Bolsonaro e o Artista da Fome

Imagem_Oto Vale
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por RAMON JOSÉ GUSSO*

Talvez a única forma de vencer Bolsonaro seja destruir a atenção dada a ele. Tratá-lo com a indiferença que merece, até que se torne invisível como o Artista da Fome e nos esqueçamos de sua presença

No conto “Um artista da fome”, Franz Kafka narra a saga de um artista cujo talento era ficar por prolongados dias sem comer.  Durante semanas o público vigiava o jejuador profissional, enquanto procuravam desvendar o seu truque também admiravam a sua resiliência. No início ele era a atração principal em qualquer cidade que se apresentava, mas com o tempo e com a chegada de novas atrações ao circo, o público foi perdendo o interesse pelo seu espetáculo. Ele continuava a jejuar, cada vez por mais tempo, mas ninguém lhe dava a atenção devida. Os dias se passaram até que funcionários à procura de jaulas para acolher novos animais encontram uma vazia com um amontoado de palha. Ali estava o artista da fome, já quase morto como indivíduo, mas há muito esquecido como artista. Morreu abandonado pelo público e por todos no circo, morreu também porque foi incapaz de encerrar o seu próprio espetáculo, pois não sabia fazer qualquer outra coisa.

Durante a pandemia do Covid-19 no Brasil, que já vitimou mais de 100 mil pessoas, maior que qualquer outro empreendimento bélico-militar que o país tenha participado, como as Guerras do Paraguai (1864 a 1870)[i], Canudos (1896 a 1897) ou do Contestado (1912 a 1916)[ii], aprendemos, em geral, com as autoridades sanitárias e a imprensa medidas importantes para diminuir o contagio como ficar em casa, usar máscaras em espaços públicos, evitar aglomerações e apertos de mãos. Por outro lado, temos a figura do Presidente da República que constantemente sai às ruas de Brasília para se apresentar ao seu público, contrariando todas essas recomendações. Ele já comeu lanches em barracas de ambulantes; tirou fotos, faz passeios de jet-ski e de motocicleta, cumprimenta de seus fãs, em certa vez, em uma das cenas mais bizarras que promoveu, apertou a mão de uma senhora idosa após ter esfregado sua mão em seu nariz. Mesmo quando contraiu a Covid-19 fez aparições, em outra cena bizarra foi picado por uma ema. Em todas estas situações está cercado de seguranças.  Bolsonaro estimula assim, com sua presença, a formação de aglomerações como um ato deliberado, como nas inúmeras manifestações golpistas que participou. O uso de máscara não faz parte da sua rotina, raramente ela esteve presente tapando a boca de Bolsonaro.

Nos noticiários diários ao longo desta pandemia muitos comentaristas se mostraram espantados como o show promovido por Bolsonaro, como se ele estivesse alheio à pandemia. Muitos pediam bom-senso ao presidente, o que parece ser o mesmo que pedir a um bêbado que tenha equilíbrio.

Toda a carreira política de Bolsonaro foi construída no confronto ao bom-senso, construiu sua imagem a partir de falas grotescas, intimidadoras, frases que causam indignação em diversos setores da sociedade, principalmente àqueles que se mobilizam à esquerda e que defendem pautas vinculadas aos direitos humanos e a temáticas identitárias.

Com o tempo aprendeu que esse jogo de palavras e de atitudes tinha um efeito positivo para o personagem que construiu após deixar o exército e se lançar na carreira política. Armou-se, literalmente, deste instrumento de comunicação e foi construindo inimigos para atacar e se fazer permanentemente presente na cena política. Quando se tornou um personagem conhecido nacionalmente, encontrou em Jean Wyllys um meio para o seu discurso homofóbico, em Maria do Rosário para o seu machismo, em Dilma para a defesa da tortura. Também soube muito bem mobilizar atores e meios em sua defesa: Moro foi um meio para àqueles que veem no PT e na corrupção o único mal do Brasil; Paulo Guedes para sua ignorância em assuntos econômicos; o nióbio para a defesa da mineração; ministra Damares para as pautas conservadoras, a cloroquina continua sendo a sua muleta diante de um cenário de elevação de mortes. Agora os generais de pijama são o seu instrumento que precisa para impedir ações contra o seu governo no STF e para passar uma imagem de que, apesar de tudo, seu governo é tecnocrático.

Em cada ataque ou discurso há um efeito em seu público, que em parte o adoram como se fosse um artista de tevê e aderem às suas mais insanas estratégias de enfrentamento do mundo e ao bom-senso. Bolsonaro sabe muito bem como encenar o seu personagem, atrair para si a atenção do público e da imprensa, com ou sem os robôs que invadem os whatsapp diariamente do seu tio e de sua mãe.  Querendo ou não, defendendo ou atacando, damos a Bolsonaro o espaço e a atenção que deseja, inflamos ainda mais o ego de alguém que precisa deste espetáculo para se sentir vivo, independente do que esteja acontecendo ao seu redor. Enquanto houver público para o seu narcisismo, para o seu show de horror, ele estará lá, este é o seu marketing pessoal, que tanto influencia o modo de agir de outros novos líderes radicais da direita bolsonarista, que já fizeram o devido benchmarking.

Talvez a única forma de vencer Bolsonaro seja destruir a atenção dada a ele. Tratá-lo com a indiferença que merece, até que se torne invisível como o Artista da Fome e nos esqueçamos de sua presença. Infelizmente, para o nosso azar, Bolsonaro sabe que poucos conseguem ficar indiferentes aos seus atos e palavras. Neste circo ele ainda é o personagem principal.

*Ramon José Gusso é doutor em Sociologia-Política Universidade Federal de Santa Catarina.

Notas:

[i] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/coronavirus-matou-tantos-brasileiros-quanto-a-guerra-do-paraguai.shtml

[ii] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/07/01/ha-100-anos-o-fim-da-sangrenta-guerra-do-contestado

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES