Primeiros anos de (des)governo

Imagem: Lucio Fontana
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Por MAX GIMENES*

Comentário sobre a coletânea organizada por Paulo Martins e Ricardo Musse

Vivemos hoje no Brasil o que se espera que seja o ano derradeiro de uma agonia coletiva iniciada em 2019 e que se convencionou chamar de “governo Bolsonaro”. Ou melhor seria falarmos em “desgoverno”? É o que sugerem Ricardo Musse e Paulo Martins, organizadores de Primeiros anos de (des)governo, lançado no final de 2021 pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e que reúne artigos originalmente publicados no site A Terra é Redonda por ocasião da metade do mandato do atual presidente.

Mas que não se confunda esse “desgoverno” com as acepções usuais da palavra, como “ausência de governo” ou “perda de controle”, não obstante a falta de domínio das competências necessárias ao exercício da função por Bolsonaro e seu staff. Mais do que um “mau governo”, outro significado da palavra, o sentido profundo do “desgoverno” sob o qual estamos vivendo talvez se encontre mais explicitamente formulado por Laymert Garcia dos Santos em seu artigo: “Nesse caso, deveríamos compreender a expressão ‘dois anos de desgoverno’ em sua acepção positiva, isto é, como dois anos de uma política deliberada de destruição das instituições, de decomposição da nação e de desconstituição da sociedade brasileira” (p. 220).

Como evidência desse intuito destrutivo, alguns textos relembram a declaração de Bolsonaro em jantar oferecido a representantes da direita estadunidense na Embaixada do Brasil em Washington, em 17 de março de 2019, quando afirmou: “Nós temos de desconstruir muita coisa, de desfazer muita coisa para depois recomeçarmos a fazer”. Não é casual, portanto, que “desconstrução” e outros termos correlatos (“destruição”, “decomposição”, “desconstituição” etc.) sejam praticamente onipresentes no livro, conferindo, com isso, uma certa unidade de diagnóstico ao conjunto de reflexões que compõem essa obra coletiva, a despeito de sua diversidade.

Na linguagem nativa do bolsonarismo, de acordo com a qual é “comunismo” ou “esquerdismo” tudo aquilo que não é espelho, tratava-se de desconstruir tudo o que teria sido obra “comunista” ou “esquerdista”. Mas, como sinalizam diversos artigos do livro, trata-se na verdade da desconstrução do pacto da Constituição de 1988, que apontava para o horizonte de construção de uma nação moderna que superasse os males de um passado colonial, escravista, patriarcal, patrimonialista, autoritário etc., com Estado de direito, democracia política, soberania econômica e bem-estar social. Fica claro, contudo, que os ataques a esse horizonte não foram raios da eleição de 2018 num céu político antes completamente azul, o que justifica que os artigos não fiquem circunscritos aos dois “primeiros anos de (des)governo”.

A maioria recua no tempo, da formação social brasileira a acontecimentos políticos do passado recente, e alguns outros avançam, com propostas para um futuro de superação desta agonia, a qual, com a atual pandemia e sua gestão federal criminosamente inepta, ganhou literalidade para centenas de milhares de brasileiros – atingia-se a marca de 300 mil mortes no começo de 2021 (em 24 de março), número que já é mais do que o dobro quase um ano depois, aproximando-se hoje de 660 mil.

Para enfrentar o desafio de contribuir com o debate público fornecendo elementos para a compreensão do fenômeno da emergência bolsonarista em sua complexidade, Ricardo Musse (professor de sociologia na USP e editor do site A Terra é Redonda) e Paulo Martins (professor de Letras Clássicas e diretor da FFLCH-USP) mobilizaram sua ampla rede de interlocutores, reunindo professores e pesquisadores internos e externos à USP (Unifesp, Unicamp, UFBA, UFPA, UFMG, UnB, UFF, UFRJ, CNRS, UFG, UFPB, UFABC) e de origens disciplinares variadas (filosofia, direito, ciência política, comunicação, economia, cinema, letras, sociologia, teologia, história, educação, saúde pública), além de alguns militantes políticos. O resultado é um conjunto bastante heterogêneo de textos no que diz respeito ao ângulo das abordagens, ao grau de aprofundamento das análises, à acessibilidade da linguagem e também à correção textual (quanto a este último aspecto, a edição do livro, não obstante o bom projeto gráfico, peca por delegar aos próprios autores a revisão de seus artigos).

Além da introdução dos organizadores e do prefácio de Vladimir Safatle, são ao todo 41 contribuições, de nomes que vão desde os melhores intérpretes e comentaristas da realidade atual no campo da ciência política propriamente dita, como André Singer e Luís Felipe Miguel, até intelectuais de renome e importância para a história das ciências humanas no País, como por exemplo Marilena Chauí ou Michael Löwy. Apesar de toda essa diversidade, é notável a presença tímida de intelectuais mulheres, por exemplo, que, com apenas três textos, não perfazem 10% do total das colaborações.

Como projeta Leda Paulani, “teses e mais teses haverão de surgir, quiçá por décadas, na busca de encontrar a explicação mais consistente para a tragédia nacional”, dada a inegável complexidade do fenômeno (p. 227). O que não quer dizer, evidentemente, que até lá a Universidade não tenha nada a dizer sobre o assunto, antes muito pelo contrário. E a publicação de Primeiros anos de (des)governo é prova disso, de uma academia que procura estar à altura do compromisso público que lhe dá sentido e razão de existir. Existência, aliás, sempre ameaçada em contextos de governos de tendência autoritária e obscurantista, como é o atual, o que implica resistência e luta contra ele.

Para derrotá-lo, no entanto, vale o alerta de Cícero Araujo: “Mas iludem-se os que pensam que, para o derrotar, será suficiente unir todas as correntes políticas, à direita e à esquerda, no próximo embate eleitoral. Antes disso, será preciso estreitar o diálogo com as maiorias que nenhuma ligação orgânica têm ou terão com qualquer força política, e que neste exato momento se batem, aflitos, para sobreviver aos dias penosos que o país está vivendo. O que significa que muitas vozes engajadas serão necessárias para repercutir essa aflição e levar uma resposta clara, uma proposta muito concreta mostrando como as forças democráticas, e só elas, serão capazes de saná-la” (p. 67).

Nessa tarefa, de “esclarecer o pensamento e pôr ordem nas ideias”, para recorrer a uma formulação clássica de Antonio Candido, a Universidade pode e deve dar a sua contribuição.

*Max Gimenes é doutorando em sociologia na FFLCH-USP.

Publicado originalmente no Jornal da USP.

 

Referência


Ricardo Musse e Paulo Martins (orgs.). Primeiros anos de (des)governo. São Paulo, FFLCH-USP, 2021, 448 págs.

 

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