinada época. Assim, boa parte dos trabalhadores compartilham de um ideal que historicamente os massacram. Ainda que haja sofrimento e resignação, optar pela ideologia dominante produz um certo sentimento de inclusão social ao mesmo tempo em que exclui significativamente a população trabalhadora da vida política ativa, delegando ao outro todo tipo de responsabilidade consolidando as burocracias que vão os massacrar. Essa divisão social do trabalho na arte foi sintetizada corretamente por Caetano Veloso em sua autobiografia quando ele diz que: “A divisão nítida dos músicos em eruditos e populares retira destes últimos o direito (e a obrigação) de responder por questões culturais sérias.”

A desvalorização, portanto, se fundamenta na divisão social do trabalho. Assim, um simples técnico de palco não tem o mesmo valor do astro que se apresenta naquele mesmo palco. A hierarquia é a base que alicerça essas diferenças e a manutenção dessas diferenças é a exclusão de boa parte dos que compõem a cena cultural. Dado que essa é a forma estruturante das diferenças entre os múltiplos produtores de arte, essa passa a ser a lógica hegemônica a reger as relações e a conduta das pessoas em geral. As diferenças passam a ser reproduzidas internamente sem que necessariamente haja uma imposição externa, naturalizando as relações de poder e dominação. A desvalorização da arte e dos produtores independentes é reproduzida entre os próprios artistas independentes criando nítidas distinções. Nesse sentido, há artistas que gozam de credibilidade enquanto outros se humilham por reconhecimento. Aqueles que não têm credibilidade são excluídos internamente lavando as mãos da classe dominante.

O prestígio e o reconhecimento nesse caso se forja a partir de acúmulos, como inserção social, relações, contatos e meios em que um determinado artista está inserido, lucratividade, valorização da sua imagem; dessa forma o artista passa a pensar estrategicamente as suas relações, associações, sempre no intuito de redobrar a sua influência. Assim, o que tem mais prestígio na cena autoriza ou não o reconhecimento do outro, formando cadeias de produção de produtos parecidos estética e ideologicamente.

A miséria do meio artístico, como mencionei anteriormente, é também parte da miséria social, que é visivelmente excludente. A exclusão social é uma forma de controle e dominação de uma determinada parcela da sociedade. A exclusão não existe gratuitamente. Ela ocupa uma determinada função numa determinada sociedade. Essa exclusão é constitutiva do modelo societal capitalista. Em outras palavras, não existe capitalismo sem exclusão social. É fato que antes da formação e estabelecimento do capitalismo, a exclusão social já existia. É com o advento do capitalismo, no entanto, que a exclusão se integra, paradoxalmente, ao modo de vida das sociedades modernas fazendo parte das relações sociais de dominação. A abolição da miséria é aventada sistematicamente, sem, no entanto, ter-se logrado a superação dessa histórica condição. Pelo contrário. A miséria se aprofunda. Nenhum governo resolveu ou resolverá o problema. Sem a eliminação do Estado é impossível a resolução definitiva desse problema, que é gritante e só cresce. Se mesmo com o alto grau de desenvolvimento das forças produtivas não houve alteração da condição social da grande maioria das pessoas, torna-se fundamental buscar uma compreensão dos reais motivos que impedem que se viabilize até mesmo melhorias pontuais e reformas que oxigenem a condição de miséria dos trabalhadores.

A exclusão incide única e precisamente contra setores da classe trabalhadora, que ao se verem desprovidos de tudo, passam a parasitar, adoecer, formando massas de delinquentes descolados de qualquer compromisso consigo e com o social. Por fim, o lumpemproletariado morre nas ruas sem ser percebido. Por não estar integrado às redes de mercado, do trabalho autônomo ou assalariado, tornam-se um estorvo para o Estado, sendo abandonados e deixados à própria sorte restando a estes apenas a repressão como forma de controle. A assistência aos moradores de rua, por exemplo, é feita por igrejas e algumas famílias com condição econômica. Isso num primeiro momento tem como função o alívio moral do peso que a miséria causa nas consciências; mas tais ações tem uma função muito mais política do que moral. Alimentar pontualmente as massas zeradas vem acompanhada da dominação política por meio de ideologias religiosas e políticas quase sempre conservadoras, no limite reacionárias. Essas ideologias trazem o alento e a apatia das ações mais amplas e transformadoras, projetando qualquer tipo de transformação emancipatória de caráter radical numa perspectiva metafísica, impossível, indesejada e sobretudo perigosa. Não a toa, antes de comer, pessoas em situação de rua agradecem a comida e a benção de ainda estarem vivos. Não podemos tirar o valor dessas ações, mas também é complicado admitir que isso provoque algum tipo de alteração na vida concreta dessas pessoas.

Ao morrer, dão lugar a novas massas zeradas capazes de tudo para manter a própria sobrevivência, vícios etc. Essa situação completamente possível de ser evitada é propositadamente conservada, sendo parte de um projeto de sociedade. Qualquer movimento revoltoso é imediata e violentamente reprimido pelas forças repressivas do Estado. Ainda que todas as forças sejam empregadas no sentido de justificar e criminalizar a miséria, esta não cessa de crescer, havendo picos em períodos de crise acentuada do capital. Nesses momentos de crise, não há nenhum tipo de resposta (para além da repressão) no sentido de eliminar a miséria. Os esforços são destinados à manutenção do capital, blindando as classes dominantes de qualquer responsabilidade, despolitizando e resumindo esses momentos a baderna e outros adjetivos vagos.

Especificamente nesse ponto, as mídias burguesas exercem enorme poder. São elas as vozes hegemônicas que constroem espantalhos, repetindo à exaustão máximas impactantes, tirando o foco, impedindo a resolução do problema e a organização popular. Como exemplo podemos citar o papel da mídia hegemônica nas Jornadas de Junho. A narrativa era muito agressiva contra as manifestações populares o que causou rejeição dessas mídias entre os manifestantes. Isso fez com que a Globo contratasse pessoas desconhecidas e descaracterizadas para registrar os eventos. Quando estes também foram descobertos, a estratégia passou a ser filmar do alto. A miséria do meio artístico, portanto, é parte de um problema social mais amplo, assim como se reproduz no seu interior por meio de intensas disputas por interesses muito particulares, tornando as relações e os laços frágeis e instáveis.

O contexto geral e os reflexos no meio artístico e cultural

O mundo capitalista de uma forma geral sempre foi obscuro e conflituoso. Desde as Revoluções Burguesas na Inglaterra, Alemanha e França quando se pretendia universalizar direitos básicos e uma forma de sociabilidade igualitária, o que tem sido registrado é justamente o contrário: guerras intermináveis, catástrofes e todo tipo de ônus gerado pela ganância, que parece ter se generalizado como um verdadeiro modus operandi dos indivíduos e classes sociais. No mundo contemporâneo, o neoliberalismo tomou sua forma mais acabada e brutal contra populações mais pobres, enquanto por outro lado privilegiou a acumulação exorbitante entre a burguesia e suas classes auxiliares privando os demais de direitos básicos. É claro que algum tipo de amortecimento dessas contradições foram possíveis, haja vista a necessidade do capital em se reproduzir; afinal de contas é necessário força de trabalho para mover as relações mercantis. É necessário o consumo e para isso algum nível de coesão social, mesmo que essa coesão seja baseada na violência sistemática e na privação econômica, gerando intensa austeridade contra setores subalternizados.

Pensar questões sociais amplas guarda as suas dificuldades por conta dos múltiplos processos que definem uma determinada sociedade, cultura, costumes e economia. Sem uma teoria e um método apropriado não conseguimos produzir uma leitura crítica sobre o nosso tempo nem sobre o passado. Não a toa, Marx coloca o conhecimento histórico como o de maior peso para que possamos produzir uma leitura de mundo correta, coerente, se de fato quisermos transformar a realidade concreta material. O presente é corrido e só as mãos mais hábeis conseguem tecer algum tipo de influência. Essa habilidade em alguma medida possui relação com o passado histórico. Aliás, quase nada do que se desenvolve no presente tem desconexão com o passado. Os olhos que só olham para frente agem conturbando essa relação entre presente, passado e futuro. As temporalidades, portanto, se desenvolvem a partir de uma relação dialética entre esses diferentes tempos: passado, presente e futuro.

As referências produzidas no passado nunca são deixadas totalmente para trás, a despeito das vontades egoístas dos indivíduos. Por isso, nós sempre estamos corroborando ou refutando algo. Isso não quer dizer, em absoluto, que não exista espaço para o novo, para o inédito. Apesar de ser na modernidade onde mais podemos identificar a permanência do velho (principalmente das formas de dominação), da negação do rompimento, do medo do que ainda não se conhece, ela é vendida como progresso, mas sem produzir a superação das contradições do passado. Esse paradoxo na verdade faz parte da própria concepção e natureza da modernidade, que é calcada na manutenção da dominação como elemento indispensável para o funcionamento da sociabilidade capitalista.

Por mais que os discursos sejam divagantes e até muitas vezes sedutores, na prática se encontra pouco espaço para ideias que contrariam o status quo estabelecido, não sendo diferente no campo da arte; e por mais que a modernidade tenha significado o advento do novo, para que se possa ter acesso a ele, é necessária toda uma seletividade pautada no status social de determinados setores. Eis mais uma face  do paradoxo da modernidade. Ao passo em que produziu riqueza, a miséria aumentou de forma descomunal. A modernidade, portanto, se configura como o mais alto grau de desenvolvimento do capital, de suas forças produtivas, do seu ethos em torno do fetiche da mercadoria. Por isso, o rompimento parece ser algo da ordem do impensável, soando como um desprezo aos valores mais genuínos da humanidade. Dessa forma, a luta contra o capital se torna algo anacrônico, evitável, incongruente, precisando sempre de algum mecanismo que representa o freio das revoltas populares.

Esse nó ideológico não está totalmente acessível no sentido de se compreender integralmente este fenômeno social e histórico. Esse nó está mergulhado no chorume da concepção burguesa de sociedade, hegemonizada pela classe dominante e suas classes auxiliares, mas mantida, sobretudo, pelos próprios trabalhadores, que no momento histórico se mostram incapazes de se situar no campo social de outra forma que não seja por meio da eterna submissão. Mas para ser dominado é necessária alguma moeda de troca. Há, nesse caso, uma dominação direta e outra sutil e até mesmo desejada. A dominação nesse caso está ligada diretamente a uma ideia de estabilidade, seja econômica, política ou pessoal. A dominação do capital, portanto, se complexificou. Ao mesmo tempo em que ela se manifesta de forma explícita nas suas múltiplas formas de violência, ela também está carregada de simbolismos. Nesse caso, as relações interpessoais estão sempre na iminência de se manifestarem por meio desses preceitos, ainda que a aparência diga o contrário. 

Dentro desse caldo interminável de opressões coube à arte (historicamente) se opor e elucidar novas formas de pensar, sentir e produzir expressões que almejasse a liberdade, ainda que muitas vezes pairasse no campo das ideias e das representações. Podemos sim elencar aqui inúmeros exemplos de produções e artistas comprometidos com a emancipação humana hoje e ontem, ainda que elas não estejam totalmente livres de contradições. No cinema, por exemplo, há inúmeros cineastas que buscam uma representação pautada nas lutas sociais a partir de um olhar crítico não-conciliatório. O cinema de Patrick Granja, por exemplo é apenas um dos exemplos nesse caso.

Ainda que a morte da arte já tenha sido decretada por autores como Guy Debord e reiterado por outros como Anselm Jappe, há diversas formas de resistências sendo empenhadas, ainda que contraditoriamente (o que não poderia ser diferente dado o difícil contexto sócio-histórico vigente). Mas inevitavelmente todos eles acabam por ser imprensadas pela força do capital, pelas relações mercantis utilitárias e instrumentalizadas. O resultado são mutações ou o simples perecimento de tais expressões, o esvaziamento e a miséria criativa.

Por miséria podemos definir tudo aquilo que fora rebaixado, subtraído, espoliado devido a uma demanda externa ao sujeito ou classe criadora. Essa relação é complexa e não podemos analisá-la em seus pormenores responsabilizando meramente os indivíduos, como se tal escolha fosse consciente e determinada pelas vontades narcísicas dos artistas. A criação artística e os produtores estão de uma forma ou de outra submetidos a um contexto social e histórico capaz de interferir decisivamente sobre aquilo que é criado, por exemplo autorizando ou não a reverberação de uma determinada criação artística. O capitalismo produz a seletividade, daquilo que é autorizado e desautorizado. Há exemplos clássicos de autores que não chegaram a ver o reconhecimento de suas obras, como Kafka ou compositores brasileiros como Itamar Assumpção e Sérgio Sampaio, Lula Côrtes, entre outros.

Isso coloca a arte de resistência numa espécie de limbo num primeiro momento, podendo essa condição ser modificada a depender do contexto social e das necessidades desse contexto aliado aos desejos, necessidades e mobilização de quem cria uma determinada expressão artística. Estes foram e serão sempre combatidos dentro da lógica capitalista de produção. Não podemos perder de vista que é a sociedade capitalista que oblitera as expressões artísticas mais ricas. Essa pressão obtusa e incisiva incide provocando também um entendimento particular do que vem a ser arte na contemporaneidade. Um entendimento descolado da historicidade dos movimentos artísticos de uma forma geral. O reconhecimento social consequentemente também se transmutou, colocando novos critérios para que tais expressões pudessem ser consumidas. Isso acontece sobretudo com o advento da indústria cultural, que se forja como um setor específico para lidar com a produção artística, massificando suas expressões ao ponto de também contribuir para este perecimento e emparedamento asfixiante.

O fato é que o questionamento sobre a função social da arte fora suprimido em detrimento de uma anomalia que ainda se categoriza como arte. Arte é um conceito tão amplo que quase se perde o sentido social histórico, apagando não só as lutas, mas as contribuições decisivas e aprimoramentos desse campo. De uma forma ou de outra as produções artísticas continuam ganhando espaço e influência nas sociedades, principalmente as que estão em contínuo processo de eclosão resultado das contradições geradas pelo sistema capitalista. Há um contato cada vez mais imediato com as demandas da indústria cultural que muitas vezes influencia desde a sua gênese tais criações. A arte é apropriada pelos Estados-nação, empresas e grandes conglomerados, partidos políticos de ambos espectros, setores independentes, indivíduos, grupos, etc. Nesse caso a arte, ou as artes, inevitavelmente se colocam como algum tipo de visão sobre as questões do presente, apontando para determinadas saídas (as mais variadas possíveis) com algum nível de criticidade. Por isso há muitas resistências, mas poucas expressões e produções revolucionárias, por mais que, paradoxalmente, as artes estejam impregnadas pelo contraditório contexto sociopolítico da sociedade burguesa. A miséria do meio artístico está justamente em se submeter de forma peremptória aos desígnios do capital. Tomemos como exemplo o caso da música.

A música, assim como qualquer produção artística, é resultado do contexto sócio-histórico do seu tempo. Não só os homens, mas também a arte é filha do seu tempo. Sendo assim, tais expressões reverberam questões comuns de um determinado contexto social, território e classe social que a produz. É claro que essas produções artísticas também sofrem influência direta de questões subjetivas das mais diversas, estando aí também um elemento de imprevisibilidade da música. Por mais que a música ocidental esteja organizada de uma determinada maneira, num campo harmônico funcional, escalas e intervalos, tal organização não chega a limitar a criação. Pelo contrário. De tempos em tempos, a música se transforma, resultado dos meios de produção e das forças sociais envolvidas nessa produção utilizando a estrutura musical a seu favor tornando-a infinitamente rica e variável.

Falar sobre a música como categoria abrangente é complicado. A música está dividida em estilos, épocas, instrumentos utilizados, proposta estética, harmônica e percussiva, proposta poética, orientação política e ideológica, etc. Existe a música pop, o rap, rock, punk, sertanejo e a mpb. Podemos dizer que o punk sobrevive nos esgotos, muito por conta da sua intensa apropriação pela indústria cultural, que massificou determinados ícones despolitizando a sua relação com o campo social de onde surgem intensos protestos contra as arbitrariedades do capital e principalmente contra o Estado burguês. No Brasil, ainda que tenha acontecido intensa profusão de bandas e movimentos culturais, muito pouco se propagou a nível de continuação de uma proposta musical direta, contra-hegemônica e radical no sentido estético musical e poético. O punk sobrevive em pequenos circuitos esporádicos, sem muita reverberação. Sobrevive na memória preservando algumas características em outros estilos que se apropriaram dos seus espólios. Bandas como Garotos Podres, Restos de Nada, Cólera, Olho Seco, Inocentes, Ratos de Porão, Replicantes, Plebe Rude, Gritando HC, Camisa de Vênus, entre outras, marcaram as décadas de 1970, 1980 e 1990, ao passo que os anos 2000 seria marcado por outras vertentes muito por conta da sua relação com uma sonoridade eletrônica, também resultado do avanço da tecnologia, que passou a penetrar mais profundamente a sociedade. A década de 1990 já começa a ter forte presença de sonoridades eletrônicas, baterias e sinths que produziam hits, depois massificados em subestilos como dance, trance, entre outros.

“Você é subproduto de uma sociedade violenta, de uma sociedade que te oprime, que te tira tudo o que você poderia ter direito. Então você não pode ser uma coisa muito bonita. O Punk é um espelho perverso disso.” Zorro M-19 – Botinada a origem do Punk no Brasil. Direção Gastão Moreira

“O Punk não veio só como uma maneira de protesto contra um sistema, mas sim um protesto contra a música também. Pra mudar, porque depois do punk rock a música mudou completamente.” Pierre – Cólera

Essas declarações, presentes no documentário Botinada: a origem do Punk no Brasil (2006) poderia ser de rappers que começavam a surgir na mesma época que o punk, porém ainda bastante incipiente e em outra realidade social. No seio do que seria a cultura Hip Hop, a questão racial é central, estando presente em suas narrativas a denúncia contra as arbitrariedades da polícia, do racismo que tudo atravessa e da crescente marginalização de populações periféricas. A exportação desses estilos, tanto o punk como o rap, é resultado das trocas comerciais, que não se resumem somente às mercadorias físicas. A cultura no capitalismo é importante meio de propagar o modus vivendi desse histórico sistema sócio metabólico. Sendo relação social, o capitalismo depende de meios para propagar seus ideais e valores. Dessa forma a indústria se apropria até mesmo (ou por que não, sobretudo estes!) de estilos e expressões artísticas de forte apelo contestatório já fincado em determinado segmento social por meio de sua reprodução, circulação e adesão social. Talvez a forte presença do reggae tenha aberto alguns caminhos para que o rap pouco a pouco se tornasse cada vez mais forte. A forte capacidade organizativa e produtiva dos rappers também alavancou essa exportação. Com a indústria local já em ascensão, houve importante demanda em outros países que refletiram notoriamente o rap norte americano, ainda que a sua origem tenha se dado primordialmente na Jamaica na década de 1960.

Já com o punk em profunda decadência, surge o rap como um dos representantes dos negros periféricos desejosos de mudança social sem com isso cair na esterilidade de vertentes sem compromisso social como diversos estilos já tragados pela indústria cultural naquele momento. Não a toa, a principal frase do rap no Brasil é: rap é compromisso, não é viagem, de Sabotage. Os alicerces, portanto, num primeiro momento estão fincados no compromisso social de em primeiro lugar denunciar as arbitrariedades, comprometendo-se com os desdobramentos desse movimento de afirmação e mobilização popular juvenil. Em segundo lugar, de ser a rua o palco dessas lutas, já que é nas ruas que a opressão cotidiana acontece contra jovens negros e pobres, assim como de brancos pobres, mulheres, homossexuais e demais setores subalternizados.

Na década de 1990 o rap começava a ter força com os Racionais MC´s em São Paulo enquanto no Rio de Janeiro surgia em 1993 o Planet Hemp, com Marcelo D2, Skunk, Rafael Crespo, BNegão, Formigão e Bacalhau que trazia o rap com a roupagem agressiva do rock, punk e hardcore. Foi também em 1993 que a dupla Black Alien e Speed surge sendo posteriormente forte referência para o rap a nível nacional. Nos anos 2000 surge importantes nomes como Marechal e o grupo Quinto Andar, Inumanos, Gabriel o Pensador, Xis, Kamau, Emicida, Criolo, De Leve. Já na década de 2010 em diante o rap passou por intensas mutações preservando o mínimo que o caracterizava convertendo-se em máquina de desejo de consumo e valores do capital, sendo sobretudo os nomes mais conhecidos os principais referenciais nesse tipo de perspectiva neoliberal, como é o emblemático caso de Marcelo D2 que se converteu numa espécie de caricatura ambulante de um certo ethos carioca altamente vendável. Seu filho Stephan Peixoto, o Sain, é uma espécie de síntese do rebaixamento da música rap. No jogo do capital quase nenhum artista de renome ficou de fora. Mano Brown, por exemplo, tornou-se garoto propaganda de mega empresas como a Ray-Ban e no jogo político estabeleceu contato com figuras reacionárias como Fernando Holliday buscando entendimento entre as diferentes vertentes liberais: o fascismo e um certo neoreformismo senil. Esse repetitivo processo é o que podemos denominar o ciclo dos rebeldes. Um processo já bastante usual da indústria a ponto de transformar a música numa espécie de invólucro com enxertos com tudo o que não é próprio daquele corpo. Essa complexa trama só foi possível graças a participação direta dos próprios agentes da cultura hip hop.

É complexo analisar a música em sua totalidade; mas sabemos que certas características e processos são comuns a todos os estilos, assim como outros pontos também são notados em campos diversos como a literatura, o teatro, o cinema e as artes plásticas. No Rio de Janeiro e outras cidades, há forte cena da música brasileira, de uma nova mpb se assim podemos classificar. Artistas como Julia Vargas, Chico Chico, João Mantuano, Posada, Ivo Vargas, Liniker, Juliana Linhares, Duda Brack, André Prando, Rubinho Jacobina, Fino Coletivo, Seu Pereira, entre outros. Muito dessa cena se forjou sob a base da clássica mpb que tem como referência nomes como Chico Buarque, Ney Matogrosso, Milton Nascimento, Gilberto Gil e Caetano Veloso que formam uma espécie de status quo da música brasileira, nomes que se santificaram com o passar do tempo. A nova mpb, no entanto, continuou a relegar ao ostracismo uma base fundamental da estética musical brasileira como Sergio Sampaio, Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé, Naná Vasconcelos, Walter Franco, Ave Sangria, nomes não muito cotejados pela indústria cultural. Nesse sentido, a nova mpb é uma espécie de filho bastardo de uma música já bastante explorada pelo capital, forjando personagens excêntricos prontos para serem vendidos.

No campo da arte geralmente se trata de trabalho autônomo sem qualquer vínculo empregatício. Pelo contrário. O artista, sobretudo o iniciante, com frequência vende a sua força de trabalho em outras atividades mal remuneradas para que possa, então, se dedicar a algum processo de criação artística. Sendo assim, ele está duplamente envolvido na produção/exploração, buscando fazer um contraponto entre uma atividade alienante e outra edificante, ainda que esta guarde dificuldades particulares. Essa relação contraditória se torna pesada ao longo do tempo levando o artista ou o produtor a tomar decisões sobre o empenho de suas forças e os caminhos a seguir. Se este sujeito vem de uma classe mais pauperizada, se passa a ter filhos, esposa ou tem que contribuir para a manutenção do núcleo familiar de algum jeito, geralmente o que acontece é a diminuição do empenho nas atividades artísticas e o seu consequente empobrecimento. Algumas vezes isso pode representar, inclusive, o seu completo desaparecimento contribuindo para uma espécie de desconexão profunda com parte importante de quem se é.

Para além do campo individual, isso representa também o empobrecimento da própria arte, do cinema, teatro, literatura, artes plásticas, artes performativas, música e produção das artes em geral. Esse é um movimento amplo que gera profundo impacto social, já que se deixa de construir contrapontos com relação às produções enviesadas pela indústria cultural. Há, no entanto, um mecanismo de aproveitamento de uma parcela residual dessas produções artísticas (e consequentemente seus produtores) para que se mantenha ativa a relação fetichista com a arte. Esse corpo residual é o que vai formar, num segundo momento, o catálogo da indústria cultural. Ou seja, dentro desse quadro geral de exclusão permanente de uma expressiva parcela de produtores, há aqueles que são incluídos na lógica de produção em massa da indústria cultural, construindo determinações específicas sobre valores, estéticas, conteúdos e orientações dessas obras.

A lógica excludente do trabalho, portanto, tem uma função específica na sociedade de classes, que basicamente se resume à lucratividade de determinadas obras, nunca sendo o artista ou o produtor o verdadeiro sujeito desse processo. O artista entra como sujeito assujeitado, propulsor da lógica fetichista da mercadoria. Ele legitima o processo excluindo de responsabilidade o capital e a si próprio, ainda que a sua arte seja produto do seu próprio estranhamento. Esse quiproquó maligno é construído como forma de obnubilar a verdadeira natureza da contradição, já que há, ao mesmo tempo a participação de várias forças, agentes e sujeitos sociais nesse complicado processo. O fato é que no caso do produtor ele já se encontra refém e apto a esse processo desde o início, já que geralmente suas condições materiais são precárias e está excluído das relações de trabalho com qualquer tipo de garantia.

“A indústria cultural é uma espécie de instância mediadora que passa a determinar, ela própria, a forma e a recepção das obras de arte aniquilando o momento de contemplação que se constrói justamente a partir da tensão entre sujeito e objeto.” Bruna Della Torre

A dialética da dominação é também a que aponta para a superação dessa relação social. O que se constata é que a mina de ouro da indústria cultural está justamente na miséria da base onde as mais variadas expressões artísticas são gestadas. Dado que tal lógica impregnou, sobretudo este setor (as bases), o nó da ideologia dominante se torna ainda mais difícil de desatar; de tal sorte que o processo de emancipação da arte se torna o processo de emancipação da própria sociedade, mais especificamente dos trabalhadores em luta contra o capital e sua estrutura de dominação o Estado burguês.

O ciclo da dominação é também o ciclo do uso e descarte dessas expressões artísticas. Vem da música independente, por exemplo, toda riqueza poética e estética produzida. Passando do Rock ao Soul, Jazz e Rap, o que temos é uma grande variedade sonora, cada vez mais complexa e inovadora (num certo ponto por vezes também regressiva). Antes do reconhecimento social, tem-se o conservadorismo negando, deslegitimando e analisando de forma preconceituosa aquilo que irrompe. Foi assim com o punk e com o rap, com o jazz, o samba. Essas expressões nascem de uma necessidade social, da contradição social de uma determinada época, encampada por grupos insatisfeitos que quase sempre combatem outros estilos musicais que consideram o status quo da música. O Punk, por exemplo, ironizava a Bossa Nova. Esse enfrentamento no campo cultural é reflexo das lutas de classes, fazendo emergir um novo conceito musical, forçando a decadência do outro. Já num segundo momento, o conservadorismo abre as guardas como mecanismo implícito de automanutenção, ao ponto de não mais se incomodar como antes abrindo campos até mesmo para o diálogo.

Rappers e punks então passam a tocar para públicos cada vez maiores, públicos internacionais; apresentam-se em grandes festivais com grandes nomes da música nacional e mundial, participam de programas de TV (os mais improváveis possíveis), fazem propagandas para qualquer tipo de mercadoria, claro, transformando-se numa espécie de formadores de opinião, em que opinam sobre tudo a todo momento indiscriminadamente, desde assuntos pessoais a políticos e econômicos. É nesse espelhamento com a sociedade do espetáculo que se gera o ciclo indefinido no qual os rebeldes protagonizam a inovação sonora e estética e, num segundo momento, a sua própria desgraça. O reconhecimento social nas sociedades capitalistas não está ligado nesse caso à música ou às contribuições importantes de uma banda ou um compositor específico, mas à mística fetichista construída em torno desses sujeitos. Ao reconhecimento também é imposta a conversão de valores; inclusive os que chegam ao topo é por merecimento, corroborando a perspectiva meritocrática. Mas a ponte entre cultura e capital é construída paradoxalmente pelos próprios artistas, músicos, cineastas etc. As bases dessa ponte são alicerçadas pela ausência de perspectivas capazes, em primeiro lugar, de produzir um diagnóstico condizente com as questões sociais e históricas, ao passo que são cimentadas pela própria ideologia dominante.

*Arthur Moura é cineasta e doutorando em História Social pela Faculdade de Formação de Professores da UERJ.


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