A destruição do Brasil

image_pdf

Por BERNARDO RICUPERO*

Desde a crise do coronavírus, a destruição promovida por Bolsonaro e seu governo ganhou uma urgência e literalidade que não se podia imaginar.

“Aliás, João Gilberto para mim é exatamente o momento em que isto aconteceu: a informação da modernidade musical utilizada na recriação, na renovação, no dar um passo à frente da música popular brasileira….” (Caetano Veloso).

No já tristemente famoso discurso em jantar na Embaixada do Brasil em Washington, em 17 de março de 2019, Bolsonaro afirmou: “o Brasil não é terreno aberto, onde nós pretendemos construir coisas para nosso povo”. E explicou: “nós temos que desconstruir muita coisa para depois recomeçarmos a fazer”. Não resta dúvidas que a ocasião era especial, já que o presidente, na sua primeira visita aos EUA, encontrava expoentes da extrema-direita, como o “estrategista” Steve Bannon, o “investidor” Gerald Brant e o “guru” Olavo de Carvalho.

Os propósitos destrutivos de Bolsonaro contrastam com boa parte da reflexão mais importante sobre o Brasil. Como notou Paulo Arantes (1992), curiosamente parcela significativa dos trabalhos mais relevantes sobre o país ostenta a palavra “formação” no título. Fazem parte desse “quase gênero”, livros como Formação do Brasil contemporâneo (1942), de Caio Prado Jr., Formação econômica do Brasil (1959), de Celso Furtado, e Formação da literatura brasileira (1959), de Antonio Candido [1].

O “ar de família” dessa bibliografia não é mero acaso, já que o militante comunista, o economista e o crítico literário refletiam a partir de um país que foi colônia e aspirava se tornar nação. Em outras palavras, desejava superar a subordinação para passar a ser mais autônomo.

Por outro lado, como notou Roberto Schwarz (1999), essa aspiração se manifesta de forma diferente em variadas dimensões. Uma coisa é falar em formação da literatura, processo pelo qual, como mostra Candido, por volta do final do século XIX, se constituiu um “sistema literário”, composto por produtores (escritores), público (leitores) e uma linguagem que possibilita a comunicação entre eles. Outra coisa é tratar da formação econômica.

Furtado, não por acaso, discutiu em um dos seus últimos trabalhos a “construção interrompida”. Ele percebeu, no final do século XX, que a “emergência de um sistema cujo principal centro dinâmico é o mercado interno” já se tornara uma meta distante. Já Prado Jr., mostrou que a colônia de exploração, “simples negócio”, traria a potencialidade de se transformar numa sociedade original, o que contrasta com as colônias de povoamento da Inglaterra na América do Norte, que não passariam de um prolongamento da Europa.

No que pese as diferenças de elaborações, são notáveis as coincidências na “obsessão com a formação”, presente em áreas que nos acostumamos a pensar como praticamente incomunicáveis, como a literatura e a economia. Não menos significativo é como o mesmo raciocínio pode ser usado para pensar outras experiências brasileiras.

Talvez a referência à “formação” funcione especialmente bem para lidar com o que se convencionou chamar de música popular brasileira (MPB), como já apontou Caetano Veloso há mais de cinquenta anos. João Gilberto, assim como Machado de Assis, foi capaz de absorver o melhor de uma tradição e transformá-la. No caso, sua inovação – a peculiar batida de violão – partiu do samba, símbolo da identidade brasileira desde a década de 1930, para modificá-lo, por influências do “samba canção” ou do jazz norte-americano [2].

Não deixa de ser reveladora a reação de Jair Bolsonaro à morte de João Gilberto. Instigado a comentá-la, simplesmente respondeu: “(era) uma pessoa conhecida. Nossos sentimentos à família, tá o.k.?”. Ou seja, a manifestação do presidente deixa claro que lhe indiferente a morte de um dos maiores músicos brasileiros. O chefe da nação pode, no máximo, oferecer condolências protocolares à família.

É possível argumentar que não se poderia esperar outra coisa de Bolsonaro. Afinal, como deixou claro no jantar na embaixada brasileira em Washington, ele foi eleito para “desconstruir muita coisa”. E o Brasil de João Gilberto certamente não é o Brasil de Bolsonaro. É justamente o “terreno” que o músico ajudou a construir que o presidente pretende destruir. Coincidência ou não, o primeiro álbum do baiano de Juazeiro, “Chega de Saudades”, apareceu em 1959, mesmo ano da publicação de Formação da literatura brasileira e Formação econômica do Brasil.

A burguesia brasileira ajudou a eleger Bolsonaro com a intenção explícita de pôr abaixo o que resta do Estado desenvolvimentista que Furtado ajudou a criar. Há cerca de quarenta anos escutamos a ladainha de que ele é ineficiente e deve ceder lugar ao mercado, onde seus agentes, ao perseguirem benefícios próprios, trariam riqueza para o conjunto da sociedade.

Outros votaram em Bolsonaro em reação contra o “marxismo cultural”, espantalho que acaba equivalendo a qualquer forma de pensamento crítico ou manifestação artística inconformista, tais como as criações de Candido, João Gilberto e o melhor da cultura brasileira.

Não há novidade em dizer que o projeto de Bolsonaro é destrutivo. O próprio, assim como os intelectuais a seu serviço, nunca esconderam isso.

Também pode-se dizer que a referência à “formação” já não faz mais sentido, como se tem insistido desde pelo menos os anos 1990. Momento em que a “globalização” avançava, impossibilitando projetos autárquicos. Além de tudo, desde então, ficou mais claro que os países que nos serviam de modelo já não eram tão bem integrados como imaginávamos. Significativamente, começou-se a falar então de “brasilianização” do mundo.

No entanto, desde a crise do coronavírus, a destruição promovida por Bolsonaro e seu governo ganhou uma urgência e literalidade que não se podia imaginar dois meses atrás. Ironicamente, um dos poucos instrumentos com que o Brasil conta para combater a pandemia é um produto tardio do ímpeto de construção anterior: o Sistema Único de Saúde (SUS), criado na Constituição de 1988, como resultado de uma “coalizão” de médicos sanitaristas.

Em contraste, a atual equipe econômica neoliberal pretende aproveitar a oportunidade oferecida pela crise para “flexibilizar” o que ainda ficou da legislação trabalhista com o pretexto de estimular o emprego. Isso para não falar das mortes causadas pela sabotagem por parte do presidente e de seus auxiliares do imprescindível isolamento social, justificado, quando tanto, por um raciocínio próximo ao darwinismo social.

É preciso, portanto, deter Bolsonaro. O custo, se não agirmos logo, pode ser alto demais: simplesmente não termos mais terreno algum sobre o qual construir.

*Bernardo Ricúpero é professor de ciência política na USP. Autor, entre outros livros, de Sete lições sobre a interpretação do Brasil (Alameda).

Notas

[1] Sobre a literatura a respeito da formação, cf. Rafael Marino, As figurações da formação no pensamento brasileiro.

[2] Ver GARCIA, Walter. Bim bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto.

Referências

ARANTES, Paulo. Providências de um crítico literário na periferia do capitalismo”. D´INCAO, Maria Angela e SCARABANTOLO, Eloísa F. Dentro do texto, dentro da vida: ensaios sobre Antonio Candido. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

GARCIA, Walter. Bim bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.

MARINO, Rafael. As figurações da formação no pensamento brasileiro. Curitiba: Appris, (no prelo).

SCHWARZ, Roberto. “Os sete fôlegos de um livro” in Sequencias brasileiras, São Paulo, Companhia das Letras, 1999.

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
3
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
4
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
5
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
6
A riqueza como tempo do bem viver
15 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: Da acumulação material de Aristóteles e Marx às capacidades humanas de Sen, a riqueza culmina em um novo paradigma: o tempo livre e qualificado para o bem viver, desafio que redireciona o desenvolvimento e a missão do IBGE no século XXI
7
A crise do combate ao trabalho análogo à escravidão
13 Dec 2025 Por CARLOS BAUER: A criação de uma terceira instância política para reverter autuações consolidadas, como nos casos Apaeb, JBS e Santa Colomba, esvazia a "Lista Suja", intimida auditores e abre um perigoso canal de impunidade, ameaçando décadas de avanços em direitos humanos
8
Norbert Elias comentado por Sergio Miceli
14 Dec 2025 Por SÉRGIO MICELI: Republicamos duas resenhas, em homenagem ao sociólogo falecido na última sexta-feira
9
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
10
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
11
Ken Loach: o cinema como espelho da devastação neoliberal
12 Dec 2025 Por RICARDO ANTUNES: Se em "Eu, Daniel Blake" a máquina burocrática mata, em "Você Não Estava Aqui" é o algoritmo que destrói a família: eis o retrato implacável do capitalismo contemporâneo
12
A anomalia brasileira
10 Dec 2025 Por VALERIO ARCARY: Entre o samba e a superexploração, a nação mais injusta do mundo segue buscando uma resposta para o seu abismo social — e a chave pode estar nas lutas históricas de sua imensa classe trabalhadora
13
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
14
Benjamim
13 Dec 2025 Por HOMERO VIZEU ARAÚJO: Comentário sobre o livro de Chico Buarque publicado em 1995
15
Violência de gênero: além do binarismo e das narrativas gastas
14 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Feminicídio e LGBTfobia não se explicam apenas por “machismo” ou “misoginia”: é preciso compreender como a ideia de normalidade e a metafísica médica alimentam a agressão
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES