A derrota do bolsonarismo?

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Por BERNARDO RICUPERO*

No eventual retorno do bolsonarismo se pode até dispensar Bolsonaro

“Pode ser que o thatcherismo não deva, no final das contas, ser julgado em termos eleitorais – independente da importância que esses momentos têm na mobilização política. Ele deve, em sentido contrário, ser julgado em termos do sucesso ou fracasso que teve em desorganizar o movimento operário e as forças progressistas, em deslocar os termos do debate político, em reorganizar o terreno político e mudar o equilíbrio das forças políticas em favor do capital e da direita” (Stuart Hall e Martin Jacques).

O segundo turno das eleições de 2022 foi o mais acirrado das eleições presidenciais brasileiras. Nele, o candidato da oposição, Luís Inácio Lula da Silva, recebeu 51,9% dos votos contra 49,1% do presidente, Jair Bolsonaro.

Não se deve subestimar o significado da vitória de Lula. É a primeira vez, desde que a reeleição foi instituída em 1997, que o presidente em exercício perde uma disputa. Além de tudo, Jair Bolsonaro usou a máquina governamental como nunca tinha sido feito antes no Brasil. Sua principal cartada, a chamada PEC Kamikaze, teve custos estimados de R$ 41 bilhões. No próprio dia do segundo turno, 30 de outubro, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) realizou, de maneira no mínimo suspeita, uma série de blitzes concentradas em estradas do Nordeste – região onde Lula tem mais apoio – criando embaraços para ônibus que traziam eleitores para votarem.

Ou seja, o feito da candidatura da oposição não é desprezível. Conseguiu reunir uma frente ampla, nos moldes daquela que existiu durante a ditadura, em defesa da democracia que barrou as intenções autoritárias do atual presidente e de seus apoiadores. Por outro lado, não se pode esquecer que Bolsonaro teve praticamente a metade dos votos. Esta é, além de tudo, a segunda eleição que o capitão reformado recebe quase metade ou mais dos votos; no 2º turno de 2018, 55,1% dos eleitores tendo votado nele.

O eleitorado bolsonarista é basicamente aquele que, desde 2006, votou no Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) contra candidatos do Partido dos Trabalhadores (PT). Tal continuidade é percebida principalmente pelo mapa eleitoral, com regiões como o Centro-Oeste e o Sul tendo, em quatro das últimas cinco eleições, escolhido adversários do PT. Já os petistas venceram, desde então, todas as disputas no Nordeste. Já o Norte e o Sudeste são regiões mais instáveis, a primeira tendendo para o PT, a segunda se inclinando para seus adversários.

Em outras palavras, a grande mudança, ocorrida desde 2018, se deu com o adversário do PT: que deixou de se identificar com a centro-direita passando a ser de extrema direita. Essa transformação repercutiu no sistema político mais amplo. Se a direita se encontrava, desde a ditadura, numa posição defensiva, sendo raros aqueles que se identificavam com tal posição política, os quatorze anos de governos petistas estimularam que os direitistas como que “saíssem do armário”.[1]

Criou-se especialmente na internet o que Camila Rocha (2021) chamou de um “contra-público digital” que, a partir da percepção que a esquerda exercia algo como uma hegemonia cultural, procurou estabelecer uma direção intelectual e moral alternativa. Para tanto, serviu-se também de instrumentos mais tradicionais, como think tanks, além de criar ou se apropriar de editoras, revistas etc.

Com um movimento originalmente de esquerda, as “Jornadas de junho” de 2013, a direita foi às ruas. Alimentou-se das denúncias de corrupção da Operação Lava Jato e foi, pouco depois, a principal promotora dos grandes atos, nos quais manifestantes se vestiram de verde e amarelo, para defenderem o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. O apogeu de tal processo de mobilização ocorreu, em meio a uma situação de verdadeiro caos político, com a eleição como presidente em 2018 de Jair Bolsonaro, até então um obscuro deputado.

A extrema direita no governo, diferente dos governos do PSDB e mesmo do PT, que foram desmobilizadores, promoveu uma agitação permanente. Mesmo durante a pandemia, manifestações foram chamadas que protestavam contra as medidas de isolamento social favorecidas por diversos governos estaduais. No calendário bolsonarista, o Sete de Setembro – no qual apareceram frequentes alusões a um anunciado golpe – ganhou especial importância.

Desde a derrota de Jair Bolsonaro, em 30 de outubro, atos têm se espalhado pelo Brasil. Bloqueios foram promovidas em diversas estradas e manifestantes têm se reunido em frente a quartéis para pedir uma “intervenção militar”, chegando a promover arruaças, como ocorreu em Brasília, no dia 12 de dezembro. Mas até quando pode se manter a mobilização? Mais importante, terá o bolsonarismo capacidade para continuar a disputar a hegemonia?

Para tentar a começar a responder a essas questões, talvez valha a pena se servir do exemplo de um outro caso de projeto de hegemonia, o do thatcherismo. Até porque na Grã-Bretanha, de mais de quarenta atrás, a direita também se envolveu, como não se tinha notícia até então, numa agressiva campanha para definir o que seria a nação. No entanto, penso aqui simplesmente em realizar um exercício, que use livremente o exemplo britânico para se pensar as possibilidades e os limites da conjuntura brasileira atual.

Em dezembro de 1978, cinco meses antes das eleições que levariam o Partido Conservador ao poder, Stuart Hall escreveu o artigo, “The great right moving show”, no qual cunhou o termo “thatcherismo”. No texto, aparecido na Marxism Today, revista teórica do Partido Comunista da Grã-Bretanha, assinalou uma virada à direita na política britânica, que se personificaria em Margaret Thatcher. No entanto, a deriva direitista dataria de antes, aparecendo desde o final dos anos 1960 como reação às aspirações libertárias que então ganharam impulso.

Em termos mais imediatos, o fundador dos Cultural Studies presta atenção – como era comum em seus trabalhos políticos – à conjuntura, o que contribui para que ressalte a indeterminação do momento em que escrevia, no qual ainda não era claro se o thatcherismo era um fenômeno superficial ou com impactos mais profundos.[2] De qualquer maneira, na conjuntura contradições diferentes, vinculadas a momentos históricos variados, se encontrariam.

Em outras palavras, a conjuntura seria o terreno por excelência da disputa política. Num sentido mais específico, como esclarecem posteriormente Stuart Hall e o editor da Marxism Today, Martin Jacques, a conjuntura do thatcherismo combinaria (1) o declínio, a longo prazo, da economia britânica; (2) o colapso do consenso social-democrata, estabelecido no segundo pós-guerra; (3) o início, devido à instalação recente de armas nucleares na Europa ocidental, de uma “nova Guerra Fria” (Hall e Jacques, 1983).

Refletindo, em grande parte, essas tendências, o thatcherismo, segundo a interpretação desenvolvida por Stuart Hall em diversos artigos aparecidos ao longo da década de 1980 principalmente na Marxism Today, seria uma ideologia que articularia diversos elementos discursivos. Amalgamaria, mais especificamente, numa unidade contraditória, o conservadorismo tradicional com o neoliberalismo emergente.

O apelo ao Império, à família, à raça, em termos organicistas, conviveria com a defesa do auto-interesse, da competição, do anti-estatismo, em termos individualistas. Tem-se a impressão, em certos momentos, de que o autor está pensando mesmo na aparição de uma espécie de sujeito thatcheriano: ele seria ao mesmo tempo patriarcal e empreendedor, se identificaria tanto com uma noção etnocêntrica da nação como com o livre-mercado. Nesse sentido, defende que se estaria diante de um projeto tanto regressivo como progressista. Mais especificamente, os valores esposados pela primeira-ministra britânica e seus seguidores seriam regressivos, mas buscariam promover uma modernização, ou mais especificamente, uma modernização regressiva.[3]

A ideologia thatcherista conseguiria construir um povo e uma nação que se colocariam contra os sindicatos e as classes, supostamente identificados com o Partido Trabalhista. Ao identificar o povo com a autoridade e a ordem se estaria diante, segundo Stuart Hall, de um populismo autoritário. Combinando “coerção” e “consenso”, procuraria impor, “por cima”, um novo regime de disciplina social que seria preparado “por baixo”, por inseguranças e medos difusos.

O thatcherismo se colocaria especialmente contra o anterior consenso social-democrata, que definira a política britânica desde o final da Segunda Guerra Mundial. Mais especificamente, teria se formado então um acordo corporativista entre capital, trabalho e Estado. Isso se traduziria, em termos de política econômica, na substituição do keynesianismo e a busca do pleno emprego pelo monetarismo e o combate à inflação. Se procuraria, consequentemente, desmantelar o Estado de bem-estar-social por meio da desregulação e da privatização.

Por trás do thatcherismo se poderia perceber a existência de algo que, nos termos de Gramsci, poderia ser chamado de um novo bloco histórico. Se identificaria com a nova faceta do Partido Conservador especialmente o grande capital e as camadas médias do setor privado e não do setor público. Mas também estariam prontos a votar na filha de um modesto dono de mercearia setores da classe trabalhadora que não mais se entenderiam automaticamente como eleitores trabalhistas. O apelo do “capitalismo popular” seria particularmente forte entre operários qualificados e trabalhadores de escritório. Em termos ainda mais radicais, Stuart Hall explicita, na Introdução a Hard road to renewal: Thatcherism and the crisis of the left (1988)livro que reúne boa parte dos seus artigos de conjuntura – que seria difícil precisar a quais interesses de classe o bloco histórico thatcherista corresponderia até porque estaria empenhado em redefinir esses interesses em novos termos políticos e ideológicos.

No que se refere ao discurso, se criaria, um novo senso comum reacionário. Manipularia, dessa maneira, crenças difusas, sugerindo, por exemplo, que a economia deve ser administrada como o orçamento doméstico. Em termos mais ousados, disputaria a maneira de se entender o Estado e a sociedade civil. Ao tratar, por exemplo, dos serviços públicos aqueles que fazem uso deles não mais seriam entendidos como cidadãos, mas como consumidores.

Ou seja, Stuart Hall insiste que por trás do thatcherismo haveria um projeto, que buscaria realizar objetivos estratégicos de longo prazo. Em poucas palavras, a primeira-ministra britânica e seus aliados procurariam criar uma hegemonia, o que implicaria na “luta e disputa para desorganizar uma formação política; assumir uma posição de direção (…) sobre um número de diferentes esferas sociais – a economia, a sociedade civil, a vida intelectual e moral, a cultura; a realização de um tipo de enfrentamento amplo e diferenciado; a obtenção de parte considerável do consentimento popular; e, assim, a garantia da criação de uma autoridade social suficientemente forte para conformar a sociedade num novo projeto histórico” (Hall, 1988, p. 7).

O thatcherismo buscaria, portanto, reconstruir e redefinir o terreno político, modificando sua própria lógica por meio da alteração do equilíbrio de forças e da criação de um novo senso comum. Muito da sua força viria precisamente de seu radicalismo; já que estaria pronto a romper com o molde político anterior e não simplesmente reordenar os elementos que o compunham. Nesses termos, mais do que a vitória eleitoral a líder conservadora buscaria ocupar o poder, transformando o Estado para reestruturar a sociedade civil. Mas mais propriamente que hegemonia se trataria de um projeto de hegemonia, que corresponderia a um processo em permanente disputa.

Em compensação, muito da dificuldade da esquerda em lidar com o thatcherismo adviria precisamente de ter subestimado sua novidade. Não seria, consequentemente, capaz de formular uma estratégia contra-hegemônica. Mesmo assim, a interpretação da Marxism Today sobre as mudanças na política britânica é muito influente, repercutindo diretamente na metamorfose do Labour em New Labour. Com a vitória do partido nas eleições 1994 e a ascensão de Tony Blair ao cargo de primeiro-ministro, muitos dos intelectuais que escreviam para a revista tornam-se assessores do novo governo.

Stuart Hall (2017), porém, não demonstra muita simpatia pelo trabalhismo em suas novas vestes. Num artigo sugestivamente intitulado “The great moving nowhere show”, publicado em 1998 num número especial da Marxism Today – revista que deixara de existir – chama a atenção para como o jovem primeiro-ministro se movia no mesmo terreno estabelecido pela antiga primeira-ministra. Em outras palavras, é provável que só então tenha se realizado mais plenamente o projeto de hegemonia thatcherista.

As diferenças entre o thatcherismo e o que já é chamado de bolsonarismo são evidentes. Elas estão no próprio tempo e no lugar que os dois movimentos aparecem. Margaret Thatcher tomou conta e transformou, primeiro, o Partido Conservador e, depois, a Grã-Bretanha, na passagem dos anos 1970 para os anos 1980, o que ajudou a conformar o que ficou conhecido como neoliberalismo. Jair Bolsonaro fez uso de um partido de aluguel, o Partido Social Liberal (PSL), para levar adiante seu projeto destrutivo, na passagem da década de 2010 para a década de 2020, período de crise do neoliberalismo. Não menos importante, a britânica atuou no centro, mesmo que decadente, e o brasileiro na semiperiferia do capitalismo. Ou seja, o exercício de comparação do bolsonarismo com o thatcherismo deve partir de suas dessemelhanças.[4]

Refletindo esses contrastes, a conjuntura do bolsonarismo é diversa da do thatcherismo, apesar de nela também se condensarem contradições de momentos históricos variados. Vive-se uma estagnação econômica que dura mais de quarenta anos, já se aproximando da longa duração e que coincide com o declínio do desenvolvimentismo. Já em termos de média duração, o pacto democrático da Constituição de 1988, elaborado com o fim da ditadura civil-militar, tem sido fortemente atacado. Finalmente, desde a crise financeira de 2008, tem emergido, no bojo da crise do neoliberalismo, uma extrema direita atuante em todo mundo e, quase sempre, crítica da globalização.

No entanto, na atitude diante do neoliberalismo o bolsonarismo se diferencia de boa parte da extrema direita mundial. Em contraste, por exemplo, com o trumpismo e sua defesa de políticas protecionistas, que “trariam de volta” empregos norte-americanos, a extrema direita brasileira acabou se identificando com o receituário neoliberal. O marco de tal adesão foi a escolha de Paulo Guedes como ministro da Economia. Sinal da crença nos poderes taumaturgos do PhD pela Universidade de Chicago e das doutrinas que corporificaria foi a propaganda eleitoral de 2018, quando o economista foi convertido em “posto Ipiranga”, supostamente capaz de resolver todos os problemas nacionais.

Num sentido mais profundo, o neoliberalismo nunca foi questionado no debate público brasileiro, se identificarmos tal discussão com aquela realizada no âmbito da grande mídia. É verdade que se pode duvidar até que ponto Bolsonaro esteve empenhado em promover políticas liberalizantes, como ficou explícito na tramitação da Reforma da Previdência. Por outro lado, a defesa de valores vinculados ao “empreendedorismo” é um ponto importante da retórica bolsonarista.

Em termos discursivos, o bolsonarismo, assim como o thatcherismo, promoveu um curioso amálgama de linguagens bastantes díspares.[5] Mas mais do que a Grã-Bretanha de Thatcher ou os EUA de Trump, o discurso político do capitão reformado remete àquele formulado por um presidente norte-americano anterior, Ronald Reagan. Em ambos os casos, a peculiar combinação de “liberalismo econômico” com “conservadorismo social” assumiu tons neopentecostais. Tais características estão relacionadas ao que Wendey Brown (2016) chamou de desprivatização da religião, que já não se restringe às crenças pessoais e invade a política.[6] Mas assim como na Grã-Bretanha thatcherista, no Brasil criou-se mesmo uma espécie de sujeito bolsonarista, também conhecido como “cidadão de bem”: temente a Deus e defensor do livre-mercado; patriota, mas pronto a bater continência para a bandeira dos EUA.

Se o thatcherismo se voltou contra o consenso social-democrata do segundo pós-guerra, o bolsonarismo se insurge contra o acordo democrático expresso na Constituição de 1988. Elaborada depois da ditadura civil-militar, correspondeu, como apontam Cícero Araújo e Leonardo Belinelli (2022), a um pacto social que buscava especialmente reparar a “dívida social” brasileira, privilegiando as camadas mais baixas dos setores populares, mas que, a princípio, não bloquearia as expectativas de ascensão social das camadas médias. Entre suas principais medidas esteve, por exemplo, a expansão da previdência social aos trabalhadores rurais, o que tornou difícil financiar uma iniciativa como essa. Tal situação abriu caminho para que, há algum tempo, economistas ortodoxos apresentam o verídico de que nosso pacto democrático é fiscalmente insustentável. Não deixa de ser significativo que o principal marco da redemocratização é também a Constituição de 1988.

O bolsonarismo, por sua vez, identifica praticamente todo o período democrático com a “esquerda”. Nessa referência, não haveria grande diferença entre os governos Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva, apesar das disputas acirradas, protagonizadas durante mais de vinte anos por PSDB e PT. Paulo Guedes, por exemplo, no seu discurso de posse no Ministério da Economia, afirmou: “depois de trinta anos de aliança política de centro-esquerda, há uma aliança de conservadores, em princípios e costumes, e liberais na economia” (Guedes, 2019: 1). Indo além, a “esquerda” corresponderia ao “sistema”, contra o qual Bolsonaro e seus seguidores se mobilizam para modificar o terreno político (Nobre, 2022).

Para sustentar tal projeto se percebe a presença de uma aliança entre diferentes setores sociais, podendo-se caracterizá-la como correspondendo, grosso modo, ao que André Singer recentemente chamou de bloco agrário-militar-evangélico.[7] O apoio do chamado agronegócio ao bolsonarismo foi garantido especialmente evitando invasões de terra e limitando o combate à devastação ambiental. Já a relação do capitão reformado com seus antigos companheiros de armas é bastante ambígua; ambos parecem querer se servir um do outro numa relação que é marcada pela incerteza. Por fim, os motivos de evangélicos respaldarem Bolsonaro também são, em grande parte, pragmáticos, estando relacionados à defesa da chamada pauta de costumes. Com tal suporte garante-se, em compensação, uma importante base popular para o bolsonarismo.

O que tem mantido essa coalizão heterogênea unida tem sido principalmente seus inimigos, ou melhor, a imagem que se faz deles, desempenhando tal papel, “petistas”, “comunistas”, “o sistema” etc. Não por acaso, o espectro do comunismo – que devido à sua ausência real, depois do fim da Guerra Fria, tem um caráter especialmente fantasmagórico – desempenha um papel central ao estabelecer a cola de medos que mantém juntos os diferentes grupos que se identificam com aquele que seus seguidores chamam de Mito.

Mas mais do que elaborar um “senso comum reacionário”, o bolsonarismo expressa a difusão anterior de uma visão de mundo com essa orientação. Beneficiou-se, em especial, dos mais de trinta anos de vigência do neoliberalismo, que fez com que, por exemplo, considerações a respeito da maior eficiência do mercado diante do Estado já pareçam ser evidentes, se não, naturais.

Nesse sentido, os governos do PT não romperam com essas crenças, mas até ajudaram a reforçá-las, ao insistirem na integração pelo consumo.[8] Não é mero acaso que Lula encontrou, nas recentes eleições presidenciais, enormes dificuldades para conseguir apoio para além do eleitorado com renda até 2 salários-mínimos. Em outras palavras, aquela que não há muito tempo foi chamada de “nova classe média” mostra, no mínimo, grande reticência com o PT.

No entanto, pode-se questionar até que ponto vai a hegemonia bolsonarista e, em termos mais amplos, a própria hegemonia neoliberal. Até porque a hegemonia, assim como a democracia, tem um caráter universalista, ao passo que o neoliberalismo se baseia na crença da supremacia do indivíduo privado. A hegemonia implica, portanto, na realização de concessões, materiais e simbólicos, por parte da classe dirigente em relação aos grupos dominados. Em contraste, no neoliberalismo a lógica do mercado e, com ela, o predomínio do interesse privado, passa a prevalecer em todas as esferas da existência

Mesmo que o bolsonarismo, assim como o thatcherismo, seja, no limite, incapaz de formular um projeto de hegemonia a esquerda tem subestimado sua força. Não tem sido capaz, em especial, de perceber como com ele se identificam grupos significativos da sociedade civil brasileira. Por conta disso, os adversários do Mito possivelmente não sejam capazes de elaborarem um projeto de contra-hegemonia. Não ajuda na tarefa o caráter negativo da frente ampla que elegeu Lula e que teve como propósito não muito mais do que derrotar Jair Bolsonaro.

Não será surpresa, portanto, se o bolsonarismo recobrar forças. Sua sorte, na verdade, depende basicamente da sorte do governo Lula. No eventual retorno do bolsonarismo se pode até dispensar Bolsonaro. Para tanto, basta encontrar um outro nome que exprima as aspirações que foi antes capaz de acordar.[9]

*Bernardo Ricupero é professor no departamento de ciência política da USP. Autor, entre outros livros, de Romantismo e a ideia de nação no Brasil (WMF Martins Fontes).

Referências


ANDERSON, Perry. La palabra H: peripecias de la hegemonia. Madrid: Ediciones, Akal, 2018.

ARAÚJO, Cícero; Belinelli, Leonardo. A crise constitucional brasileira: ensaio de interpretação histórica.  SINGER, André; ARAÚJO, Cícero; RUGITSKY, Fernando (orgs.). O Brasil no inferno global. São Paulo: FFLCH / USP, 2022. p. 165 – 210.

BROWN, Wendy. American Nightmare: neoliberalism, neoconservatism and de-democratization. Political Theory, v. 34, n. 6, p. 690 – 714.

COLPANI, Gianmaria. Two theories of hegemony: Stuart Hall and Ernesto Laclau in conversation. Political Theory, v. 50, n. 2, pp. 221 – 246, 2021.

GUEDES, Paulo. Discurso do ministro da Economia, Paulo Guedes, durante a transmissão do cargo em 02 de janeiro de 2018.

HALL, Stuart. Hard road to renewal: Thatcherism and the crisis of the left. London: Verso in association with Marxism Today, 1988.

HALL, Stuart; JACQUES, Martin. The politics of Thatcherism.  London: Lawrence and Wishart, 1983.

LACERDA, Marina. Paleoconservadorismo de Bolsonaro: o pesadelo brasileiro. SINGER, André; ARAÚJO, Cícero; RUGITSKY, Fernando (orgs.). O Brasil no inferno global. São Paulo: FFLCH / USP, 2022. p. 320 – 375.

NOBRE, Marcos. Os limites da democracia: de junho de 2013 ao governo Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2022.

NUNES, Rodrigo. Do transe à vertigem: ensaios sobre bolsonarismo e um mundo em transição. São Paulo: Ubu, 2022.

PIMLOTT, H. F. Wars of position? Marxism Today, cultural politics and the remaking of the left press, 1979 – 90. Leiden / Boston: Brill. 2022

PINHEIRO MACHADO, Rosana; SCALCO, Lucia M. From hope to hate: the rise of conservative subjectiviy in Brazil. Hau: journal of ethnographic theory. v. 10, n. 1, 2020, p. 21 – 31.

ROCHA, Camila. Menos Marx, mais Mises.  São Paulo: Todavia, 2021.

SINGER, André. A reativação da direita no Brasil. Opinião Pública. v. 27, n. 3, 2021, p. 705 – 729.

Notas


[1] André Singer (2021) aponta, com base em dados de pesquisa Datafolha, iniciados em 1989, para a predisposição de parcela majoritária do eleitorado brasileiro para posições políticas de direita. Ela teria se explicitado com a eleição, em 1989, de Fernando Collor como presidente, mas submergido entre 1994 e 2014.

[2] Para a realização de tal tipo de análise, o escritor nascido na Jamaica se inspira especialmente em Gramsci. É sugestivo como, na mesma época, outro intelectual vindo da periferia e radicado na Grã-Bretanha, o argentino Ernesto Laclau, também tem no revolucionário sardo sua principal inspiração para analisar a política. Os dois cultivavam então um rico diálogo, tendo inclusive participado de um mesmo grupo de estudos gramscianos. Ambos entendem ideologia em termos discursivos, além de prestarem atenção a “novos movimentos sociais”, que emergiram na década de 1960, como o feminismo, o movimento negro e o movimento homossexual. Mas enquanto Laclau interpreta hegemonia num sentido cada vez mais abstrato, aproximando-a de uma “ontologia do político”, Hall trata de projetos de hegemonia específicos, como o do thatcherismo. Ver: Colpani, 2021. Ver também: Anderson, 2018.

[3] A partir do número de outubro de 1988, a Marxism Today radicaliza tal perspectiva, defendendo que se estaria diante de “novos tempos”, pós-fordistas, que seriam caracterizados pela “especialização flexível”. Este seria o novo terreno da política, que diria respeito tanto ao thatcherismo como à esquerda. Nesse contexto, Hall chega a elogiar o consumismo. Sobre a Marxism Today, ver: Pimlott, 2022.

[4] Em tal exercício, uso livremente como exemplo a interpretação de Hall a respeito do thatcherismo. Se seu ponto forte é a análise discursiva há, em compensação, uma idealização dos “novos tempos” pós-fordistas.

[5] Uma análise sugestiva do discurso bolsonarista é realizada em Nunes, 2022.

[6] Sobre o fenômeno no Brasil, ver: Lacerda, 2022.

[7] Formulação de Singer em debate com Maria Victoria Benevides a respeito das eleições promovido, em 08 de outubro de 2022, pelo Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC) e o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (CENEDIC),

[8] Sobre um caso particular, no Morro da Cruz, em Porto Alegre, ver: Pinheiro Machado e Scalco, 2020.

[9] Este artigo se baseia na minha apresentação no XXII Fórum de Análise de Conjuntura América Latina, Eleições e Mudanças Políticas, promovido pelo Departamento de Ciências Políticas e Econômicas, pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, pelo Instituto de Estudos Econômicos Internacionais da Unesp e pelo Grupo de Pesquisa – Estudos da Globalização da Unesp, Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília

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