A diplomação da resistência na FFLCH-USP

Imagem: Roman Odisintov
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Por ADRIANO DIOGO*

A cerimônia de diplomação post mortem na FFLCH foi antes um ato de desmemória, fazendo tabula rasa das lutas históricas dos movimentos dos familiares e dos ex-presos políticos

A Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade São Paulo (FFLCH-USP) realizou em 26 de agosto de 2024 uma homenagem a seus alunos mortos e desaparecidos durante a ditadura militar: a “diplomação da resistência”.

Em uma primeira chamada para a cerimônia, eram estes os homenageados; cito-os todos, porque nunca devem ser esquecidos: Antonio Benetazzo, Carlos Eduardo Pires Fleury, Catarina Helena Abi-Eçab, Fernando Borges de Paula Ferreira, Francisco José de Oliveira, Helenira Resende de Souza Nazareth, Heleny Ferreira Telles Guariba, Izis Dias de Oliveira (a Universidade divulgou o nome com a grafia errônea “Ísis”), Jane Vanini, João Antônio Santos Abi-Eçab, Luiz Eduardo da Rocha Merlino, Maria Regina Marcondes Pinto, Ruy Carlos Vieira Berbert, Sérgio Roberto Corrêa, Suely Yumiko Kanayama e Tito de Alencar Lima.

Em uma segunda chamada, o nome de Heleny Guariba, que chegou a lecionar na USP, foi cortado sob o pretexto de que ela já tinha sido diplomada em vida. Essa antiga aluna integrou a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Formou-se na USP em filosofia, mas era, principalmente, uma artista subversiva do teatro: dirigiu várias peças, criou grupos de teatro em escolas e trabalhou com Augusto Boal. O Teatro Studio Heleny Guariba, na Praça Roosevelt, a homenageia. Na Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, que eu presidi, investigamos o seu caso.

Maria Silvia Betti protestou contra o apagamento desta artista e militante pela FFLCH por ser “inaceitável supressão da história de luta e de trabalho de Heleny Guariba dentro da USP e dentro do teatro”.[i] Heleny Guariba continua a ser um dos desaparecidos políticos da ditadura: nem mesmo a Comissão Nacional da Verdade conseguiu encontrar seus restos mortais.

Custa crer que a USP tenha resolvido desaparecer com ela novamente: a cerimônia sequer a citou. Mencionou-se no evento, porém, uma jovem vereadora, Luna Zarattini, porque teria dado, segundo a Pró-Reitora de Inclusão e Pertencimento, professora Ana Lanna, “um aporte, um imput” para o evento – foi tudo isso o que ela pôde falar sobre a contribuição da parlamentar.

Esta série de homenagens na USP às vítimas da ditadura padeceu de um gravíssimo defeito de origem: ela se desarticulou dos grupos dos familiares de mortos e desaparecidos políticos e dos ex-presos políticos, que lutam há anos por memória e justiça. Foi tomada pelo oportunismo político. A instituição resolveu ignorar a militância histórica desses movimentos que gerou as várias comissões da verdade que existiram no Brasil, inclusive as da USP, que foi vergonhosamente excluída da cerimônia: nenhum de seus membros esteve na mesa para falar durante a diplomação.

O único familiar presente na mesa foi a jovem Yara Nazareth Souto dos Santos, sobrinha-neta de Helenira Resende de Souza Nazareth. A família de Jane Vanini foi impedida pela mesa de ler uma carta da própria aluna desaparecida, sob o pretexto de que, no final, o microfone estaria aberto para manifestações, e porque as outras famílias também não poderiam falar. Isso não foi combinado com as famílias; algumas delas vieram de outros Estados para, no final, serem censuradas.

No entanto, as autoridades universitárias deixaram a cerimônia no momento da “abertura” do microfone e, para deixar documentado o desprezo da direção da FFLCH pelas vozes que foram excluídas, o momento das “manifestações” não foi gravado no vídeo oficial do evento, que foi interrompido antes disso.[ii]

Antes do final, há um vídeo, que foi exposto na cerimônia, com alguns segundos de depoimentos gravados dos familiares de alguns dos diplomados. Por algum motivo, a FFLCH excluiu desse pequeno vídeo vários nomes, cujas famílias não foram gravadas: Antonio Benetazzo, Carlos Eduardo Pires Fleury, Fernando Borges de Paula Ferreira, Maria Regina Marcondes Pinto, Sérgio Roberto Corrêa, Suely Yumiko Kanayama, Tito de Alencar Lima (o Frei Tito).

Os movimentos de alunos estavam presentes na cerimônia, mas, apesar das palavras de ordem entoadas repetidamente, não pareciam saber das exclusões e dos silenciamentos.

Dessa forma, os familiares foram censurados e Heleny Guariba foi desaparecida novamente. A “diplomação da resistência” acabou demonstrando que a FFLCH estava muito mais próxima do espírito de censura dos atos institucionais do que das medidas de memória, verdade e justiça preconizadas pelas comissões da verdade.

O relatório da Comissão da Verdade da USP, publicado em 2018, apresenta esta recomendação, de número nove (a Pró-Reitora de Inclusão e Pertencimento, na cerimônia, a confundiu com a oitava): “Diplomação dos estudantes que morreram ou desapareceram em razão da violação de seus direitos humanos pela ditadura civil-militar;”.[iii] O diretor da FFLCH, professor Paulo Martins, quando leu essa passagem no evento, trocou-a para “violência de seus direitos humanos”, o que talvez seja um ato falho.

A Comissão previu outras medidas de memória, como a décima, a realização de um mural com indicação dos alunos perseguidos, o que poderia ter sido feito no dia 26 de agosto pela FFLCH como homenagem a todos os atingidos, inclusive Heleny Guariba. Todas essas medidas, naturalmente, vieram das reivindicações históricas dos familiares de mortos e desaparecidos políticos e do movimento estudantil.

Antes da Comissão da USP, vieram a estadual e a nacional. A Comissão do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” incluiu em seu relatório, de 2015, um capítulo sobre o movimento estudantil, recomendando “a criação de Memoriais (ou outro elemento simbólico análogo) em memória das vítimas da ditadura”.[iv]

A Comissão Nacional da Verdade escreveu em 2014, na recomendação 29 de seu relatório, que “Devem-se estimular e apoiar, nas universidades, nos arquivos e nos museus, o estabelecimento de linhas de pesquisa, a produção de conteúdos, a tomada de depoimentos, o registro de informações e o recolhimento e tratamento técnico de acervos sobre fatos ainda não conhecidos ou esclarecidos sobre o período da ditadura militar.”[v]

No entanto, a cerimônia de diplomação post mortem na FFLCH foi antes um ato de desmemória, fazendo tabula rasa das lutas históricas dos movimentos dos familiares e dos ex-presos políticos, apagadas por um suposto voluntarismo parlamentar e pelo descaso da universidade com sua própria história e, principalmente, com aqueles que honraram essa instituição e o povo brasileiro lutando contra a ditadura.

*Adriano Diogo, geólogo formado pela USP, lutou contra a ditadura militar, foi vereador na capital paulista por quatro mandatos e deputado estadual três vezes. Presidiu a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”.

Notas


[i] BETTI, Maria Silvia. Heleny Guariba: enfrentando a exclusão. 19/08/2024. Disponível em https://blogdaciafagulha.blogspot.com/2024/08/heleny-guariba-enfrentando-exclusao-por.html

[ii] O vídeo da cerimônia pode ser visto neste link: https://www.youtube.com/watch?v=6oqMhEOoKOo

[iii] O relatório da USP está disponível em: https://sites.usp.br/comissaodaverdade/relatorio-final/.

[iv] O capítulo está disponível em: https://web.archive.org/web/20171013052226/http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/parte-ii-cap6.html

[v] As recomendações da Comissão Nacional da Verdade estão disponíveis neste link: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/Capitulo%2018.pdf


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