Florestan Fernandes – VIII

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Por Nildo Viana*

A ambiguidade sociológica de Florestan Fernandes

Florestan Fernandes é considerado um dos maiores sociólogos brasileiros de todos os tempos. Título merecido pelo conjunto da obra e por sua contribuição, especialmente no contexto da sociologia brasileira. Florestan Fernandes fez várias pesquisas e análises que são reconhecidas até hoje, como sua análise do negro na sociedade de classes, a sua obra sobre a revolução burguesa no Brasil, os seus escritos sobre o capitalismo brasileiro, suas incursões na discussão sobre a sociologia brasileira, entre outras.

O nosso objetivo aqui, no entanto, é discutir uma obra específica, considerando-a sintomática do conjunto da obra desse sociólogo. É possivelmente sua obra mais densa e na qual lança a ambiciosa ideia de realizar uma “sociologia da sociologia”, ambição que foi compartilhada por outros sociólogos brasileiros e estrangeiros. A sua obra A Natureza Sociológica da Sociologia (1980) assume um significado importante no âmbito da sociologia brasileira e, nesse contexto, expressa questões da época, o que ajuda a explicar as suas ambiguidades[i].A tese que defendemos aqui é a de que a obra em questão mostra as ambiguidades de Florestan Fernandes, expressando um determinado momento histórico que atingiu vários intelectuais que o interpretaram sob formas distintas, e ele o interpretou sob forma específica.

Crise da Sociologia e Crise da Intelectualidade

A Natureza Sociológica da Sociologia é uma obra importante, erudita, que tematiza a sociologia na época em que foi escrita, o que remetia para a ideia de crise e de explicação sociológica da própria sociologia. Esse foi o desafio que Florestan Fernandes se propôs: refletir sobre a crise da sociologia a partir de uma abordagem sociológica. O mérito de tal empreitada é inquestionável, pois, afinal, quantos sociólogos encaram a sua ciência e profissão de forma sociológica? Poucos, e geralmente de forma superficial. Mas o que seria a “crise da sociologia”? Qual o contexto em que emerge tal discussão de Florestan Fernandes?

A chamada “crise da sociologia” emergiu no final dos “incríveis anos 1960”. A série televisiva com esse nome mostra um pouco da época e seus dilemas. A partir da nova hegemonia do Pós-Segunda Guerra Mundial do paradigma reprodutivista (VIANA, 2019), não havia graves crises nem na sociedade, nem na cultura. Isso significa dizer que não havia crisesnas ciências em geral e na sociologia em particular. O reprodutivismo, herdeiro do positivismo, apontava para a estabilidade. A estabilidade foi conquistada depois da Segunda Guerra Mundial e a emergência do regime de acumulação conjugado (VIANA, 2009). O Estado integracionista (ideologicamente chamado de “Estado de Bem-Estar Social”) com suas políticas universais, o fordismo e o consumismo, entre outros elementos, conseguiram, nos países capitalistas imperialistas (e isso deve ficar claro e explícito) uma estabilidade econômica e política que gerou um paradigma hegemônico fundado na ideia de reprodução e recusa da história, e que tornou moda usar termos como “estrutura”, “função”, “sistema”, entre outros[ii]. Nesse contexto, o estruturalismo, o funcionalismo sistêmico, entre outras ideologias semelhantes, eram amplamente hegemônicos. A historicidade do capitalismo é recusada, tanto no que se refere à passagem para uma sociedade pós-capitalista (o que é permanente na episteme burguesa e em todos os seus paradigmas, sob variadas formas) quanto à uma nova fase ou novo regime de acumulação.

A crise emerge quando as lutas sociais, especialmente as lutas operárias e estudantis, se ampliam e radicalizam no final dos anos 1960, tal como no caso francês, italiano e alemão. Esse processo de intensificação e radicalização das lutas – impulsionado pelo declínio da taxa de lucro – acabou corroendo o paradigma reprodutivista e junto com isso gerando a crise das certezas da época. Uma dessas certezas que entrou em colapso foi a da objetividade das ciências, pois o seu fiasco ao apontar para a reprodução e permanência diante de uma realidade em mutação, e a substituição da ideia de “verdade estabelecida” do estruturalismo e do funcionalismo por sua crítica, aponta para isso. Os anos 1960 foram marcados por essas ideologias e os anos 1970 por sua crítica. Talcott Parsons e Lévi-Strauss perderem as suas coroas, na sociologia e antropologia, respectivamente. No pseudomarxismo, quem perde a coroa é Louis Althusser, que passa de figura idolatrada para um dos autores mais criticados dos anos 1970[iii].

Nesse contexto, emergem as tentativas de solução do problema. Podemos destacar três soluções: a subjetivista; a pseudomarxista e a marxista. A solução subjetivista emergiu, inicialmente, com a ideologia pós-estruturalista, abraçada por muitos ex-estruturalistas, como Foucault, Deleuze, Guattari, Lyotard e outros que optaram por uma solução crítico-burguesa[iv]. Os estruturalistas “perderam sua estrutura” e passaram ao pós-estruturalismo, em sua maioria. Em lugar da “estrutura”, inventaram o “desejo”, redescobriram a “sexualidade”, e fizeram a apologia dos “grupúsculos”. Assim, Foucault (1989) se adapta, mais uma vez (MANDOSIO, 2011), e passa a tratar da “Microfísica do Poder”; Lyotard (1993) entra em guerra com a totalidade em nome da “pós-modernidade”; bem como outras pérolas semelhantes são jogadas ao público. Logo depois a criticidade dos anos 1970 vai sendo substituída por um conformismo crescente e Jean Baudrillard (1986) vai encontrar a “utopia realizada” no capitalismo norte-americano, ou seja, nos Estados Unidos. Outras ideologias subjetivistas, bem como doutrinas, vão emergir, tais como o neoliberalismo, estudos culturais, generismo (a famosa “ideologia do gênero”, que os supostos críticos conservadores chamam “de gênero”, o que é um contrassenso), entre outras.

A solução pseudomarxista emergiu através de três posições: a crítica leninista ortodoxa do pós-estruturalismo e do “esquerdismo”; a tendência eclética que buscava uma união com as novas ideologias e demandas; a tendência mais radical que retomava da ideia de luta de classes – abandonada pelo pseudomarxismo althusseriano – sem realizar uma crítica do seus próprios pressupostos apesar do “revisionismo” que realizava[v]. Assim, alguns, pelo menos num primeiro momento, se agarraram às ideologias sob forma dogmática e buscaram efetivar a crítica a tudo que fugia do espectro do leninismo, tal como se vê na crítica ao Maio de 1968 (PRÉVOST, 1973; NIETO, 1971). Também emerge um setor marcado pelo ecletismo, buscando unir o antigo determinismo econômico ou o discurso sobre “sistema e estrutura” com as novas ideologias subjetivistas e a preocupação com o “subjetivo”, a “subjetividade” e o “sujeito”, que vai se ampliar nas décadas seguintes (ANDERSON, 1984; SILVEIRA; DORAY, 1989). Por fim, emerge um setor mais radical no interior do leninismo, que será rotulado pelos anteriores como “esquerdistas”, que radicalizam a crítica do capitalismo e da ciência. Esse é o caso de alguns maoístas[vi], trotskistas[vii], entre outros.

A solução marxista assume a forma de marxismo autogestionário e tem em Guillerm e Bourdet (1976) uma de suas pioneiras e principais expressões (VIANA, 2020b). Nesse caso, trata-se de um desenvolvimento e atualização do marxismo tomando como ponto de partida a ideia de autogestão, slogan revolucionário dos estudantes franceses durante o Maio de 1968, para retomar a essência do marxismo e seu caráter revolucionário e autogestionário. Assim, um conjunto de obras, algumas ambíguas, emergiram e expressaram teoricamente as lutas radicais do final dos anos 1960[viii].

Essa longa contextualização ajuda a entender a chamada “crise da sociologia”. A rebelião estudantil de Maio de 1968 e pré-revolução operária que lhe acompanhou não só declarou a “morte do estruturalismo”, mas de todas as ideologias correspondentes ao paradigma reprodutivista, tal como o funcionalismo sistêmico na sociologia, tendo em Parsons e Merton dois de seus maiores representantes. Mas não só isso: as ciências humanas em geral – e não só elas, mas a filosofia e até as ciências naturais – foram denunciadas como parte da razão instrumental e do poder. Os estudantes franceses denunciaram a sociologia, a antropologia e seu vínculo com o imperialismo, entre outras disciplinas e a própria ciência. Os intelectuais são atingidos diretamente nesse processo, pois a sua produção científica (e não só ela) é denunciada em seus vínculos com o poder e o capital. Foucault tenta recuperar o intelectual ao mesmo tempo em que o critica. Não deixa de ser curiosa a busca de relegitimação do intelectual por parte de Foucault: diz que as “massas” já sabem, que os grupos devem efetivar suas lutas sem “porta-vozes”, afirma que a teoria é totalizante e tudo que é totalizante é ligado ao poder, e, ao mesmo tempo, defende o “intelectual específico”, o especialista que deve fazer sua própria luta na sua especialidade, tal como no seu exemplo sobre o físico (VIANA, 2013a). Aqui temos um conservadorismo travestido de radicalismo. Os intelectuais só são importantes e úteis quando estão longe das “massas” e se reduzem ao “idiotismo da especialização”, para retomar expressão célebre de Marx. Isso significa não só afastar o proletariado (e o conjunto das classes inferiores) dos intelectuais e da teoria, como também relegitimar o intelectual e a ciência desde que ela fique longe das lutas sociais, pois as “massas” e os “grupos” já possuem sua consciência, “melhor do que ninguém”, o que revela aqui um subjetivismo metafísico (e que vai fazer fortuna posteriormente). O fantasma do Maio de 1968, no qual os estudantes revolucionários e radicalizados se aproximaram do movimento operário, é esconjurado, o que demonstra, mais uma vez, o conservadorismo de Foucault.

O impacto disso gerou a crítica da ciência e da razão em geral (enquanto que os estudantes e a cultura contestadora questionavam a razão instrumental e o vínculo da ciência com o poder e não qualquer manifestação racional), o irracionalismo, e outras bizarrices intelectuais. Por outro lado, gerou um período de produção crítica sobre as ciências humanas e a sociologia. Alguns antropólogos franceses, que se autodenominavam marxistas, como Gerard Leclerc (1973) e Jean Copans (1974), denunciavam o vínculo da antropologia e do colonialismo. Esses são os “incríveis anos 1970”, que não ganharam série televisiva. Os vínculos da sociologia e da antropologia com o poder não era mais velada para quem quisesse pesquisar e Maurício Tragtenberg (1978) mostra isso com grande quantidade de dados e informações em 1978, lançando mão de bibliografia de anos anteriores[ix]. Os sociólogos e antropólogos são denunciados e, assim, alguns encarnam a crítica e se tornam críticos, enquanto que outros buscam a volta da legitimação perdida.

Os sociólogos e a sociologia, mesmo os mais moderados, não podiam simplesmente fazer de conta que nada acontecia. Assim, a partir do final dos anos 1960 o tema da “crise da sociologia” emerge. Florestan Fernandes cita Alvin Gouldner (1979), The Coming Crisis of Western Sociology, publicado em 1970. Mas ele poderia ter citado também outras obras, como, por exemplo, Robert Merton que, em 1975, citou essa obra do seu ex-aluno e intitulou um item do seu capítulo de livro como “A Crise Crônica da Sociologia” (MERTON, 1977). Essa percepção da crise da sociologia, da ciência, da cultura em geral (no fundo, crise do paradigma reprodutivista e busca de ofuscar o marxismo, o principal adversário e o inspirador das lutas sociais) é abordada sob formas distintas por distintos sociólogos. Os sociólogos, como indivíduos concretos, são portadores de concepções sociológicas e políticas, possuem uma determinada situação na esfera científica e na subesfera sociológica, vivem em determinadas situações pessoais, familiares, de classe, nacionais. Assim, além desse contexto geral e da ideia de crise e mal-estar reinante nas ciências humanas, havia, no caso brasileiro, uma situação marcada por movimentos sociais populares autônomos e lutas operárias, cujo ápice foram as greves de maio de 1978 em São Paulo[x].

Uma Análise Sociológica da Sociologia

É nesse contexto que vem a luz A Natureza Sociológica da Sociologia. E Florestan Fernandes explicita o peso disso. Ele explica que a obra é composta por anotações de aulas ministradas na PUC-SP em 1978, no seu Programa e Pós-Graduação em Sociologia. Ele explicita a proposta do livro:

Há tempo namoro a ideia de fazer uma autêntica análise sociológica da sociologia e de uma perspectiva que vá além da chamada “sociologia crítica” (com um nível de engajamento que a nova esquerda e a “sociologia marxista” demonstraram, na década de 60 e no início da década de 70) (FERNANDES, 1980, p. 9-10).

O autor também consegue apontar o contexto no qual o processo ocorre, a partir de sua interpretação do mesmo:

Não pretendia voltar nem à condição de professor, nem aos temas acadêmicos. Depois de 1969, a minha identificação com a sociologia e com os papeis intelectuais do sociólogo sofreu uma crise. A crise surgiu entre 1969 e 1972, em Toronto, (onde, aliás, ela não deveria ter lugar: para mim a oportunidade era daquelas que são vistas como o coroamento de uma carreira de “nível internacional” – mas foi exatamente essa oportunidade que funcionou como o equivalente do poço em que ficou o jovem José; saí de lá transformado e dentro de uma crise de longa duração, da qual ainda não emergi). Para ficarmos no essencial: a sociologia perdeu o seu encanto para mim; e o sociólogo profissional converteu-se numa pessoa que luta mais para sobreviver e ganhar a vida – enfim, para preservar e reforçar sua condiçãozinha de classe média – do que pela verdade inerente á natureza científica e, portanto, revolucionária da explicação sociológica. Queiramos ou não, sob o capitalismo e dentro de uma sociedade capitalista (“forte” ou “fraca”; “democrática” ou “autocrática”), os controles externos e a repressão da imaginação sociológica corroem tanto a sociologia como ciência, quanto os papeis intelectuais construtivos do sociólogo. Seria essa uma saída fácil para eximir-me do que deixei de fazer? Parece-me que não. O que eu poderia fazer? Aceitar uma posição que consolidava meu “nível internacional” e pela qual me acomodaria à autodefesa internacional da ordem capitalista? Ou conduzir-me como uma espécie de “cruzado em uma ordem monástica”? Ao decidir voltar ao Brasil e fixar-me aqui, de fins de 1972 em diante, não avaliara bem o que estava fazendo: eu próprio lancei-me dentro de outro poço, este mais tenebroso. Se consegui sobrenadar, foi por causa do trabalho que sobrara, dos antigos compromissos com a universidade brasileira e canadense; e das poucas conferências que estudantes e professores (ou o Sedes) me proporcionaram para ser gente (à medida que o sociólogo também contém uma pessoa vinculada com uma consciência e com um estado de inconformismo ou de rebelião). Agora, retomo a ligação institucional (primeiro, ocasional, com o Sedes, em 1976 e 1977; em seguida, mais formalizada, com a PUC). Todavia já não sou nem a mesma pessoa nem o mesmo sociólogo. Todo esse período de crise fermentativa levou-me a frustrações demasiado profundas e a decepções que não podem ser corrigidas ou superadas. Quando alguém se lança à frente e descobre que não tem cobertura, a verdade sobre as instituições e os seus tipos humanos, os movimentos políticos e sua consciência sobem à tona. O Brasil se revelou melhor para mim nesse longo período de amargura sem pessimismo e de luta por teimosia (como um limite puro da vontade de proclamar aos quatro ventos: por mim a ditadura não passará!) (FERNANDES, 1980, p. 14).

Esse trecho da introdução do livro de Florestan Fernandes é um depoimento da crise pessoal vinculada com a crise nacional e geral. Ela revela não apenas a existência de problemas e crises em vários aspectos da sociedade da época, mas, a percepção e situação individual diante dela. O indivíduo também estava em crise. Trata-se de uma crise individual do sociólogo Florestan Fernandes no interior de uma crise social[xi]. Esse depoimento revela, por um lado, uma situação social real, e, por outro, a inserção de um indivíduo, um sociólogo nessa situação. Porém, revela a forma específica como ele interpreta a situação, tanto a sua quanto a social. O depoimento revela valores de Florestan Fernandes, bem como interpretações, esperanças e desilusões, entre outros processos. Em matéria de valores, aparece a sociologia. Ele coloca não apenas a crise da sua identificação com a sociologia e o papel do sociólogo, o que significa que ela era um valor fundamental para ele, e o “desencanto” em que ele caiu, mas, ao mesmo tempo, a recupera ao responsabilizar os “controles externos”,  e a “a repressão da imaginação sociológica”, que, segundo ele, “corroem tanto a sociologia como ciência, quanto os papeis intelectuais construtivos do sociólogo”. Aqui, além da revaloração da sociologia (que reaparecerá na obra ao colocar o caráter “revolucionário” da ciência e da sociologia), apresenta a sua defesa ao colocar o problema como externo a ela. É desse elemento externo que surgem as “frustrações mais profundas e decepções”. Os valores aparecem ao lado da concepção de que a sociologia, em si, é positiva, é a ordem capitalista, as instituições, os “tipos humanos”, que a deformam. É possível perceber, nesse depoimento, uma dicotomia entre o sociólogo e o indivíduo com sua posição política. Essa dicotomia se manifesta como uma ambiguidade no decorrer do texto e expressá-la é nosso objetivo.

Porém, antes disso, é necessário deixar claro que, pelo que foi dito por Florestan Fernandes nesse depoimento e em outras partes do livro, há uma honestidade no posicionamento. Alguns intelectuais deixam transparecer sua desonestidade com muita facilidade, enquanto que outros já disfarçam melhor. Alguns já são transparentes em sua honestidade. Florestan Fernandes coloca a sua crise pessoal, o contexto e suas decepções. Isso, sem dúvida, não é suficiente para dizer que ele é um intelectual honesto, mas o conjunto aponta para isto[xii]. A honestidade intelectual e política de Florestan Fernandes está explícita na nota explicativa e na introdução. Concordemos ou discordemosde suas ideias[xiii], esse reconhecimento é necessário. Sem dúvida, esses elementos não são suficientes para ter certeza, mas são um indício e não há elementos em contrário, e o pressuposto de que todos são inocentes até haver provas em contrário vale para este caso.

Isso torna ainda mais curiosa a “sociologia da sociologia” de Florestan Fernandes. O primeiro capítulo da obra trata da “Herança clássica e o seu destino”, na qual ele aponta alguns pontos de reflexão e vai se posicionando diante deles. Ele já aponta que sua concepção de “sociologia clássica” não é a institucionalizada e hegemônica (para a qual, corretamente, seria composta por Durkheim, Marx e Weber)[xiv] e sim algo mais fluido e pouco definido. O autor faz reflexões sobre a ciência e a situação de classe, na qual coloca o vínculo e as relações contraditórias entre sociologia e revolução burguesa, o que abre caminho para sua tese de “polaridade dominação” e “polaridade revolução” no pensamento sociológico. Após isso, Florestan Fernandes efetiva uma reflexão sobre os “parâmetros externos da sociologia como ciência”.

A discussão desse capítulo gira em torno da relação entre sociologia e sociedade, seu vínculo de classe e com a burguesia. No fundo, apesar do seu “desencantamento com a sociologia”, Fernandes visa retomar a legitimidade da sociologia. Algumas afirmações deixam isso explícito: “a ciência não é um subproduto cultural da burguesia” (p. 22), apesar de sua expansão coincidir “com a eclosão revolucionária da burguesia”. E como é a busca de relegitimar a sociologia? Ela ocorre sob duas formas: a primeira é através da distinção entre a “polaridade da dominação”, que mostra a “má sociologia”, e a “polaridade da revolução”, que mostra a “boa sociologia”; a segunda através da amenização dos efeitos deletérios da “má sociologia”. Posteriormente aparece uma terceira forma, que é a responsabilização por fatores externos à sociologia.

A relação entre ciência e sociedade capitalista não é apontada adequadamente e ao colocar que a primeira não é um subproduto da burguesia, já demonstra uma ambiguidade que vai ter continuidade em toda a obra. Em alguns momentos, até o empirismo e Parsons são defendidos – e não precisa ser um pensador revolucionário para criticá-los, pois Wright Mills (1982) o fez, mas Florestan Fernandes, que se coloca na “polaridade revolução”, o repreende, algo bastante curioso. Fernandes diz que houve exagero por parte de Wright Mills e conclui: “tudo isso sugere que temos que rever as críticas superficiais e apressadas ao ‘empirismo’ e à análise estrutural-funcional” (p. 40). Fernandes mostra aqui como resolveu sua crise como sociólogo, relegitimando a sociologia, o que pressupõe salvar a ciência em geral e amenizar os efeitos do que ele mesmo denomina “sociologia da ordem”.

No segundo capítulo, Florestan Fernandes aborda a relação da sociologia com o “capitalismo monopolista”. Aqui se apresenta uma perspectiva mais crítica, o que se manifesta na discussão sobre a “revolução científica da técnica e a tecnificação da ciência”, mostrando a situação da sociologia durante o “capitalismo monopolista”, momento que gera a especialização e o radicalismo abstrato, dois produtos do novo contexto. Há uma reflexão interessante sobre a pulverização da sociologia e suavinculação mais estreita com o capitalismo.

Em termos concretos, porém, o sistema institucional da ciência não se autodetermina bem se autorregula: ele está sujeito ao caos imperante no sistema de produção capitalista, e por acréscimo, à multiplicação desse caos pelas condições em que a ciência é incorporada ao sistema de produção capitalista e ao sistema capitalista de poder. Ele não tem controle ideal (ou apreciável) sobre o afluxo de recursos materiais e humanos com base no qual se determinam sua organização e crescimento ou se define o significado de certos desenvolvimentos da ciência e para estes dois sistemas. Por conseguinte, o comando de seus dinamismos fica em seu exterior: ou nos centros de decisão das instituições que empresariam a ciência como negócio e motivo de lucro […]; ou nos centros de decisões das instituições que agregam a ciência a algum tipo de controle, de segurança ou de poder […]. Nos dois casos, o sistema da ciência aparece como heteronômico (ou dependente) e está sujeito a uma hegemonia externa. O que importa ressaltar é que apenas ocasionalmente poderá haver uma convergênciafundamental de interesses ou de valores. Pela própria natureza das coisas, os dois centros de decisão preponderantes não estão empenhados no “crescimento ideal” do output científico propriamente dito. Mas nas possibilidades de converter output científica em “lucratividade”, em “controle”, em “segurança” ou em “poder” (FERNANDES, 1980, p. 56).

Nesse contexto Fernandes realiza a crítica da “sociologia profissional”, pois “ela é uma conexão estrutural da prática burguesa”. Porém, ela está envolvida na “polaridade dominação” no capitalismo monopolista, mantendo uma “prática burguesa racionalmente conservadora, reacionária e contrarrevolucionária” (p. 61).

A isenção pressuposta pela neutralidade ética do sociólogo corresponde à fórmula: mantidas as atuais condições de manifestação e reprodução da ordem, tudo é normal, o que associa a sociologia à prática burguesa de modo conformista, mas não “irracional”. É um conformismo adaptativo, profissional. Porém, ele se realiza através do pensamento sociológico e da pesquisa sociológica “positiva” e “operacional”. O que no limite indica que, posta sob a ameaça de extinção, a prática burguesa apela para um conformismo que deve possuir uma eficácia equivalente à da prática antiburguesa revolucionária. Todos os recursos institucionais e dinâmicos necessários à preservação, fortalecimento e reprodução da ordem burguesa devem ser descobertos pelos cientistas sociais – o sociólogo profissional, inclusive –, o que encadeia o capitalismo monopolista a revoluções técnicas e institucionais destituídas de potencial político para a transformação revolucionária do mundo (FERNANDES, 1980, p. 61).

Aqui se observa uma crítica da sociologia da ordem, a que é profissional e especializada. Mas Fernandes não deixa de lado a oposição. Cita Christopher Lasch que coloca que o intelectual crítico está fadado ao fracasso, pois não encontra apoio num movimento socialista forte e no movimento operário. Fernandes afirma que, no entanto, o fenômeno é mais complexo. Ele coloca a questão do aparato repressivo, que busca neutralizar e fragmentar a “oposição contra a ordem”. Logo, o problema é mais a pulverização da luta de classes. Além disso, “o sistema repressivo dessa mesma sociedade é bastante poderoso e flexível para tolerar e absorver o radicalismo que não possui meios institucionais para se converter numa força cultural e política” (p. 62). O isolamento dos intelectuais “é o produto deliberado de uma política cultural, que dimensiona o radicalismo intelectual e o condena a gravitar sobre si mesmo, como um ‘radicalismo abstrato’ e, portanto, vazio” (p. 62). Assim, temos a separação, nas universidades e pesquisas científicas, do intelectual e das mudanças políticas potencialmente revolucionárias. Nesse sentido, a sociologia crítica, não é uma ameaça para a ordem. A sociologia crítica e a “insurrecional” podem ter suas obras comercializadas e a sua existência ao lado da sociologia profissional pode ser apresentada como uma das vantagens da “sociedade democrática”.

Após apresentar esse dilema marcado pela existência de uma sociologia profissional extremamente especializada e conformista convivendo com uma sociologia crítica que não ultrapassa o nível de um “radicalismo abstrato”, Fernandes se volta para analisar a “nova sociologia da ordem” e destaca as críticas de Wright Mills e Gouldner à sociologia dominante. Ele distingue entre ambas as críticas, pois Wright Mills poderia ser considerado como “o último clássico” da sociologia e Gouldner apenas “um sociólogo de alto porte científico”. Porém, Fernandes se equivoca aqui. Afinal, por mais que suas críticas ao funcionalismo e empirismo sejam boas, bem como suas outras contribuições, Wright Mills está muito longe de ser um clássico – tanto no sentido mais adequado do termo quanto num sentido mais lato. Porém, essa classificação não tem muita relevância e não nos ocuparemos dela. O que interessa é a interpretação de Fernandes da “nova sociologia da ordem”, que ele identifica com a sociologia criticada por Mills e Gouldner. Ela continua sendo uma sociologia da “polaridade dominação”, mas é adaptada ao “capitalismo monopolista”. Nesse contexto, Fernandes apresenta alguns insights interessantes[xv]. Uma delas é a percepção da recusa da história, apesar de inserida numa discussão abstratificada sobre “tempo sociológico”.

A nova sociologia, constituída sob o impacto direto ou indireto da polaridade dominação, sob o capitalismo monopolista maduro, repele todo historicismo, extirpa a historicidade na interpretação do concreto e ignora as relações recíprocas entre estrutura e história. Trata-se de um expurgo empírico, teórico e prático. Contudo, ainda não se discutiu sociologicamente (a nível de “fato consumado”, de ideologia ou propriamente epistemológico) o que essa depuração significa. É obvio que a tendência não elimina a história real nem o que ela acarreta para o “destino” do mundo burguês e do capitalismo monopolista. Podemos fechar os olhos a uma realidade chocante; ela continuará a mesmae, se for o caso, permanecerá igualmente ameaçadora e destruidora (FERNANDES, 1980, p. 70).

O insight, aqui, constitui na percepção parcial da recusa da história, mas não ultrapassa isso e a insere num quadro interpretativo ideológico e antinômico, o que pode ser visto na antinomia entre “estrutura e história”, que, aliás, dominará o pseudomarxismo e a discussão entre “estrutura e sujeito” em Perry Anderson (1984) ou entre “leis econômicas” e “sujeito revolucionário”, em Agnes Heller (1982). Florestan Fernandes enxerca a recusa da história, mas não percebe suas bases reais e seu real significado, o que pressuporia aprofundamento e radicalização do seu pensamento. Outro insight é a percepção da força do formalismo, que já havia sido percebido – por ser demasiadamente evidente – por vários autores, com uma análise mais crítica em Lefebvre (1992), e da cibernética:

Quando a sociologia se torna, a um tempo, “sociologia da ordem” e “sociologia da defesa da ordem”, a ordem é vista simultaneamente como objeto de investigação, análise e interpretação e como a reserva última do poder de discussão posto nas mãos das elites dos setores dirigentes das classes dominantes (isto é, como formidável técnica política). Aqui está o nó da questão. A ordem é simulada e miniaturizada como se fosse um sofisticado aparato (ou sistema) eletrônico. Os computadores não invadiram, pois, apenas os “meios de conhecimento” da sociologia. Eles impregnaram a imaginação sociológica, levando-a a praticar uma “redução cibernética da realidade”. Em consequência, a ordem deixa de ser um fato histórico: surge como uma massa de recursos e de resultados, cujo fluxo pode ser calibrado e regulado, reciclado ou recomposto de acordo com determinações estabelecidas por certos comandos centrais (ou subcomandos) (FERNANDES, 1980, p. 74).

Aqui o reducionismo sob a forma de redução da realidade a modelos (no caso citado a cibernética) é percebido, embora a redução ao modelo linguístico, realizada pelo estruturalismo, não aparece, bem como outras manifestações do paradigma reprodutivista, além de sua similaridade com o regime de acumulação conjugado (VIANA, 2019) não emerge, a não ser numa vaga referência ao “capitalismo monopolista”.

O terceiro capítulo pode parecer, de certo modo, pouco compreensível. Ele trata da sociologia e sua relação com o que Fernandes denomina “socialismo de acumulação”. Esse é, sem dúvida, o pior capítulo do livro. Por um lado, as citações de Lênin e a tentativa de justificar o capitalismo estatal da antiga União Soviética mostra uma concepção pouco crítica e sem vínculo com o marxismo, pois não parte da análise das relações sociais concretas e nem da perspectiva do proletariado. A reflexão sobre a sociologia no “socialismo de acumulação” apresenta a mesma falta de senso crítico e fundamentação que a da sua base real. O pressuposto do maior desenvolvimento da sociologia no “socialismo”, embora amenizado no decorrer do texto, não tem nenhuma fundamentação e a falta de trabalhos sociológicos relevantes para serem citados é suficiente para se perceber isso.

O capítulo quarto é o que mais prometia, pois abordaria a questão das relações entre sociologia e marxismo e da “crise da sociologia marxista”. Nesse contexto, Fernandes mostra sua discordância tanto em relação aos que consideram a sociologia incompatível com o “socialismo científico” quanto aos que pensam que o marxismo é uma ciência, ou, mais especificamente, uma sociologia.

Qualquer que seja o conteúdo de verdade de tais aproximações interpretativas, elas são parciais. E é fundamental que se entenda, como ponto de partida, que não perfilho nenhuma das confusões implícitas. Se o marxismo contém uma sociologia, ele vai muito além disso; se a sociologia encontrou no marxismo uma de suas raízes, ela também o transcende. Portanto, seria falso e simplificador tomar a diretriz “tudo ou nada”, que nasce de um mecanismo estreito e de um dogmatismo cego. Se localizamos as duas polaridades do pensamento sociológico clássico, não foi para ficar nesse limite de um pseudo “bem sem saída” (que evoca a circularidade da “sociologia burguesa” versus “sociologia proletária”). Se, de fato, a sociologia fosse inconciliável com o socialismo científico, o que seria do marxismo diante de outras doutrinas socialistas, que se revelaram incapazes de converter a crítica da sociedade capitalista em uma teoria da revolução contra a ordem? Porém, se o marxismo tão somente uma ciência social e, de maneira específica, uma sociologia, o que seria do próprio socialismo científico e das revoluções históricas que ele alimentou? Também não existe a necessidade de agradar a gregos e a troianos. Como se faria numa “linha eclética”: uma pequena infusão de sociologia no marxismo e pronto, aí está o socialismo científico; e uma ou duas pitadas de marxismo na sociologia e pronto, aí está a sociologia “verdadeiramente” científica! (FERNANDES, 1980, p. 110-111).

Marx, complementa Fernandes, foi o maior expoente do socialismo e um dos clássicos da sociologia. “Essa coincidência não pode ser fortuita” (p. 111). E Florestan Fernandes visa demonstrar isso de forma sintética, pois seria algo muito extenso e que seria equivalente a um curso (o que seria equivalente a outro livro) e por isso define três tópicos para discutir. A questão da negação da ordem na sociologia clássica, o que é sociológico no materialismo dialético e no materialismo histórico e a questão se existe uma crise na sociologia marxista são esses três tópicos. Assim, Fernandes faz algumas digressões sucintas sobre a questão da contribuição de Marx e da relação com as classes e a sociologia, entre outros aspectos. Ele conclui esse tópico colocando as funções sociais das descobertas marxistas: ser uma força cultural direta; promover uma ampliação e aprofundamento da racionalidade da consciência operária; ser um elemento pedagógico para o desenvolvimento da consciência de classe; formar um horizonte cultural revolucionário para além do “idealismo utópico”. E conclui colocando que tais funções geram “exigências puramente científicas”, tal como se nota nas críticas de Marx aos economistas clássicos. A sociologia marxista tinha que ultrapassar a sociologia da ordem por ter que ser “mais ambiciosa, rigorosa e objetiva no uso de técnicas científicas de observação e interpretação” (p. 116). Ela tinha que ir além e não ficar no “meio do caminho”, unindo construção da teoria e realizar a negação, obrigando o pesquisador a “combinar a explicação com a transformação do mundo” (p. 117).

A sua discussão sobre o que há de sociológico no que ele denomina “materialismo dialético” (uma curiosa concessão ao stalinismo), complementada por citações de Henri Lefebvre (1969c) e sua obra sua essa temática – uma das piores coisas que o sociólogo francês escreveu – é um tanto confusa e não ultrapassa algumas considerações gerais sobre o “modo de pensar dialético” e questões genéricas cujo caráter sociológico não se revelam com clareza. No caso da exposição do que existe de sociológico no materialismo histórico, o que é uma tarefa muito mais fácil pela proximidade temática, também não ultrapassa o nível da discussão temática (as análise das revoluções e da luta dos trabalhadores, por exemplo), por um lado, e de considerações abstratas sobre método e unidade do momento prático e do momento teórico. A conclusão é a de que o elemento sociológico do materialismo histórico pode ser sintetizadona relação com a crítica da economia política, a constituição de uma sociologia “diferencial” e “histórica” e superação do positivismo na ciência social. Sem dúvida, tais elementos dificilmente poderiam justificar o “sociológico” no materialismo histórico. O argumento mais forte é o seguinte:

O materialismo histórico criou, por sua vez, a sua própria teoria sociológica. Embora “estritamente empírico no procedimento” [Korsch], graças à reconstrução e explicação dialéticas do real, converteu-se no modelo sociológico por excelência de interpretação do desenvolvimento como um “movimento vivo” ou como uma “transformação contínua” pela qual se ligavam estruturas e duração histórica (FERNANDES, 1980, p. 124).

Assim, referindo-se a Marx, coloca que ele em contraposição à historiografia tradicional, que apresentava os processos históricos no plano da reprodução e da repetição, entre outros aspectos; em contraposição à sociologia formal e sistemática, apontava formas e conteúdos no tempo e no espaço e em interação estrutural, funcional e histórica; em contraposição à sociologia comparada expressava a variação contínua fora e acima das limitações mecanicistas e conjecturais da análise classificatória e de suas projeções evolucionistas” (p. 124-125). Assim, estes e outros elementos apontados por Fernandes visam mostrar o que há de sociológico no materialismo histórico, mesmo que a teoria tenha ficado “estreitamente ligada ao estudo concreto do modo de produção capitalista, da sociedade de classes e do Estado democrático burguês” (p. 125).

Florestan Fernandes encerra o capítulo com uma discussão sobre a suposta “crise da sociologia marxista”. Algumas considerações gerais são feitas – inclusive uma breve e acertada observação crítica a Habermas –, para fazer algumas digressões históricas e realizar a separação entre “crise do marxismo” e “crise da sociologia marxista”. Fernandes nega a existência de uma crise do marxismo, a partir de algumas considerações históricas gerais e sobre o “socialismo real”. No que se refere à uma crise da sociologia marxista, aponta que essa não existe no sentido de uma “falta de dinamismo” no pensamento marxista e cita Hilferding, Rosa Luxemburgo, Lênin, Gramsci, para demonstrar isso. Mas, ao mesmo tempo, reconhece uma certa crise no interior da “sociologia marxista”:

A “crise da sociologia marxista”, não obstante, aparece concretamente em dois níveis distintos. Numa linha horizontal e segundo influxos ocasionais, como imantação de uma freagem do movimento socialista real. […]. Numa linha vertical e persistente, configuram-se limitações de outro tipo. É fácil de detectar-se: os “círculos marxistas” cultivam um pedantismo erudito e uma tendência arraigada a ver na sociologia apenas uma manifestação da “ideologia burguesa”. Ambos os fenômenos são curiosos. Um intelectualismo esquerdista e altamente suscetível à moda! Ele existe e dá origem a “especialistas em Marx” (em menor escala, em Marx e Engels). Esses especialistas não se fecham sobre si mesmos; fecham-se nos escritos e nas ideias de Marx (ou de Marx e Engels), praticando uma tradição de “ótica enviesada”, que seria abominável para os dois fundadores do marxismo. Recusam-se à rotação sociológica, que os exporiam, quer aos “fatos chocantes” da época atual, quer à “ação militante”, que é indispensável. Uma forma de alienação, em suma, cultivada em nome do marxismo! (FERNANDES, 1980, p. 135).

Ele não deixa de citar o “preconceito inveterado contra a sociologia”, gerado por um militantismo “cego ou zarolho” (p. 135) e recusaria reconhecer a importância da discussão sobre a questão do método, tal como fez Lukács em História e Consciência de Classe[xvi]. E afirma: “o materialismo dialético e o materialismo histórico não poderiam engendrar um paradigma exclusivo, além do mais anticientífico e estúpido” (p. 136). Afinal, “rejeitar a investigação sociológica empírica ou a sociologia tout court seria, na verdade, cair em uma infantil armadilha idealista” (p. 136).

Por fim, Florestan Fernandes encerra o seu livro com algumas considerações sobre o comunismo e a sociologia. Além de apontar que a sociedade comunista não é uma sociedade perfeita e que contém mudanças, volta a discutir a questão da sociologia nos países “socialistas”, afirmando que sua opinião é a de que a autonomização da sociologia nos países de transição tende a persistir e fortalecer.

Penso que esse processo terá continuidade e aprofundamento por duas razões. Primeiro, na medida em que o socialismo avançado for cedendo lugar ao comunismo propriamente dito – um processo ainda remoto –, os resíduos institucionais de bloqueio da pesquisa sociológica e de expansão de suas aplicações acabarão sendo eliminados. […]. Segundo, é preciso tomar em consideração a complexidade dos problemas e das forças sociais em movimento sob o padrão comunista de civilização moderna. Seria fictício supor que “a sociedade comunista” será perfeita, estática e sem problemas. Essa é uma imagem cretina e pervertida do que deverá ser a vida humana sob as potencialidades incrivelmente ricas e variadas dessa civilização (FERNANDES, 1980, p. 143-144).

Por fim, encerra Fernandes, as dificuldades de desenvolvimento da investigação empírica e da explicação na sociologia serão superadas. As “promessas da sociologia” se realizaram. Isso, no entanto, só efetivará ao ultrapassar a “última etapa” (chegada no comunismo).

Sociologia Ambígua e Ambiguidade Sociológica

Esse resumo sintético – e por isso incompleto – da obra de Florestan Fernandes nos permite, agora, uma análise global a partir das considerações iniciais que apresentamos. Para o leitor iniciante este livro pode impressionar. E pode impressionar pela erudição e por uma suposta radicalidade e vínculo com o marxismo. Porém, mesmo o leitor iniciante com senso crítico já colocaria em suspenso o entusiasmo com a obra após sua leitura completa: a defesa da apaixonada da sociologia, o vínculo com o leninismo e a defesa do capitalismo estatal (“socialismo de acumulação”) já seriam suficientes para uma reserva crítica diante dessa produção intelectual.

O nosso objetivo é analisar o significado e o conteúdo dessa obra, de forma breve e crítica. Iniciaremos com uma análise dos elementos externos à obra e depois dos seus elementos internos. A respeito dos elementos externos, já fizemos uma contextualização no início e citamos a justificativa do próprio autor. Porém, isso é ainda insuficiente. Sem dúvida, havia uma crise (do regime de acumulação conjugado) que promoveu um processo de crítica e crise na sociologia e, por conseguinte, isso atingiu ao sociólogo Florestan Fernandes. A crítica da sociologia, que vai desde a ação dos estudantes no Maio de 1968 – e não custa lembrar o que foi escrito nos muros de Paris: “só seremos felizes quando o último burocrata for estrangulado com as tripas do último sociólogo” – ao textos de Gouldner, Merton, entre diversos outros, bem como pelas críticas da ciência e da sociologia externas à produção sociológica, pelos meios militantes. Por outro lado, o marxismo foi questionado pelas ideologias subjetivistas que emergem da contrarrevolução cultural preventiva (VIANA, 2009) que tenta responder ao fim do paradigma reprodutivista e prevenir novas lutas radicalizadas. O leninismo, gravemente ferido pelas lutas operárias e estudantis (e a isso se poderia somar o caso da Tchecoslováquia, em 1968, A Revolução dos Cravos em Portugal, etc.), tinha algumas de suas expressões indo para posições rotuladas de “esquerdistas” (tal como se acusou em certos maoístas, trotskistas e outros) ou para a reação conservadora e defesa irrestrita do bolchevismo e da antiga União Soviética dos ortodoxos, além daqueles que buscavam se “adaptar”.

Como o indivíduo Florestan Fernandes se coloca nesse contexto? A proximidade de Florestan Fernandes com o trotskismo, o afastava, sem dúvida, da linha leninista ortodoxa. Porém, ele também se afastava do “esquerdismo leninista”. Assim, a sua aproximação maior – sem consciência disso, certamente[xvii] – era com a ala mais eclética e mais vinculada à academia, que tentava manter o “marxismo” e responder às críticas, através da manutenção da ideia da importância da “estrutura”, mas agora integrando o “sujeito” ou a “história”, ou seja, indo além do estruturalismo althusseriano e das concepçõesdeterministas e economicistas de origem stalinista.

Essa localização de Florestan Fernandes ajuda a entender tanto os seus dilemas como suas respostas. Como um sociólogo de influência leninista, as críticas da sociologia e os discursos sobre sua crise o atingiam pessoalmente, o que lhe promovia a crise pessoal que ele revela na introdução de sua obra. Para enfrentar esse problema, ele parte em busca de uma solução no interior de suas crenças, valores e concepções já estabelecidas. Daí sua dificuldade de radicalizar a crítica e adotar uma posição leninista esquerdista ou ainda mais radical (marxismo autogestionário) e a suas soluções ambíguas. Assim, ele deve resolver o problema da crise da sociologia (na verdade, da crítica à sociologia) através da concepção leninista. Esta, que faz o discurso do “socialismo científico” que justifica a ideologia da vanguarda, aponta para uma distinção, originada com Kautsky e desenvolvida por Lênin, da oposição entre “ciência burguesa” e “ciência proletária”.

Porém, Florestan Fernandes realiza uma sofisticação dessa concepção e trabalha com a sociologia com polaridade dominação (e no final usa “de impregnação burguesa”) e sociologia com polaridade revolução (que é também chamada no final da obra como “de impregnação proletária”). E, como sociólogo, acaba constrangido a defender até a “sociologia da ordem”, em seus aspectos científicos e contra as “críticas exageradas” (até Wright Mills, que nada tem de revolucionário, é acusado de ter “forçado a mão” em sua crítica ao empirismo abstrato e à “grande teoria”, o funcionalismo). Porém, não basta relacionar sociologia e classe social e nem é suficiente defender a autonomia da ciência e da sociologia no contexto das críticas da época. Assim, a discussão sobre o capitalismo monopolista vem para mostrar a questão da tecnificação da ciência e da aproximação ainda maior da “sociologia da ordem” com as necessidades do capital.

Essa ambiguidade inicial gera outras ambiguidades. Ao postular uma “sociologia contra a ordem”, Florestan Fernandes se vê na necessidade de justificar e explicar a pobreza da “sociologia marxista”, especialmente nos países de capitalismo estatal, supostamente vinculados ao “marxismo-leninismo”. Assim, a sua discussão problemática sobre o “socialismo de acumulação” visa realizar tal explicação e o faz isso apontando os limites dessa experiência, que precisa passar para um estágio superior, o “socialismo avançado” e, posteriormente, para o “comunismo”. Obviamente que a concepção aqui nada tem a ver com Marx, sendo puramente leninista. A ideia de um “socialismo” antes do “comunismo”, atribuída equivocadamente a Marx, é de Lênin. Mas, independentemente disso, o capitalismo estatal nada tem a ver com o projeto de comunismo desenvolvido por Marx. E Florestan Fernandes postula a existência de um “socialismo de acumulação”, um contrassenso teórico e metodológico. Marx sempre insistiu que os conceitos que expressam determinadas relações sociais de uma sociedade não podem ser transplantados para outra sociedade e “acumulação” é um conceito típico e específico do capitalismo. Se existe acumulação, não existe “socialismo”. Fernandes vai além de Lênin e cria outra transição (socialismo de acumulação) antes da transição (socialismo avançado) ao comunismo. E a suposta importância da “sociologia soviética” nunca é demonstrada, pois não aparece um sociólogo sequer que tenha produzido algo melhor do que os sociólogos da ordem do capitalismo privado. Se no capitalismo privado pôde existir um Bourdieu ou um Henri Lefebvre ou, ainda, uma Escola de Frankfurt, no capitalismo estatal não aparece ninguém relevante ou que tenha aprofundado a suposta “sociologia marxista”. Nem sequer algo semelhante a um pensamento crítico brota nas terras estéreis do capitalismo estatal[xviii].

Por fim, Florestan Fernandes tem que dar conta da questão da sociologia marxista e sua crise. Fernandes cai em nova ambiguidade ao tratar da relação entre marxismo e sociologia. Ele fica entre ambas, pois, por um lado, é um sociólogo e, por outro, se considera um marxista (sendo, na verdade, um leninista). De acordo com seus valores, crenças e concepções, ele não pode admitir uma crítica radical à sociologia e nem sua incompatibilidade com o marxismo. Nesse contexto histórico, Fernandes busca salvar a “sociologia marxista” e, por conseguinte, a sociologia em geral. Não deixa de ser curioso que ele não questione o seu vínculo, especialmente o valorativo, com a sociologia[xix]. A sua ideia de mostrar algo “sociológico” no “materialismo dialético” e no materialismo histórico é destituída de sentido. A dialética é um método e, por conseguinte, não tem “elemento sociológico” (a não ser se fosse apenas um “método sociológico”, mas ele é um método universal e não se limita aos temas sociológicos e adentra em temas históricos, políticos, culturais, ou seja, das mais diversas ciências humanas e para além delas). Mesmo que a dialética fosse uma “filosofia”, como supõe Althusser (1986) ou possuísse o sentido engelsiano (ENGELS, 1985), depois desenvolvido por Lênin (1978) e Stálin (1982) – posiçãomais próxima de Florestan Fernandes –, ela nada tem de “sociológico”, mesmo nesse sentido.

O materialismo histórico é uma teoria da história da humanidade e, por conseguinte, trata de temas sociológicos, bem como gerou uma teoria do capitalismo, a sociedade atual, o que é o tema sociológico principal, mesmo não usando tal termo e disfarçando isso. Porém, não o faz isso “sociologicamente”, por mais que Fernandes tente apagar a diferença essencial entre o materialismo histórico e a sociologia, sendo que esta última recusa a história no seu sentido mais profundo, a história das sociedades, que é justamente o elemento fundamental da concepção materialista da história. A história, quando é admitida ou trabalhada pelos sociólogos, é a do passado até a presente – como se vê na análise durkheimiana da passagem da solidariedade mecânica para a orgânica (DURKHEIM, 1995), ou na análise weberiana visando explicar o “racionalismo típico do ocidente” (WEBER, 1987), ou, ainda, Elias (1994) e sua busca de reconstituir o “processo civilizatório” – e nunca se aceita a transitoriedade da sociedade capitalista, atual, a não ser quando, ideologicamente, se afirma que ela foi “superada”, por uma suposta “sociedade pós-industrial” ou “pós-moderna” (BELL, 1969; TOURAINE, 1970; LYOTARD, 1993).

A sociologia é burguesa desde suas raízes mais profundas, bem como a ciência em geral. A tentativa de Fernandes de “salvar o defunto” é semelhante ao reavivamento espiritual pregado por alguns evangélicos. A suposição de que há um desenvolvimento imanente e positivo da ciência e da sociologia e que são os elementos externos (capitalismo monopolista, instituições, tecnificação, etc.) que as desviam e impedem a sua maturação carece de fundamentação e criticidade. Além disso, cria um novo misticismo em contradição tanto com o método dialético (a sociologia e a ciência são excluídas da totalidade da sociedade capitalista, de onde emergiram e ganham sentido) e o materialismo histórico (cuja teoria da consciência realiza a crítica fundamental de todo imanentismo da ideologia e das produções culturais, que volta nessa concepção metafísica de ciência e sociologia). A ciência em geral é ideologia, no sentido marxista do termo, ou seja, sistema de pensamento ilusório (VIANA, 2017; VIANA, 2010; MARQUES, 2020) e a sociologia é uma das ciências particulares, logo, é tão ideológica – ou até mais, devido ao seu “objeto de estudo” – quanto qualquer outra manifestação científica.

Claro que, nesse momento, muitos leitores poderiam esbravejar contra a crítica radical da ciência, e novamente o rótulo de “esquerdismo”, entre outros, tende a emergir. Sem dúvida, isso decorre de uma má compreensão do que é ideologia. Ela é um saber sistemático falso, mas não é e não pode ser totalmente falso. Ela possui “momentos de verdade”, senão seria pura fantasia (VIANA, 2010). Esses momentos de verdade emergem quando inverte a realidade, pois esta deve aparecer invertida e junto com ela elementos que não podem ser escondidos. Assim, se a ideologia da estratificação social divide sob forma classificatória a população, em “classe alta”, “média” e “baixa” (e, devido aos limites desse processo, pode subdividir e aí surge “classe média alta, média média e média baixa”, pois a mania classificatória tem um espaço grande de manobra), inverte a realidade e ofusca o verdadeiro significado do conceito de classes sociais, mas, ao mesmo tempo, tem que mostrar uma divisão real existente na sociedade (que são expressos nos critérios de classificação, que pode ser apenas a renda ou esta acompanhada de outros elementos complementares) e que, apesar de sua importância e caráter explicativo restrito, se relaciona com as classes sociais reais (obviamente que a “classe baixa” tem na sua composição vastos setores das classes inferiores: proletariado, lumpemproletariado, etc.). Por outro lado, o quantum de momentos de verdade varia com a ideologia específica, com o ideólogo, etc. As ciências naturais, por seu domínio temático e pelas necessidades de desenvolvimento tecnológico e técnico, tende a possuir mais momentos de verdade do que as ciências humanas. Mas não se pode confundir a parte com o todo, nem a existência com a essência. Em sua totalidade e essência, a ciência em geral – e, por conseguinte, a sociologia – é uma forma de ideologia. Aliás, é a sua forma dominante e principal legitimadora da sociedade atual.

Por fim, a discussão sobre a “crise da sociologia marxista” é efetivada de forma que, no fundo, acaba se confirmando ela. Fernandes diz que a crise não existe e coloca as contribuições de autores supostamente marxistas para sustentar sua afirmação. Não deixa de ser curioso que ele cita militantes políticos e líderes partidários (Rosa Luxemburgo, Lênin, Gramsci), filósofos (Lukács), economistas (Hilferding) e nenhum sociólogo propriamente dito. Aliás, a sua própria ideia de uma sociologia contra a ordem ou de “polaridade revolução” é uma contradição, pois os seus representantes citados não são sociólogos e sim socialistas (dos utópicos a Marx). Dizer que Marx era um representante do socialismo e clássico da sociologia e isso não ser “mera coincidência” é um argumento extremamente fraco. Ele desconsidera que são os sociólogos que tornaram Marx um clássico da sociologia e que ele não se considerava e nem pretendeu produzir tal ciência particular, bem como ele é clássico também na filosofia, economia, etc., sem ser filósofo, economista, etc.[xx]

Nesse contexto, não custa recordar Fougeyrollas (1989)e sua afirmação, acertada, segundo a qual o casamento do marxismo com as ciências sociais é igual ao casamento da água com o fogo (um apaga o outro).A razão de unir o fogo e a água[xxi] seria a temática social. Ora, se assim fosse, os filósofos sofistas no escravismo antigo seriam “sociólogos” e Kurt Schilling (1974) estaria errado aos considerá-los “precursores das ciências sociais”, pois seriam, na verdade, seus “fundadores”. E, além dos sofistas, poderíamos elencar como sociólogos: Platão, Aristóteles, teólogos medievais, Hegel, Kant, e milhares de filósofos, economistas, antropólogos, geógrafos, etc. Para ser sociólogo não basta realizar reflexões sobre a sociedade ou sobre os fenômenos sociais, é necessário fazer isso cientificamente, o que descarta os filósofos, teólogos e outros. Logo, Florestan Fernandes, se quisesse comprovar, “cientificamente”, essa tese, deveria ter se dado ao trabalho de definir a ciência e que qualifica algo como científico, bem como especificar o que existia de científico nos socialistas que ele qualifica como sociólogos, bem como demonstrar o que existia de sociológico em tais análises, o que pressupõe, por conseguinte, uma definição e análise do que é a sociologia, o que não foi feito.

Obviamente que não existiu nenhuma crise da sociologia “marxista”, pois tal coisa nem sequer existe. O fogo e a água não se juntam. Por conseguinte, a sociologia influenciada pelo marxismo – isso é o máximo que poderia existir – não precisaria de se defender de uma suposta crise, pois, nesse momento, ela não era o alvo. O alvo era, por um lado, as ideologias associadas ao paradigma reprodutivista e seus subprodutos, e, de outro, o leninismo (e não a “sociologia marxista”, apesar da confusão ser compreensível) confundido com marxismo. E Florestan Fernandes nota que a crítica vem de vários lados e a contestação da ideologia do “desenvolvimento das forças produtivas”, da “estrutura”,  atinge o leninismo no coração. Daí a ideia de retomar a relação entre “estrutura e história”, bastante em voga nos anos 1970 para quem realizava a defesa do leninismo e que acabou fortalecendo o inimigo e ajudando a nova hegemonia, agora do paradigma subjetivista, que invadiu vastos setores ditos “marxistas”.

Para encerrar podemos fazer duas questões finais: como explicar essa opção de Florestan Fernandes? Como fazer um balanço geral dessa obra e suas soluções? Destacamos, no início, a honestidade de Florestan Fernandes. Além de honesto, Fernandes demonstra erudição e ampla leitura sociológica e de política (Marx e leninismo, por exemplo). Porém, apesar disso, ele não supera uma ambiguidade generalizada, não consegue oferecer uma solução satisfatória e, além disso, se opõe principalmente ao “esquerdismo”, e chega até a defender a “sociologia da ordem” contra os ataques deste. A explicação para isso só pode remeter aos seus valores, concepções e crenças, que o cegaram diante da realidade. O seu vínculo com o leninismo e uma certa interpretação de Marx e do marxismo, bem como com a sociologia, lhe impediram de tomar uma posição radical, que é a única, no interior do capitalismo, que permite a superação das ilusões, ideologias, etc.

A sua identificação com a sociologia, apesar da declarada crise na introdução da obra, se manifesta muito forte e o impede de ir além e entender o significado político e histórico da sociologia. A identificação com uma profissão ou ciência é um limite para todo ser humano, bem como outras formas de “identidade”, muito em voga atualmente. Marx, em seus rascunhos de um manuscrito sobre Feuerbach já assinalava “a divisão do trabalho torna autônoma as ocupações; cada um toma seu próprio ofício como o verdadeiro. Sobre a relação entre seu ofício e a realidade, têm ilusões tão mais necessárias quanto isto é condicionado pela própria natureza do ofício” (MARX, 1982, p. 134). Assim, é necessário entender que o marxismo é uma crítica da divisão social do trabalho (VIANA, 2007) e que qualquer forma de identidade e identificação, seja profissional ou grupal, no interior da sociedade capitalista, é conservadora. E isso até mesmo no caso do proletariado, tal como faz o obreirismo. Pois os indivíduos, grupos, profissões, são produtos dessa sociedade e são limitados por essa sociedade e a identidade e identificação significa ficar nos limites do capitalismo[xxii]. No caso de Florestan Fernandes, sua identificação com a sociologia o limita e o prende à sociedade capitalista. E isso o leva a ter que defender até mesmo a “sociologia da ordem”, além da ciência e outros elementos da sociedade burguesa, bem como de uma fantasiosa existência da sociologia na sociedade comunista. Assim, a sua honestidade e erudiçãonão foram suficientes para romper com os limites intelectuais impostos pelo capitalismo e dos valores e crenças dessa sociedade que ele introjetou.

Por fim, a obra de Florestan Fernandes tem um grave problema, que é a falta de fundamentação. E isso é mais grave tendo em vista o alto valor que é fornecido para a ciência e a sociologia. A sua “sociologia da sociologia” se revela deficiente. As bases sociais e históricas da sociologia são apontadas superficialmente e a partir de ideias gerais mais do que análise das relações e processos. Aliás, o que ele acusa em Gouldner se encontra no seu livro: “combina incursões eruditas exemplares com análises perfuntórias e impressionistas” (p. 66); “monta por justaposição os vários aspectos do quadro global (no lado capitalista e, aqui e ali, no lado socialista)”, o painel não aponta a “unidade do diverso”.

A fundamentação de Florestan Fernandes consiste em apontar uma ideia-chave e através de um mosaico de citações e considerações gerais a reproduz sem nenhum aprofundamento. Esse é o caso de sua fundamentação para o vínculo cada vez mais intenso da sociologia com o capitalismo, que consiste em apelar para o “capitalismo monopolista”. Porém, em nenhum lugar se discute o que significa o capitalismo monopolista (além de algumas afirmações soltas e superficiais e discussão, questionável, tal como ele mesmo reconhece, sobre as “três revoluções industriais”) e o determinismo tecnológico aparece como uma sombra que acompanha o seu raciocínio. A história do capitalismo, a questão das mutações do aparato estatal, a luta operária, entre outros processos, não aparecem em sua concreticidade. A ausência do proletariado é notável. As bases sociais e institucionais da sociologia são apontadas, mas suas mutações, suas características, suas consequências, não aparecem. A ideia de “capitalismo monopolista”, cuja fonte não fica clara – as referências a Mandel não são suficientes e o termo recorda a concepção de Boccara e outros – é abstratificada e sem maior capacidade explicativa.

Outro problema de fundamentação se observa em sua crítica dos adeptos da incompatibilidade entre marxismo e sociologia. No fundo, não há nenhuma reflexão profunda sobre a sociologia e seu significado e nem sobre a real relação com o marxismo, a não ser um passeio superficial sobre obras que nada fundamenta, bem como equívocos, alguns apontados anteriormente. Mas o pior de tudo é que, ao defender a ciência e seus procedimentos até mesmo “exatos”, retoma a retórica leninista e seu uso e abuso de adjetivos pejorativos[xxiii]. No fundo, Fernandes contesta os críticos marxistas da sociologia através de adjetivos: pedantismo erudito, intelectualismo esquerdista, mecanismo estreito, dogmatismo cego, militantismo cego ou zarolho, preconceito inveterado, estúpido, infantil, etc. A crítica mais parece um panfleto de Lênin do que uma obra de um sociólogo ou de um teórico marxista. Porém, não refuta os argumentos e as análises apresentadas. Aliás, eles nunca aparecem, pois Florestan Fernandes não cita os autores e defensores dessas ideias, nem os seus argumentos e fundamentos, o que impede o leitor de ir conferir por conta própria e ver se o infantilismo, pedantismo, cegueira, etc. realmente existem. A desqualificação através de adjetivos pejorativos pode ter efeito retórico, mas não tem nada de teórico ou científico, tendo eficácia apenas para os incautos e os facilmente impressionáveis.

Assim, infelizmente, Florestan Fernandes, dominado por seus valores e crenças, não consegue efetivar um debate real com aqueles com os quais discorda e nem consegue sair de um passeio superficial e impressionista em sua análise supostamente “sociológica” da sociologia. Então essa obra deve ser simplesmente desconsiderada? A resposta é negativa. Ela é um depoimento honesto, embora equivocado, de um indivíduo, de um sociólogo, que expressa questões de uma época e que podem ser úteis tanto para perceber esses processos e questões, como para ver como a ambiguidade pode desaguar em rios cada vez mais poluídos e tenebrosos, tal como a capitulação contemporânea do leninismo ao subjetivismo e suas ideologias. Isso mostra que para o marxismo é fundamental buscar uma autoconsciência teórica de sua época e não se limitar a uma percepção “impressionista” e superficial. Também é fundamental não esquecer a lição de Marx, elemento fundamental do materialismo histórico: não confundir o indivíduo e a sua autoimagem, as ilusões de uma época com sua realidade. Isso exige o exercício da crítica desapiedada e radical, incluindo a do “espírito da época”. A obra de Florestan também tem insights e momentos interessantes, que podem ser compreendidos criticamente e assim podem compor uma análise mais ampla do processo.

Outra utilidade da obra de Florestan Fernandes é apontar para a vantagem da sociologia crítica, e, ao mesmo tempo, seus limites e fragilidades. Ela, na maioria dos casos, se revela a “parte crítica” do pensamento burguês, seja via sua ala republicana ou por parte do bloco progressista (com seu caráter semiburguês, seja em suas concepções reformistas ou supostamente revolucionárias). Hoje, ela desembocou na crítica superficial, reducionista e pobre, tal como se vê no deslocamento para os construtos de gênero, identidade, entre outras manifestações de subjetivismo. O populismo intelectual e acadêmico faz fortuna hoje em dia e a obra de Florestan Fernandes certamente não desembocaria nisso, mas ajuda a entender os riscos e como isso se efetivou em diversos outros casos.

Reler criticamente Florestan Fernandes é uma necessidade, pois ele foi um dos poucos sociólogos brasileiros que tentou interpretar a realidade brasileira e se posicionar diante das contradições do mundo em que viveu. Podemos concordar ou discordar num sentido mais geral, encontrar elementos interessantes e outros extremamente problemáticos, mas encontramos algoe é isso que torna sua leitura necessária, pois ela se distingue de milhares de outras obras nas quais é preciso um esforço fundamental para achar alguma coisa que valha a pena.

* Nildo Viana é Sociólogo e filósofo; Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás.

 

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Notas:


[i] Deixamos claro que o objetivo é abordar as ambiguidades de Florestan Fernandes apenas nessa obra. As demais “fases do seu pensamento”, tanto anteriores quanto posteriores, não abordaremos. Isso significa que sua aproximação com o funcionalismo no passado e sua ambiguidade na relação entre política e academia, no futuro, não serão abordadas. Em relação ao último caso, há uma tese de doutorado que explora esse elemento (PROTO, 2019).

[ii] Não poderemos discutir esse paradigma e sua crise detalhadamente e em sua complexidade, o que pode ser visto em Viana (2019). A percepção da força desses termos e outros elementos associados podem ser vistos, através de uma análise “sintomática” em Henri Lefebvre (LEFEVBRE, 2020; LEFEBVRE, 1992; LEFEBVRE, 1969a; LEFEVBRE, 1969b; VIANA, 2020a).

[iii] Para os empiristas que querem sempre “provas empíricas”, podemos elencar um conjunto de obras críticas ao filósofo francês, no Brasil e no mundo, numa lista bastante incompleta: Rancière, 1970; Glucksman, 1971; Vilar, 1972; Vázques, 1980; Thompson, 1981; Gianotti, 1980; Silveira, 1978;

[iv] No fundo, significou uma despolitização e destotalização da crítica presente nas lutas operárias e estudantis do final dos anos 1960 e da cultura contestadora que lhe inspirou, sendo uma “contrarrevolução cultural preventiva” (VIANA, 2009).

[v] Isso começa com o próprio Althusser, que, tentando escapar das críticas, redescobre a história e a luta de classes a partir de Lenin e a Filosofia (1984). Porém, seria necessário analisar a obra althusseriana posterior para saber em qual dessas tendências ele se filiaria, sendo que alguns dos seus discípulos – ou pelo menos algumas de suas obras – se aproximavam do “esquerdismo leninista”.

[vi] Além dos pequenos grupos ativistas durante o Maio de 1968 e algumas obras posteriores, influenciadas por uma determinada interpretação da “revolução cultural chinesa”, como as de Magaline (1977) e Charles Bettelheim (1979). Este último escreveu uma obra caracterizando a URSS como capitalismo de Estado, diferentemente de suas obras anteriores sobre o “socialismo real”. Na França emergiu o grupo “Esquerda Proletária”, entre outras organizações. A crítica do economicismo e do determinismo das forças produtivas era uma das características desse “maoísmo esquerdista”, e por isso eram apontados como tal pela linha leninista ortodoxa (por exemplo: SANTOS, 1986).

[vii] Os “trotskistas esquerdistas” emergiram como cisão do trotskismo muito antes, e seu principal representante foi Tony Cliff (pseudônimo de Yigael Glückstein), e uma de suas características era caracterizar a União Soviética como “capitalismo de Estado”. Porém, eles se fortaleceram nesse período. O seu grupo, denominado Socialistas Internacionais, tinha em 1962 cerca de 100 integrantes e em 1977, agora como Partido Socialista Operário, passa a ter cerca de 3 mil membros.

[viii] Próximo ao marxismo autogestionário emerge novas organizações e concepções autonomistas na Itália, como Potere Operaio e Lotta Continua (herdeiros do autonomismo desenvolvido, entre outros, por Mário Tronti e Raniero Panzieri), impulsionados pela ascensão das lutas sociais, bem como em 1973 emerge Autonomia Proletária (que terá como derivado as Brigadas Vermelhas), bem como se desenvolveram também na França, Alemanha, Portugal e outros países. O autonomismo se distingue do marxismo autogestionário por seu “obreirismo” e ideia de desenvolvimento imanente do proletariado, derivado de sua limitação teórica, além de possuir um setor, derivado do leninismo, com maior grau de ambiguidade e moderação política. Esse é o caso de Il Manifesto, que surge como dissidência do PCI – Partido Comunista Italiano – e um tempo depois formou outro partido, o Partido da Unidade Proletária pelo Comunismo. Muitos abandonaram o autonomismo, como Toni Negri, que desembocou na ideologia do “trabalho imaterial” (para uma crítica a essa posição, cf. Viana, 2009).

[ix] Uma parte do pensamento crítico desse período também efetivava uma crítica do capitalismo, mas deixaremos isso de lado por causa dos objetivos do presente texto.

[x] A melhor análise dessa luta foi a de Amnéris Maroni (1982), mas vários outros analisaram as greves e outras ações e mobilizações nessa época. Sobre os movimentos sociais populares, a melhor análise é a de Telles (1987).

[xi] Não é o caso aqui de questionar a percepção limitada sobre isso, inclusive de Florestan Fernandes, pois no momento qualquer crise é de difícil entendimento e no momento histórico posterior é mais fácil ser compreendida. Porém, com uma base teórico-metodológica mais adequada, é possível uma percepção mais ampla do processo. Isso, no entanto, não isenta o indivíduo de, com consciência mais ou menos ampla do processo em desenvolvimento, optar por posição X ou Y. Muitos outros intelectuais não tiveram percepção mais ampla do significado do que ocorria, mas assumiram posição bem mais radical e profunda no âmbito das decisões intelectuais e políticas.

[xii] Entenda-se por honestidade a coerência pessoal entre discurso e ação, especialmente no plano da ética, o que significa que há coerência entre os valores fundamentais expressos pelo indivíduo e sua ação concreta, suas decisões, etc.

[xiii] Não é necessário dizer que estamos entre os que discordam de Florestan Fernandes, pois isso está explícito. Esse alerta, no entanto, reforça a afirmação que fizemos a respeito. Não devemos reconhecer a honestidade em apenas quem concordamos, mas em todos que a demonstram.

[xiv] É claro que isso requer uma discussão sobre o conceito de “clássico” e como se poderia definir os clássicos da sociologia. Já discutimos isso em outro lugar (VIANA, 2013b) e aqui resta dizer que o autor clássico é aquele, que numa área do saber, consegue efetivar uma reflexão que se torna um referencial (teórico ou ideológico) para se pensar determinados fenômenos ou conjunto deles e possui reconhecimento social, ou seja, é efetivamente utilizada para tal. Nesse sentido, há três clássicos na sociologia e não passa de tentativa superficial querer acrescentar outros, como já fizeram com Parsons (hoje esquecido, o que é inadmissível para um “clássico”).

[xv]Insight, aqui, significa uma percepção parcial de um fenômeno mais amplo e global. Logo, é distinta da concepção relativa a esse termo por parte da psiquiatria, psicologia e psicanálise (sobre esses significados, cf.: Abel, 2003) e, embora tenha certa proximidade com a tese de Köhler (1968), que é traduzida como discernimento ou não traduzida, também se diferencia dela. A nossa concepção aponta para algo que é parcial. O seu caráter “parcial” de algo mais amplo mostra os seus limites, bem como, em nossa abordagem, não tem vínculo com o emocional, como no caso de Köhler, e nem poderia se manifestar, mesmo de forma mais “primitiva”, em animais. Ou seja, aqui insight é um procedimento racional, mas parcial, acertando na identificação de aspectos sem dar conta de contextualizá-lo e entender suas relações com a totalidade.

[xvi] Curiosamente Florestan Fernandes passa por cima da crítica de Lukács (1989) à sociologia e às ciências particulares, inclusive a Bukhárin, que ele coloca com um dos exemplos de sociólogos marxistas, amplamente reconhecido na Rússia. Embora não deixe claro, o que ele parece querer dizer com tal afirmação é que apenas a ciência se preocupa com a questão do método, o que não foi explicitado e nem tem sentido, pois a filosofia e o marxismo, e até mesmo a teologia, realizam discussões sobre método, sob formas distintas. Não é aí que se encontra a diferença entre marxismo e ciência, bem como é preciso deixar claro que são métodos antagônicos os desenvolvidos por um e por outro.

[xvii] Os indivíduos possuem dificuldade de ter uma consciência mais ampla da totalidade da vida social e de sua localização no seu interior. A contextualização inicial e sua retomada aqui não é algo consciente para a maioria dos indivíduos que viveram a época e nem mesmo para um grande número de estudiosos e pesquisadores desse período. E isso vale para a quase totalidade dos sociólogos e é mais grave ainda em momentos de transição e incertezas, como foram os anos 1970, na qual o regime de acumulação conjugado se encontrava em crise e o regime de acumulação integral ainda não havia emergido.

[xviii] A única coisa “razoável”, no sentido de complexidade e inovação, que foi gerado no capitalismo estatal foi a chamada “Escola de Budapeste” (Heller, Markus, etc.), dos discípulos de Lukács, e Bakhtin (para alguns “Voloshinov”), especialmente sua obra “Marxismo e Filosofia da Linguagem” (1990). Talvez garimpando se encontre mais alguma coisa. Lukács tem uma obra problemática, pois desde sua adesão à ideologia leninista do reflexo, caiu no dogmatismo, tal como se vê em sua crítica ao existencialismo (1979) e sua obra “A Destruição da Razão” (1983), apesar de ter alguns elementos interessantes em suas outras obras, mais voltadas para estética e ontologia (marcadas por limites e problemas também, mas não tão graves quanto nas obras citadas). Porém, essas concepções são filosóficas e não sociológicas.

[xix] “Os sociólogos proclamam frequentemente o seu comprometimento com os ‘valores científicos’, mas raramente consideram problemática a natureza de tais valores” (BLACKBURN, 1974, p. 62-63).

[xx] A crítica de Marx à filosofia e economia é suficiente para perceber o antagonismo entre marxismo e ciência. Korsch acertou quando afirmou que o marxismo não é uma ciência, no sentido burguês do termo, que, aliás, é o seu único sentido, bem como que ele não se encaixa em nenhuma gaveta das ciências particulares (KORSCH, 2020).

[xxi] O próprio Marx já fazia a contraposição entre a ciência/ideologia da burguesia e a teoria/socialismo do proletariado, tal como, por exemplo, na passagem em que afirma que os economistas são os representantes ideológicos da burguesia e os comunistas os representantes teóricos do proletariado (MARX, 1989).

[xxii] Pretendemos aprofundar essa discussão em obra sobre “identidade e ideologia”.

[xxiii] A obra magistral caracterizada pela profusão de adjetivos pejorativos, a começar pelo título, é “O Esquerdismo, a Doença Infantil do Comunismo” (LÊNIN, 1986).

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