A agonia francesa

Imagem: Jan Kohl
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Por DANIEL AFONSO DA SILVA*

A implosão do centro político não é um acidente, mas o resultado acumulado de anos de crises não resolvidas, onde o custo de salvar a França parece ter sido a própria legitimidade do sistema representativo

1.

Era previsível – mas improvável – e aconteceu: o primeiro-ministro francês Sebastien Lecornu foi breve. Brevíssimo. Brevíssimo demais. Resistindo apenas 27 dias na função. Tendo sido escolhido e nomeado no 9 de setembro de 2025 onde permaneceu até a última segunda-feira, 6 de outubro de 2025. Menos de um mês. Sem conseguir apresentar uma ideia de política geral. Tampouco compor um novo governo, com novos ministros. Algo jamais visto na Quinta República Francesa nem em toda a história política da França.

Na véspera, no domingo, 5 de outubro, Sebastien Lecornu ainda reunia forças políticas e aglomerações partidárias para confirmar os melhores nomes dos futuros ministros. Reuniões de harmonização partidária continuavam ocorrendo. Até que pelas 10h30 da manhã foram informalmente anunciados os primeiros nomes. Os novos ministros, internamente, foram aclamados. Doze deles – num total de dezoito – advinham do governo anterior. Aquele de François Bayrou.

A maior parte desses doze virtuais ministros foi convocada para uma primeira reunião às 17h. Dessa reunião consolidou-se o novo governo. Que foi anunciado às 19h40 pelo porta-voz da presidência. Mas com novidades inesperadas expressas notadamente na nomeação surpresa de Bruno Le Maire.

Bruno Le Maire fora o ministro das finanças mais longevo da presidência de Emmanuel Macron. Acedeu ao cargo em 2017 e sobreviveu nele até a crise da dissolução da Assembleia Nacional em 2024. Retirado da função, tornou-se um Lázaro para a classe política. Alguém indesejado e indesejável. Acusado de ser o principal responsável pelo agravamento da crise financeira do país.

Mesmo assim, seguiu próximo, muito próximo, do presidente Emmanuel Macron. Sendo, por isso, agora, diante dessa nova crise, convocado, novamente, para compor o governo. Causando rumores negativos imediatos. Que desembocaram em manifestações contrárias instantâneas e conduziram Bruno Retailleau, ministro do Interior e presidente do partido Os Republicanos, a ameaçar desembarcar do governo que tinha sido somente anunciado.

Em seu entender, o primeiro-ministro Sebastien Lecornu traíra a confiança da coalizão partidária ao nomear Bruno Le Maire em segredo. Bruno Le Maire, além de próximo do presidente Emmanuel Macron, é um egresso do partido Os Republicados. E, pior: vai considerado um dos responsáveis pelos malogros eleitorais do partido. Bruno Retailleau considerou a manobra insuportável e indicou a indisponibilidade, nesses termos, de o partido Os Republicanos seguir apoiando a presidência de Emmanuel Macron.

Isso tudo no domingo. Após às 19h40 e antes das 22h. Um choque frontal. Tipo dilúvio. Com forte tempestade. Que levou o primeiro-ministro Sebastien Lecornu e o presidente Emmanuel Macron a, seguramente, passarem a noite em claro diante de uma agonia generalizada e crescente. Que ficaria insuportável para Sebastien Lecornu, que, no início da manhã de segunda-feira, 836 minutos após o anúncio dos novos ministros pelo porta-voz da presidência, apresentou a sua demissão ao presidente Emmanuel Macron, que não teve alternativa que aceitar. E, ao aceitar, levou a França a ficar, mais uma vez, sem primeiro-ministro nem governo. Uma situação lastimavelmente rotineira nos últimos tempos.

2.

Sebastien Lecornu foi simplesmente o sétimo primeiro-ministro francês desde 2017 e o terceiro e menos de um ano. Antes dele, François Bayrou ficou em Matignon do 13 de dezembro de 2024 ao 8 de setembro de 2025. Michel Barnier, do 5 de setembro ao 13 de dezembro de 2024. Gabriel Attal, do 9 de janeiro ao 16 de julho de 2024. Elizabeth Borne, do 16 de maio de 2022 ao 9 de janeiro de 2024. Jean Castex, do 3 de julho de 2020 ao 16 de maio de 2022. Édouard Philippe, do 19 de julho de 2017 ao 3 de julho de 2020.

Produzindo um empilhamento de crises desconcertante. Onde a agonia parece sem fim, ultrapassa de longe as esferas da política e dos partidos e chega à natureza da sociedade. “Les Français ne reconnaissent plus la France” [os franceses não reconhecem mais a França]. Eis o problema mais grave e profundo.

A dissolução intempestiva da Assembleia Nacional em junho 2024 adicionou notas graves a essa agonia. Após a dissolução, o regime político francês foi lançado ao desconhecido.[i] A Quinta República Francesa tornou-se disfuncional. O presidente Emmanuel Macron perdeu a integridade de sua maioria parlamentar. Sendo rigoroso, a sua força política passou a figurar em quarto ou quinto lugar na Assembleia. Fragilizando e amputando a sua capacidade de atuação assim como as do primeiro-ministro.

Eis a situação da França. Que, desde então a dissolução, navega mais intensamente por acordos irrealizáveis e soluções impossíveis.

Mas, claro, o biênio 2020-2021 também contribuiu fortemente para esse cenário. Foi o momentum da crise sanitária de Covid-19. Quando o presidente francês impôs o “quoi qu’il en coûte” [custe o que custar] para “salvar” os franceses e a França e acabou agudizando a sangria fiscal do país. Pois o custe o que custar acabou resultando em algo mais caro que a integralidade da classe política consegue suportar, saldar e quitar. Galvanizando-se, conseguintemente, uma passarela segura da agonia à anomia. Com a emergência e a afirmação de estridências como Marine Le Pen que “exige” uma nova dissolução da Assembleia Nacional e Jean-Luc Mélenchon que defende a convocação de eleições presidenciais antecipadas; ou seja, a destituição do presidente Emmanuel Macron.

3.

Por certo prisma, seguem naturais estridências como essas no interior de embates políticos e partidários. A novidade impávida do momento advém do humor dos franceses que, em coro, classificam a integralidade da classe política e dos políticos eleitos de “irresponsáveis”. Algo poucas vezes observado na história do país. Uma mistura de indiferença, estupor, descrédito, revolta e ódio gerais ao encontro dos poderes estabelecidos. “Irresponsáveis”.

Ficando apenas sobre o presidente Emmanuel Macron, reeleito em 2022, dois anos depois, a sua aprovação popular figurava em 32%. Em meados de 2025, ela passou a 17%. Com a demissão de François Bayrou e, agora, de Sebastien Lecornu, ela tende a reduzir-se à metade. Sem contar a protestação intermitente. De todos os tipos e modalidades. Mais um cenário jamais visto na história política francesa. Salvo em momentos de crises terminais. Onde moral e politicamente ninguém sabe o que fazer.

Pragmaticamente, após a demissão de Sebastien Lecornu, se o presidente Emmanuel Macron voltar a dissolver a Assembleia Nacional e convocar novas eleições parlamentares nos próximos dias, essa ambiência de anomia vai nitidamente abrir caminhos seguros para extremos à direita e à esquerda ancorados em Marine Le Pen e Jean-Luc Mélenchon.

Caso ele decida por destituir-se do Élysée em favor de eleições presidenciais antecipadas, a situação tende a ficar ainda pior pois existem dezenas – perto da centena – de candidatos virtuais a presidente da França. Um para cada angústia dos franceses. Mas, francamente, nenhum à altura da gravidade dos problemas. Que – vale redizer – vão para além das disfunções econômicas, financeiras e fiscais.

Um parâmetro recente para recompor o cenário remonta a 2008. A crise financeira de 2008 contribuiu vastamente para desconjuntar a sociedade francesa. A presidência de François Hollande, vinda logo em seguida, representou um verdadeiro salto para o caos. E, adiante, Emmanuel Macron venceu – para não dizer que deixou de perder – duas vezes Marine Le Pen, em 2017 e em 2022, para administrar uma inquestionável massa falida.

A fúria dos Coletes Amarelos – derrotados da globalização e ignorados por suas elites políticas, econômicas, sociais e culturais francesas e europeias – foi a primeira demonstração do estrago nos primeiros dias da presidência de Emmanuel Macron em 2017. A razia da crise sanitária mediante o drama do “novo normal” a partir de 2022 veio simplesmente consolidar o mal-estar.

Sebastien Lecornu não foi escolhido primeiro-ministro para fazer frente a esses problemas estruturais e estruturantes. O seu papel era simplesmente conseguir aprovar um orçamento para o país. Isso e somente isso. Mas ele nem chegou a empossar seus ministros.

*Daniel Afonso da Silva é professor de história na Universidade Federal da Grande Dourados. Autor de Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas (APGIQ).

Nota


[i] Tratei desse assunto em vários artigos postados no site A Terra é Redonda. Ver https://aterraeredonda.com.br/tag/daniel-afonso-da-silva/


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