Na tela, setembro amarelo

Imagem: Sam
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por FRANCISCO DE OLIVEIRA BARROS JÚNIOR*

“Luz de Inverno”, filme de Ingmar Bergman, pensa o suicídio

Finalizando setembro, na companhia das lentes de Ingmar Bergman, focamos “Luz de Inverno”. Na interlocução cinematográfica, somos levados a folhear O mito de Sísifo, ensaio sobre o absurdo, de Albert Camus: “Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia”.

Em contextos absurdos, os humanos produzem sentidos sobre as suas existências. Captá-los é tarefa de uma sociologia compreensiva. Jonas Persson, em seu desespero, questiona: “Por que temos que continuar vivendo?” Angustiado e perturbado, o personagem de Ingmar Bergman está desassossegado diante do como serão usadas as bombas atômicas chinesas. Nos primórdios dos anos 1960, a sombra de um confronto bélico entre as grandes potências mundiais daquele momento histórico, gera apreensões individuais e coletivas.

Decepções políticas como um dos fatores impulsionadores de ideações suicidas. Estas não são exclusividade das especializações médicas. Émile Durkheim abre para os olhares sociológicos sobre os suicídios egoístas, altruístas e anômicos. “O elemento social do suicídio”, na ótica durkheimiana, analisa o “como a taxa de suicídios varia em função das diversas concomitantes sociais”. Em uma conjuntura histórica de incertezas, Jonas subjetiva um desamparo existencial. Sem respostas para as suas inquietudes, não encontra âncoras para integrá-lo em uma sociedade de conflitos e turbulências.

Nem mesmo a religião, na “crise de fé” do seu pastor, responde à sua angústia e perturbação. Ao “silêncio de Deus”, subjetivado pelo Vigário Tomas Ericsson, Jonas Persson explicita a sensação da distância divina: “Deus parece tão distante”. Em evocação ao calvário bíblico de Cristo, o Reverendo Tomas fundamenta a agonia do seu atormentado interlocutor: “Meu Deus, por que me abandonaste?”. A voz do pastor Tomas: “se deus não existe, isso realmente faria alguma diferença?”

“Você tem problema com dinheiro?” “Já falou com um médico? Quero dizer, você está saudável?” “Entende-se bem com sua mulher?” Estas perguntas são feitas pelo Vigário Tomas Ericsson ao angustiado Jonas Persson, atormentado pela ideia de pôr fim à sua própria vida.

Estamos diante de uma cena dramática de Luz de inverno (1962), filme dirigido por um pensador cinematográfico: Ingmar Bergman. Somos multidimensionais. As nossas necessidades não estão limitadas às demandas materiais. Nossas sedes e fomes são variadas. Carecemos de pão e poesia. As carências econômicas fazem parte de um conjunto de outras procuras humanas. Para além das buscas por comida, são plurais as nossas caçadas. De empregos a afetos, seguimos tentando satisfazer os nossos desejos.

As questões antes formuladas pelo Reverendo Ericsson revelam a complexidade do tema suicídio, exposto no texto fílmico de Ingmar Bergman. Uma leitura densa para ampliarmos os olhares sobre os sentidos das ações suicidas. Estas provocam os mais diversos discursos. Em Luz de inverno, o cineasta dialoga com as ciências humanas e sociais, em especial a filosofia e a sociologia.

O discurso psiquiátrico é um, dentre outras práticas discursivas emitidas sobre os que desistem da vida. Da obra cinematográfica para as observações cotidianas, somos estimulados a pensar os suicídios como consequências de uma conjunção de fatores. Assim sendo, falas filosóficas e sociológicas, além das médicas, contribuem para alargarmos a nossa compreensão.

“O silêncio de Deus diante das bestialidades do homem”. Questão para Ingmar Bergman, “um investigador inquieto” da alma humana, “a matéria com que tece suas histórias”. Ver Luz de inverno é penetrar na “visão de mundo” e na “postura intelectual e artística” de um cineasta complexo, denso e profundo. Na sua “originalidade como criador”, Ingmar Bergman apresenta a sua “marca autoral”, com uma “estética pessoal e inconfundível”. Vendo os seus filmes, atentos às suas bases estéticas e às fases do seu percurso cinematográfico, sentimos o prazer de olhar as criações artísticas de um talento de estilo e senso estético no seu jeito singular de fazer cinema (TEIXEIRA, 2018).

Em seus exercícios cine-filosóficos, Julio Cabrera reflete sobre “a existência e a liberdade”. “O cinema pensa” e o filósofo, através dos filmes, promove um diálogo entre Jean-Paul Sartre e Ingmar Bergman. De uma peça sartreana para um filme de Bergman, visto como um “extraordinário filósofo”, a reflexão da fala teatral de um personagem: “o inferno são os outros”. Por vias cinematográficas, “uma introdução à filosofia” (CABRERA, 2006).

*Francisco de Oliveira Barros Júnior é professor titular do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Referências


CABRERA, Julio. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. https://amzn.to/3tiAFc8

DURKHEIM, Émile. O suicídio: estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. https://amzn.to/45cN66j

TEIXEIRA, Alder. Ingmar Bergman: estratégias narrativas. Fortaleza: Premius Gráfica e Editora, 2018.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES