Por EUGÊNIO BUCCI*
A rendição solícita aos ditames da técnica, que não pensa nem se compadece, é uma indignidade da razão
Quem acompanha as páginas da imprensa já viu que há um sururu festivo em torno do lançamento do novo par de óculos fabricado pela Apple. Estamos às voltas com um incontido frisson, como se dizia nos tempos pré-internet – ou um siricutico assanhado, em tupi-guarani arcaico. Artigos e reportagens propagam uma excitação estridente com o tal objeto, que, sejamos francos, tem o aspecto de uma máscara de mergulho reluzente, mas opaca.
Segundo relatos da crônica tecnófila, a traquitana custará a cifra de US$ 3.499. Dizem que é um truque de marketing. Com o preço lá em cima, a empresa pretende atrair na largada os fregueses muito ricos. Estes, então, com sua proverbial sanha ostentatória, vão se encarregar de fazer propaganda do produto, atiçando nos mais pobres a cobiça irrequieta. O fetiche do Vision Pro – esse é o nome comercial da coisa – atingirá os píncaros. Logo aparecerão na TV os jogadores de futebol descendo do ônibus, à porta dos estádios, com o negócio pregado na cara, como já fazem com bonés e fones de ouvido. Atrizes de novela. Milionários em excursão pelo Vaticano. Celebridades no restaurante.
Em seguida, o preço cairá e as multidões conquistarão o direito de olhar o que o gadget tem por dentro. Experts adiantam que imagens de uma definição assombrosa se acendem e, a poucos centímetros das pupilas do consumidor, revelam maravilhas jamais vistas ao lado das paisagens que já conhecemos. Chamam a isso de “realidade aumentada”, “realidade mista”, “realidade virtual”. Realidade-mais-que-real.
O tapa-olho duplo oferece funcionalidades sortidas. Quais serão? A correção imediata do astigmatismo do freguês? A visão noturna? Um zoom poderoso, capaz de dar close nas crateras da lua cheia? Haverá talvez um microscópio embarcado, para flagrar bactérias que flutuam no ar? Certamente, virá com um dispositivo que, em dois piscares de olhos, abre o seu extrato bancário. Mais ainda, cenas lisérgicas, alucinatórias, poderão conviver com uma objetividade criteriosa e exata. Vai ser possível contemplar de pertinho o que é uma viagem de LSD sem tomar LSD. Talvez um aplicativo de reconhecimento facial com legenda estará integrado para nos ajudar a lembrar na hora o nome da pessoa que vem nos cumprimentar toda sorridente.
Se a nova mercadoria der certo, mergulharemos em mais uma transformação radical da cultura: cada terráqueo se converterá num ciborgue ótico. É fácil de imaginar o nosso dentista portando um desses para cavoucar os nossos molares. O cirurgião também terá suas retinas turbinadas, com jeitão de piloto de caça. Logo mais, o motorista de Uber vai trafegar igualmente mascarado. O guarda de trânsito aplicará multas sem tantas falhas. A professora. A classe inteira. As massas em passeata. O casal de amantes, à noite, no quarto escuro.
Mais um tempo e os olhos dos seres humanos estarão a maior parte do tempo recobertos, escondidos. Falar com alguém, assim, olho no olho será um hábito anacrônico. Sair por aí de íris à mostra será considerado um ato de obscenidade. Mostrar os cílios em público será falta de compostura.
(A partir daqui, esta prosa vai entre parênteses. Talvez o improvável leitor nunca tenha ouvido falar dos ludistas. Eram trabalhadores ingleses que, no início da Revolução Industrial, quebravam as máquinas para protestar contra a automação e garantir seus velhos empregos. Isso nos primórdios do século XIX. Entraram para a História como militantes do ridículo. Hoje, quando criticamos as investidas impetuosas da tecnologia digital, somos um pouco ludistas. Ridículos. Mobilizamos vocabulários do passado próximo – como fez este artigo aqui, antes dos parênteses – para denunciar a técnica prepotente, que joga para o acostamento atributos humanos de que nos orgulhamos. O ludismo é inevitável.
De outra parte, a rendição solícita aos ditames da técnica, que não pensa nem se compadece, é uma indignidade da razão. Sejamos ludistas, nem que seja para não ser indignos. O que nos importa hoje não é quebrar as máquinas, mas quebrar a lógica que as ordena – e, se possível, quebrar os monopólios globais dos seus imperadores. Uma gota de humanismo, ainda que tardia.
No documentário brasileiro Janela da Alma (2001), dirigido por João Jardim e Walter Carvalho, um belo filme, o escritor português José Saramago diz que a humanidade precisou de 2.500 anos para entrar, toda ela, dentro da caverna de Platão. Com sua metáfora luminosa, mas não luminescente, Saramago critica a civilização que acredita mais em imagens eletrônicas do que nas palavras e no pensamento. Não poderia estar mais certo.
Vinte anos depois do notável Janela da Alma, o Vision Pro vem nos oferecer a caverna portátil. Suprassumo do individualismo de massa. Com seu jeitão de uma venda sólida que encaixota os olhos, com seu ar de mordaça escópica, ele nos chega como um cinto de castidade: quem aceitar usá-lo não verá mais nada além dele. Mas ele chega com a promessa de mil prazeres, como se fosse um massageador íntimo, posto que o olhar é uma zona erógena. Zona, agora, cativa.)
*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de A superindústria do imaginário (Autêntica).
Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.
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