A Europa só existe como impostura

Imagem: Julia Ustinova
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por GIORGIO AGAMBEN*

Se quisermos realmente pensar em uma Europa política, a primeira coisa a fazer é eliminar a União Europeia

Provavelmente, bem poucos entre aqueles que se preparam para votar nas eleições europeias se questionaram sobre o significado político de seu gesto. Em razão de serem chamados a eleger um “Parlamento Europeu” não especificado, podem acreditar, mais ou menos de boa-fé, que estão fazendo algo correspondente à eleição dos parlamentos dos países dos quais são cidadãos. É importante esclarecer imediatamente que este não é o caso.

Quando hoje se fala de Europa, a eliminada foi, primeiramente, a realidade política e jurídica da própria União Europeia. Que se trata de uma eliminação real fica evidente pelo fato de se evitar, de todas as maneiras, trazer à consciência uma verdade tão embaraçosa quanto evidente. Refiro-me ao fato de, do ponto de vista do direito constitucional, a Europa não existir: o que chamamos de “União Europeia” é tecnicamente um pacto entre Estados, que concerne exclusivamente ao direito internacional.

O tratado de Maastricht, que entrou em vigor em 1993 e deu a sua forma atual à União Europeia, é a sanção extrema da identidade europeia como mero acordo intergovernamental entre Estados. Conscientes do fato de que falar de uma democracia em relação à Europa não fazia, por conseguinte, sentido, os responsáveis pela União Europeia tentaram preencher este déficit democrático redigindo o projeto de uma chamada constituição europeia.

É significativo que o texto que leva este nome – elaborado por comissões de burocratas sem qualquer base popular e aprovado por uma conferência intergovernamental em 2004 –, quando foi submetido ao voto popular, como na França e na Holanda em 2005, tenha sido sensacionalmente rejeitado. Diante do fracasso da aprovação popular, que tornou efetivamente nula e sem efeito a chamada constituição, o projeto foi tacitamente – e talvez se devesse dizer vergonhosamente – abandonado e substituído por um novo tratado internacional, o chamado Tratado de Lisboa de 2007.

É claro que, do ponto de vista jurídico, este documento não é uma constituição, mas é novamente um acordo entre governos, cuja única consistência diz respeito ao direito internacional e que, por isso, se evitou submeter à aprovação popular. Não é de surpreender, portanto, que o chamado parlamento europeu que está para ser eleito não seja, na verdade, um parlamento, pois lhe falta o poder de propor leis, o que está inteiramente nas mãos da Comissão Europeia.

Alguns anos antes, o problema da constituição europeia havia dado origem a um debate entre um jurista alemão, cuja competência ninguém podia questionar, Dieter Grimm, e Jürgen Habermas, que, como a maioria daqueles que se definem como filósofos, era totalmente desprovido de uma cultura jurídica. Contra Jürgen Habermas, que pensava poder fundamentar, em última análise, a constituição na opinião pública, Dieter Grimm teve bons argumentos ao defender a inviabilidade de uma constituição pela simples razão de que não existia um povo europeu e, portanto, algo como um poder constituinte carecia de todos os fundamentos possíveis. Se é verdade que o poder constituído pressupõe um poder constituinte, a ideia de um poder constituinte europeu é a grande ausente nos discursos sobre a Europa.

Do ponto de vista da sua pretensa constituição, a União Europeia não possui, portanto, nenhuma legitimidade. É, então, perfeitamente compreensível que uma entidade política sem uma constituição legítima não possa expressar uma política própria. A única aparência de unidade é alcançada quando a Europa age como vassala dos Estados Unidos, participando de guerras que não correspondem em nada ao interesse comum e muito menos à vontade popular. Hoje, a União Europeia age como uma sucursal da OTAN (a qual, por sua vez, é um acordo militar entre Estados).

Por esta razão, retomando não muito ironicamente a fórmula que Karl Marx usava para o comunismo, poder-se-ia dizer que a ideia de um poder constituinte europeu é o espectro que hoje ronda pela Europa e que ninguém ousa evocar. No entanto, apenas um poder constituinte poderia devolver legitimidade e realidade às instituições europeias, que – se impostor é, segundo os dicionários, “aquele que leva os outros a acreditar em coisas alheias à verdade e a agirem de acordo com essa credulidade” – são, no estado atual, nada mais do que uma impostura.

Outra ideia de Europa será possível apenas quando tivermos eliminado essa impostura. Para dizê-lo sem subterfúgios nem reservas: se quisermos realmente pensar em uma Europa política, a primeira coisa a fazer é eliminar a União Europeia – ou, pelo menos, estarmos preparados para o momento em que ela, como agora parece iminente, desmoronará.

*Giorgio Agamben dirigiu o Collège international de philosophie, em Paris. Autor, entre outros livros, de A potência do pensamento: ensaios e conferências (Autêntica). [https://amzn.to/4aDcBQX]

Tradução: Juliana Haas.

Publicado originalmente no site da Editora Quodlibet.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • A massificação do audiovisualcinema central 11/11/2024 Por MICHEL GOULART DA SILVA: O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Ainda estou aqui — habeas corpus de Rubens Paivacultura ainda estou aqui 2 12/11/2024 Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O porto de Chancayporto de chankay 14/11/2024 Por ZHOU QING: Quanto maior o ritmo das relações econômicas e comerciais da China com a América Latina e quanto maior a escala dos projetos dessas relações, maiores as preocupações e a vigilância dos EUA
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Ainda estou aquicultura ainda estou aqui 09/11/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES