Por FRANCISCO DE OLIVEIRA BARROS JÚNIOR*
A canção que desvela a tristeza por trás das luzes natalinas serve de contraponto à festa mercantilizada, lembrando que a felicidade não é um brinquedo ao alcance de todos
1.
E o mundo não se acabou, canção de Assis Valente (1911-1958), é o título do samba choro lançado em 1938, na voz de Carmen Miranda. Em 2025, na vida a crédito, para consumo, Papai Noel esteve à nossa espera, no shopping center mais próximo. Os natais seguem luminosos e mercantilizados. O “bom velhinho” faturou com os clicks fotográficos. Sem sisudez, observei a apoteose do consumismo nosso de cada dia. “Compro, logo sou”. Décimo terceiro salário: para que te quero?
O discurso sagrado, emitido pelo padre, diz: “o Natal é, antes de tudo, aniversário de Jesus menino”. Da manjedoura ou estrebaria evangélica, simples, pobre, periférica, o mercado capitalista desloca o protagonismo para os novos santuários e catedrais consumistas, simbolizadas pelos shoppings centers.
Nestes, impera a farra dos presentes de Papai Noel com vistosas e luzentes decorações, coloridas de símbolos puxados pelos trenós e renas eurocêntricas, em uma temperatura de 40 graus. Outro barbudo, o senhor Karl Marx, já previa as atuais dessacralizações promovidas pelos tentáculos mercadológicos frios, calculistas, quantitativos, sem coração. Sem mais gastos verbais, vou ligar o meu aparelho de som.
Boas Festas, de Assis Valente, é considerada a “mais popular música natalina brasileira de todos os tempos”. Em 1933, a aclamada marcha de Natal foi lançada por Carlos Galhardo. Conforme Abel Cardoso Junior, ela “inaugurou o gênero natalino entre nós”. Uma canção evocativa dos brasis desiguais e suas apartações sociais. Letra poética e desveladora das “desigualdades sociais” e os seus desdobramentos injustos.
No miolo da composição, as “pessoas pobres” são nucleares na “música perpétua” dos espíritos natalinos. Uma concepção sonora “tão triste”, melancólica, com conteúdo de denúncia social. Uma marchinha desafinadora do coro dos contentes, vips, camarotizados, fartos e saciados nos muros vigiados dos seus Alphavilles: “…uma das mais tristes letras jamais feitas na música brasileira e que contrariava o clima natalino de suposta felicidade que tomava conta de boa parte dos brasileiros” (JUNIOR, 2014, p.174).
Contrariando os supostamente felizes, a cantada tristeza encontra sentidos na trajetória histórica de Assis Valente, o compositor e os seus tons musicais para o “natal de 1932”: “…Assis Valente passou aquela noite sozinho, e fez a marcha tomado de melancolia pelos natais que viveu na Bahia, quando lhe doía na alma o sentimento de abandono, a ausência de amigos ou parentes que com ele partilhassem a alegria da festa” (JUNIOR, 2014, p.174).
2.
Solidão de um artista melancólico, na subjetivação de seu ai doloroso e o eco provocado pelo encontro do seu eu com o nós coletivo, na profundidade da sua mensagem sociológica. Direto, claro, com a cor do seu som, o poeta pintou o seu quadro tonal para o 25 de dezembro: “um poema ao mesmo tempo de fácil compreensão popular e uma abordagem profunda tanto no aspecto pessoal e emocional quanto social do Natal” (JUNIOR, 2014, p.175).
Para Assis Valente, a tristeza da festividade noelina remete aos seus tempos de criança. Na pobreza das suas condições socioeconômicas de outrora, rebentou a concepção do seu toque sonoro para trilhar o histórico apartheid social brasileiro.
Apartação injusta, excludente, cruel e negadora dos princípios da justiça cristã, pregada pelos teólogos da libertação. A composição de Assis Valente é a sua bela e sofrida tradução. Ele não está só, na sua melodiosa mensagem e no seu nobre toque de indignação. O biógrafo registra os tons dramáticos daquele que fingiu alegria para a humanidade não lhe ver chorar: “Assis Valente sempre achou a data triste, principalmente porque tivera uma infância solitária e sem presentes. Nas entrelinhas, queria dizer exatamente isso: que havia muita gente triste no Natal porque sofria pela falta de dinheiro (JUNIOR, 2014, p.174).
Revivendo músicas, ouvimos várias versões gravadas de Boas Festas. No LP Natal Sertanejo, Biá e Dino Franco. Em 1953, Hebe Camargo e os 4 Amigos; Em 1980, Tonico e Tinoco. Em 1998, no CD 25 de Dezembro, com a participação especial da Timbalada, Simone imprimiu o seu ritmo para o clássico sonoro natalino. Diversos outros intérpretes vocalizaram a tradicional marcha natalina, entre eles (as), citamos os nomes de Gaby Amarantos e Cristiano Araújo, em dueto, e Zeca Baleiro.
A canção de Assis Valente protagonizou um incômodo episódio na nossa história. Em 1968, sob a censura ditatorial brasileira do AI-5, Caetano Veloso “cantou Boas Festas, de Assis Valente, com um revólver apontado para sua cabeça”. Atrevimento e ousadia artística experimentada no Programa “Divino Maravilhoso”, da TV Tupi de São Paulo. Atitude considerada “demais” para os amordaçadores do fechado regime militar. Um tropicalista sacudindo “as velhas convenções”.
Os “podres poderes” são afetados por uma marchinha que “…não era vibrante nem carnavalesca, e sim melancólica e natalina”, composta por um “cronista arguto de costumes”, bom “em letra e música”, colocado entre os “grandes sambistas da Era de Ouro”. Estamos no Brasil Pandeiro de Assis Valente (FAOUR, 2021, p.115).
3.
“Cancionista profícuo” dos anos dourados (1920-1930), suas marchas e sambas, em travessias intergeracionais, incluíram “composições juninas”. Na alegria festeira, a “canção crítica” entra no embalo e identifica “o compositor como intelectual da cultura” (NAVES, 2010). Toquemos Boas Festas, pérola também pescada por João Gilberto e Maria Bethânia:
Anoiteceu, o sino gemeu!
A gente ficou feliz a rezar
Papai Noel vê se você tem
A felicidade pra você me dar
Eu pensei que todo mundo
Fosse filho de Papai Noel
Bem assim felicidade
Eu pensei que fosse uma
Brincadeira de papel
Já faz tempo que pedi
Mas o meu Papai Noel não vem
Com certeza já morreu
Ou então felicidade
É brinquedo que não tem.
Do samba para o ecrã cinematográfico: De Ilusão Também Se Vive é outro título para o filme Milagre na rua 34 (1947), dirigido por George Seaton. Uma obra cinematográfica para refletirmos o “comercialismo” natalino, “o modo como comercializam o Natal”. A celebração cristã do nascimento de Jesus Cristo em suas apropriações mercadológicas. No texto fílmico antes referido, o nome do carismático líder máximo do cristianismo não é mencionado. “Mais vendas” na agitação comercial de fim de ano.
Nos brasis, “tudo por um centavo” nas promoções “black friday” dos lojistas no mês de mais uma parcela do décimo terceiro salário. Os tradicionais desfiles natalinos e as chegadas atuais de helicóptero, nos shopping centers, da estrela principal da festa sagrada/profana: Papai Noel. Estamos no contexto da vida para consumo, a crédito. “Compro, logo sou”.
A imaginação, pertencente aos nossos shows cotidianos, é usada em função de interesses diversos, incluindo os consumistas. Santa Claus no “mercado de brinquedos”. Tudo o que tem potencialidade lucrativa é apropriado pelos investimentos capitalistas.
Com a palavra, o eufórico funcionário, em regozijo com o acerto na contratação de um funcionário especial, o Papai Noel de fim de ano da sua loja: “Com este, minha seção venderá mais brinquedos que nunca. É um vendedor nato”. Sem reducionismos, uma leitura econômica, mercadológica, é apenas uma dentre outras possibilidades de pensarmos sobre os múltiplos sentidos em torno do controvertido Papai Noel.
Além de Karl Marx, um convite para lermos O suplício do Papai Noel, de Claude Lévi-Strauss. Fica a dica de um presente literário. Na trilha sonora, a voz de Bing Crosby cantando christmas classics.
*Francisco de Oliveira Barros Júnior é professor aposentado do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí (UFPI).
Referências
FAOUR, Rodrigo. História da Música Popular Brasileira, sem preconceitos: dos primórdios, em 1500, aos explosivos anos 1970, vol.1. Rio de Janeiro: Record, 2021.
JUNIOR, Gonçalo. Quem samba tem alegria: a vida e o tempo do compositor Assis Valente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
NAVES, Santuza Cambraia. Canção popular no Brasil: a canção crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
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