A dialética revolucionária

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Por NILDO VIANA*

Trechos, selecionado pelo autor, do primeiro capítulo do livro recém-lançado

A dialética revolucionária passou por diversos momentos. O primeiro momento foi expresso na contribuição inaugural de Marx e, na sucessão, de Antonio Labriola, Karl Korsch e outros, tendo um ou outro autor que trouxe um resgate ou acréscimo para a dialética marxista, num processo no qual predomina a deformação que a transforma em positivismo ou a adequa a qualquer outra ideologia hegemônica.

Os dois grandes momentos foram a época de emergência da dialética com Karl Marx e a retomada por Karl Korsch e György Lukács, no período das tentativas de revoluções proletárias. A estabilidade capitalista e as contrarrevoluções provocam estagnação ou até retrocesso na dialética marxista. Os momentos da ascensão das lutas operárias e de revoluções proletárias inacabadas contribuem com o seu resgate e avanço.

É fundamental entender que Marx realizou uma revolução teórica e metódica e, nesse contexto, abriu amplas perspectivas que não foram desenvolvidas devido ao processo da luta de classes e supremacia concreta da burguesia como classe dominante e da luta cultural e hegemonia que ela estabelece. Os representantes ideológicos da burguesia sempre buscaram atacar o marxismo, e, nesse processo, a dialética, e a forma mais comum é através de sua simplificação e refutação da versão simplificada, bem como escolhendo, geralmente, os representantes mais frágeis para assim poder ser mais convincente.

O processo de simplificação, no entanto, não tem apenas o efeito de facilitar a pseudocrítica e falsa refutação, mas também gera uma popularização de uma concepção simplificada e deformada que é reproduzida até pelos simpatizantes e supostos adeptos do “marxismo”.

Porém, a dialética marxista está, em sua primeira versão, nos escritos de Marx. Embora mesmo nesse caso possa haver confusão, gerada por traduções problemáticas, questões formais […], inacabamento da obra, etc. De qualquer forma, uma leitura rigorosa e ampla (não selecionando um texto canônico e jogando outros no limbo), permite reconstituir tal concepção. Karl Korsch teve o mérito de enfatizar o caráter revolucionário da dialética e György Lukács, em menor grau, mas com maior aprofundamento em alguns aspectos, possibilitaram resgatar o método dialético.

A partir dessas leituras fica visível que a dialética é parte da luta cultural pela revolução proletária. A dialética é uma parte do marxismo como pensamento revolucionário. Ela é revolucionária não apenas por seu vínculo com a revolução proletária e com o marxismo enquanto pensamento revolucionário, mas por ela mesma ser revolucionária, sendo uma “revolução metódica”.

O trajeto que apresentamos aqui mostrou o conceito de dialética, algo pouco usual e que é comum no confusionismo ideológico reinante, e o processo de constituição e desenvolvimento da dialética marxista. Esse processo permite ter uma noção do que é a dialética marxista, sua constituição e evolução, algumas de suas principais características. No entanto, ainda há muito que não foi esclarecido e a dialética marxista ainda possui muitas lacunas e precisa dar resposta para várias críticas existentes e questões contemporâneas.

O primeiro ponto a destacar, no atual estágio de compreensão geral da dialética, é a necessidade de esclarecimento e aprofundamento sobre várias questões. Além de esclarecimento sobre a questão da consciência (que é a questão cultural mais desenvolvida pelo marxismo até hoje, mas mesmo assim, ainda incompleta e pouco compreendida por muitos) e da realidade. A dialética, como expusemos anteriormente, é uma manifestação da consciência humana inserida dentro de uma forma de consciência que é o marxismo.

Mas o que a dialética tem de específico? E o marxismo? Isso traz ainda a necessidade de aprofundamento sobre o que é um método. O que significa dizer que a dialética é um “materialismo”, um elemento polêmico e que rendeu várias interpretações no pseudomarxismo. A questão da teoria da realidade é ainda mais complexa e menos trabalhada. A dialética deve ser usada apenas para analisar a sociedade ou também a natureza? O que é a sociedade? O que é natureza? Ou, em sentido mais amplo, o que é realidade? O desenvolvimento das ciências naturais afeta a dialética? A dialética ainda é o método mais adequado? O que a dialética pode dizer sobre o desenvolvimento das ciências naturais?

Essas questões dependem de outras questões, que a filosofia abordou de forma mais abstrata (na maioria das vezes sob forma abstratificada) sobre o que é realidade e como acessá-la. Nesse campo, teremos que ir além do debate sobre idealismo e materialismo e adentrar nas categorias fundamentais da dialética.

Entretanto, apesar de Marx ter oferecido uma síntese e outros terem contribuído depois, é fundamental esclarecer e aprofundar uma reflexão sobre como se efetua uma análise dialética, ou seja, usando o método dialético. As indicações sintéticas da passagem do abstrato ao concreto e uso do processo de abstração são insuficientes e precisam ser esclarecidas e desenvolvidas. Da mesma forma, as categorias da dialética não são suficientemente compreendidas e muitas estão ainda subdesenvolvidas.

O que é o abstrato e o concreto? Como realizar a abstração e a concreção? Quais fenômenos podem ser analisados? Existe diferença em relação a cada fenômeno com sua especificidade? Qual o grau de confiabilidade no uso do método dialético? E qual é a confiabilidade do seu uso adequado? Como identificar se houve ou não o uso do método dialético? Como usar as categorias da dialética?

A última questão é uma das mais importantes para o desenvolvimento do método dialético. Aqui não se trata de dizer o que é e como usar a dialética, ou de resgatar o pensamento de Marx ou de outros marxistas (ou de criticar o pseudomarxismo) e sim de responder questões não respondidas e em muitos casos não formuladas. Marx, por exemplo, não distinguiu entre conceitos e categorias. Essa distinção é fundamental e o esclarecimento destes conceitos e suas diferenças.

Desde o processo de humanização, esboços de categorias e conceitos emergiram, com contradições, ambiguidades etc., até chegar ao marxismo, que realiza uma reflexão autoconsciente sobre como se procede o processo da razão e como ela é utilizada para analisar a realidade. Porém, tanto os filósofos que trabalharam explicitamente com a questão das categorias (Aristóteles, Kant, Hegel, principalmente), quanto os pseudomarxistas da antiga União Soviética e outros países, pouco aprofundaram essa problemática.

O que são as categorias? Quais são as categorias da dialética? Como surgem e se desenvolvem as categorias? As categorias, são, como colocava Kant (1984), formadas aprioristicamente na mente humana? Elas são coisas objetivas e externas que são refletidas pelo cérebro humano como dizem os engelsianos e leninistas? Qual é a utilidade e importância das categorias para a dialética? O que Marx pode contribuir com essa discussão e os marxistas posteriores? O que é preciso para desenvolver essa questão?

[…]

E muitas outras questões estão envolvidas com essas e serão abordadas adiante. Uma delas é sobre a superioridade da dialética diante dos outros métodos, a relação da dialética com o proletariado quando este é, para muitos, apenas um “mito”, entre diversas outras. Sem dúvida, não será possível abordar todas as polêmicas, mas muitas delas receberão pelo menos um infotexto e outras serão discutidas mais profundamente.

A questão da relação do marxismo com a ciência e a filosofia é uma questão que precisa ser discutida, inclusive para demonstrar que o marxismo é uma crítica e superação da filosofia e das ciências, inclusive das ciências naturais, que estão num estágio de desenvolvimento primitivo. Essa última afirmação pode espantar os crentes da ciência, cujo comportamento diante dela é semirreligioso.

A ciência não é sagrada e mesmo que alguns, seja para sustentarem seu ateísmo dogmático ou outras crenças e necessidades e interesses, ou suas certezas diante do mundo, precisem adorá-la, ela é um saber histórico e transitório, com vínculos indissolúveis com a sociedade capitalista e por isso deve ser criticada intelectualmente e superada praticamente […].

A ciência, a vaca sagrada do pensamento burguês, é uma réplica da teologia da sociedade feudal e, como esta última, “funciona” e por isso é convincente, mas, embora tenha elementos importantes e contribuições para o desenvolvimento da consciência humana, possui limites instransponíveis que são os da sociedade burguesa e, por conseguinte, para essa consciência avançar, é preciso realizar a crítica e o avanço para além dos limites intransponíveis da episteme burguesa.

[…]

O que interessa aqui é que a dialética é revolucionária, o que justifica o título da presente obra e revela sua essência. E por isso é difícil pensar a dialética, pois os seres humanos geralmente pensam a partir de sua época e sociedade e de sua situação e localização no seu interior, bem como, o que é derivado, a partir dos seus interesses, valores, sentimentos, concepções anteriores, que são produzidos socialmente. O modo de pensar de nossa sociedade é burguês, ou seja, é fundado na episteme burguesa. Os indivíduos que são cientistas bem formados, que dominam o modus operandi da ciência moderna, estão envolvidos por um conjunto de ideias, procedimentos, etc., que certamente considerarão o presente escrito como “não-científico”, assim como os pseudomarxistas.

Aliás, se esse escrito fosse de um pseudomarxista, ele faria de tudo para provar que tal obra é “científica”. E aqui temos uma diferença fundamental entre um marxista e um pseudomarxista. Um marxista autêntico não visa popularidade, reconhecimento da esfera científica, aceitabilidade social e nem adota idolatrias, nem mesmo da ciência, essa vaca sagrada do capitalismo. E é exatamente por isso que ele traz o novo no plano do pensamento, assim como expressa a luta por uma nova sociedade, radicalmente diferente. Essas duas coisas não se separam (no marxismo autêntico) e por isso a dialética é tão pouco compreensível para quem está vinculado ao saber hegemônico quanto a ideia de uma nova sociedade.

[…]

Por fim, o que o exemplo acima da vida cotidiana revela é que é necessário muita coragem e ousadia para fazer a consciência humana avançar, para dizer a verdade, ou, pelo menos, se aproximar dela. E isso é algo que atinge ao indivíduo, pois ser corajoso e não dizer mentiras (desde as mais simples e cotidianas até as mais complexas e amplas), é um risco e uma luta e muitos já morreram por “ensaiar” isso. O problema é que atinge a sociedade como um todo, pois o mundo de mentiras e ilusões pode garantir a reprodução da sua forma atual, mas, ao mesmo tempo, tende a levá-la à sua autodestruição.

Por isso, a coragem e a ousadia hoje são requeridas, por mais dolorido, desgastante, decepcionante, que seja, na imediatez das relações sociais existentes. Somente assim se poderá ir além das vendas que nos impedem de ver e um real saber emergir e isso contribuir com a libertação humana. A dialética revolucionária é proletária e universal e esse é o seu segredo, que os pseudomarxistas não conseguiram compreender (e por isso alguns penderam para o partidarismo e outros para o cientificismo), o que remete à discussão sobre natureza, humanidade, capitalismo, categorias da dialética, e muito mais.

O presente livro é um desafio para a coragem de ler, de refletir e de agir, pois seu objetivo não é contemplativo e sim transformativo. O presente capítulo/volume ofereceu apenas uma breve iniciação. Os demais capítulos/volumes vão desenvolver, aprofundar, retomar e ampliar, o conjunto de elementos aqui apenas esboçados e outros não trabalhados. Este primeiro capítulo/volume é um convite para uma aventura intelectual, com suas exigências, sendo às vezes árida, às vezes abstrata, mas necessária.

O caminho mais fácil pode ser melhor em alguns casos específicos, mas quando tratamos da libertação humana, do destino da humanidade, da compreensão da complexidade da realidade, ele não é o adequado. Assim, para os leitores persistentes que chegarão até o fim da presente jornada, apenas lançamos o último alerta: o fim é apenas outro começo.

*Nildo Viana é professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Goiás (UFG). Autor, entre outros livros, de Hegemonia burguesa e renovações hegemônicas (CRV).

Referência


Nildo Viana. A dialética revolucionária. Goiânia, Edições Redelp, 2024. [https://amzn.to/4giyWXX]


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