A elegia erótica

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Por JOÃO ADOLFO HANSEN*

Prefácio ao livro “Elegia romana: construção e efeito”

Vbi amor, ibi oculi
“Mariquita, dá cá o pito, no teu pito está o infinito” (Drummond, “Toada do Amor”, Alguma Poesia).

Neste livro incisivo, Paulo Martins desnaturaliza os critérios expressivistas de interpretação da elegia erótica do poeta latino Propércio correntes na Universidade, onde ainda é lido. Eles são indiferentes à historicidade dos preceitos técnicos de sua invenção como ficção poética. Paulo afirma que, ingênua ou não, a indiferença é uma prática etnocêntrica.

Universaliza o modo moderno de definir e consumir poesia como literatura e imagina que as paixões romanas dos poemas são sustos contemporâneos que, ao serem impressos, expressam a subjetividade do autor. A especificação retórica do gênero “elegia erótica” faz os poemas aparecer como formalidade prática irredutível às intenções psicológicas dos intérpretes atribuídas anacronicamente ao homem Propércio.

Como gênero poético, a elegia erótica romana é inventada retoricamente como enunciação fictícia de um pronome pessoal, ego. É o “eu” não-substancial de um tipo poético que imita discursos gregos e alexandrinos enquanto recompõe, em cada poema, a dicção que especifica a adequação de seu estilo aos lugares-comuns que o gênero prescreve para inventar e ornar a voz de seu éthos, caráter, movido por páthe, afetos.

No caso, o estilo não é o homem Propércio, mas o destinatário: o ouvido do auctor. Com muita precisão, Paulo refaz os artifícios retóricos mobilizados nos atos da invenção poética do tipo, lendo os poemas como artefatos em que o enunciador comunica ao destinatário res e verba de um imaginário romano e poético do amor. O ato que os inventa não é apenas mimético ou imitação verossímil de discursos sobre o corpo, o sexo e o amor relevantes no presente romano do poeta, mas também valorativo, constituindo no estilo os preceitos da recepção adequada da sua imitatio das paixões, ou seja, evidenciando-se para o destinatário também como preceito aplicado para dramatizar tópicas amorosas.

Propércio inventa metáforas como variações elocutivas das normas que regulam os discursos da vida romana; com isso, imita as opiniões sobre o amor tidas por verdadeiras no campo semântico do seu tempo para confrontá-las e debatê-las na cena dos poemas como conflitos de amor. Simultaneamente, sua enunciação faz referência ao seu próprio ato, encenando, no estilo, aposição adequada da qual o destinatário deve receber o poema para entendê-lo também como comunicação da experiência coletiva dos preceitos técnicos aplicados à sua invenção e elocução.

Afirmando a boa artificialidade do artefato, Paulo recusa o incondicionado romântico das leituras que fazem associações livres com a cena patética dos poemas. Afirma que, para lê-los poeticamente, a liberdade da imaginação do leitor de 2008 deve subordinar-se aos seus preceitos técnicos. Dando conta deles como interação dinâmica do poeta e seu público, evidencia que os poemas teatralizam padrões do costume de uma experiência coletiva, mos, consuetudo, refratando-os nos versos modelados por preceitos partilhados assimetricamente.

Evidentemente, o conhecimento desses preceitos técnicos não é dado apenas pelo poema. Também depende do conhecimento dos tratados de retórica, de filosofia, de ética contemporâneos do poeta, além das convenções da poesia lírica grega, alexandrina e romana. Com muita familiaridade, Paulo os mobiliza ao tratar de poemas particulares. A contextualização retórica do léxico, da sintaxe e da semântica deles pressupõe categorias, conceitos, classificações, esquemas, normas etc. que remetem o leitor a seus sistemas simbólicos implícitos – como os preceitos da elegia erótica buscados na poesia de poetas gregos e alexandrinos, como Mimnermo e Calímaco, emulados por Propércio.

Como acontece em qualquer poema, a elegia erótica estabelece relações paradigmáticas com as versões poéticas que cita e transforma, sugerindo novas associações ao destinatário. Dado o intervalo temporal e semântico que separa Propércio do seu eventual leitor atual, provavelmente muitas permanecem desconhecidas. Mas a significação e o sentido de palavras e versos continuam sendo decorrência de uma hipótese feita pelo leitor por meio de procedimentos de seleção, equivalência, redução, tradução e contextualização deles na sequência poética. Por definição, as leituras da poesia de Propércio são variáveis; mas, para lê-la poeticamente, o leitor sempre deve estabelecer a estrutura básica do gênero, pois é ela que permite justamente a comunicação eficaz do ato da invenção com a prática da sua leitura.

A leitura da poesia de Propércio pressupõe, como outras, que o leitor seja capaz de historicizar seu artifício simbólico e, com isso, seja também capaz de relativizar os pressupostos contemporâneos que dão forma à sua leitura, pois a poesia de Propércio não é literatura e o imaginário romântico não é universal. Em outros termos, para ler Propércio com eficácia, o leitor deve ser capaz de pôr-se a si mesmo entre parênteses, relativizando seus critérios modernos de leitor de literatura e seu critério particular de ler ficção psicologicamente. Mas sem parar aí, pois deve principalmente ser capaz de refazer a ordenação retórica do fingimento de “realidade romana” efetuada pelos poemas.

Na elegia erótica de Propércio, Paulo demonstra exaustivamente, o verbo amar é conjugado retoricamente em formas impessoais da pessoa extraídas da experiência coletiva de Roma. Elas modelam a ficção das pessoas discursivas como tipos da etopéia, o retrato epidítico do caráter. Os tipos habitam um nome próprio e fazem de seu artifício um ser. Ego, diz a persona elegíaca, constituindo no ato o Tu de um interlocutor, Cíntia. Na comunicação fictícia dos tipos compostos por um éthos ou caráter principal e éthe secundários, o ego fala, com total sinceridade estilística, nunca psicológica.

Em Roma, aprendemos com Paulo, as paixões estão na natureza; mas quando são paixões poéticas- paixões fingidas ou paixões fictícias – não são naturais e informais, mas afetos artificialmente inventados para efetuar a fides, a credibilidade verossímil e decorosa do gênero: plus in amore valet Mimnermi versus Homero, “no amor o verso de Mimnermo   vale mais que Homero”, diz o ego. A fides erótica de Propércio é emulação de Calímaco.

Feita como “elegia etiológica” de afetos éticos e patéticos no mollis versus, oposto ao gravis do épico, faz de Propércio, segundo Quintiliano, um poeta blandus, que trabalha as mesmas tópicas elegíacas trabalhadas por outros poetas com uma elocução distinta, por exemplo, da elocução de Catulo, que é cultus, e de Ovídio, lascivus. No caso, a fantasia do poeta Propércio efetua a evidentia ou a visualização de aspectos que faz o ouvido do destinatário ver os retratos do ego patético e de Cíntia, docta puella como Palas, meretrix como Vênus, petrificante como Górgona, infernal como Hécate, conforme a variação dos éthe aplicados aos lugares-comuns de seu corpo preenchidos de palavras.

Em Roma, a regra de ordenação civil dos caracteres é a lei do éthos, domus, onde ele e ela, o casal animado por éthe naturais, ponderadamente virtuosos, segue a natureza. O ego elegíaco não encontra lugar na familiaridade da domus para o êxtase dos afetos na estase fecunda do conúbio. Vbi amor, ibi oculi: fala sobre o que diz ver, enquanto deseja Cíntia. Seu corpo de tipo sofre os afetos do amor na fala. E ela os faz visíveis no lugar convencionalmente próprio para o seu desgarramento, o poema. Assim, Paulo não interpreta a psicologia de um quem substancial; ocupa-se do quê, as qualidades e as intensidades, que constituem o caráter do tipo, o ego que dramatiza suas visões de Cíntia.

Paulo não quer reproduzir a pequena cena das intenções psicológicas dos intérpretes comoventemente equivocados pela falta do que dizer quando reconhecem que, no poema, o sexo esbarra na falta de língua porque poeticamente o ego só dispõe da linguagem do gozo da outra, a puella, entrevendo-o aos pedaços nos dejetos que ela deixa para trás. Propércio inventa Cíntia com lugares que a fazem sempre fora do lugar que fixaria seu caráter. Logo, o ego não pode satisfazer-se, pois é só dela que vem a promessa, sempre deslocada e adiada, do gozo.

A poesia de Propércio é fingimento do afeto, fictio da effigies do ego: não o supostamente profundo dos conteúdos tão profundos que só têm forma romanticamente fragmentada, mas o retórico, das res e dos verba, que se aplicam tecnicamente como a cara e a coroa da moeda das trocas ético-patéticas do Eros.

Assim, Cíntia: o que é? Ela são pedaços de retratos epidíticos, restos de um corpo tão elogiado quanto vituperado, carnes prometidas e enganos contínuos do seu dar-se não se dando sob sedas e perfumes: mulher sempre, ou seja, muito logicamente louca e concessiva. Porque não amar a efígie de um homem, não importa qual? – o ego diz que é isso o que ela pensa, se é que Cíntia pensa. Não importa, essa é justamente a divisão do éthos do ego na elegia: ser só um, um qualquer e qualquer um, entre todos os machos, e não ser o Um nela e com ela. Sempre aquém do que ela sem saber promete, um ego masculino pleno do despeito da contemplação decepcionada. Estão verdes? Afinal, o que ele quer quando continua falando do que não pode ter?

O que ele quer são os indícios dela, o que ele quer são os signos de Cíntia, porque isso é, talvez, o amor de um homem na elegia: os signos do amor, onde antevê e lamenta o que nunca ocorre.

Propércio é magister amoris, mestre do amor. Sendo mestre, divertida é sua elegia, pois di-verte: lamentar o desde sempre perdido na fórmula do diálogo ego et tu tem muito da ironia jocosa por exemplo de um Aristófanes: o amor é uma doença cômica. Jogo da observação meticulosa, minuciosa e atormentada, dos mínimos mil pedacinhos onde Cíntia se faz signo e escapa, cruel, mais dura que um tigre da Hircânia, justamente porque sempre tão cordatamente dável, puella, entregando-se para negar-se nas palavras por onde o ego a vê escapar e escorrer como illa, aquela, lá, sempre em outro lugar, sempre dormindo enroscada em outro homem, sempre com mais um, a desgraçada, nunca aqui e agora, que coisa mais impossível, inalcançável, avis rara.

Acontece em Propércio a intensidade patética de Catulo – por exemplo, quando este diz: Odi et amo. Quare id faciam, fortasse de me requiris. Nescio, sed fieri sentio et excrucior.

Não se trata da psicologia do homem Propércio, mas da estrutura simbólica. Por isso mesmo, a emulação desse costume poético constitui a delectatio morosa, que teve pungentes variações cristãs na poesia provençal da coyta, o mal de amor da dor de corno que conjuga o verbo amar num tempo composto, tenho amado. Nele, como Deleuze evidenciou, o particípio passado amado corresponde ao objeto do desejo, illa, dado como perdido nas imagens congeladas reiteradas pelo tenho desejante, o tempo presente da contemplação da impossibilidade da união com ele como Um, que realimenta a forçado desejo nas palavras. No intervalo de presente/passado, a memória do ego é figurada como a síntese ativa que seleciona restos de Cíntia, contemplando-os melancolicamente, ou seja, furiosamente, como indícios onde se concentram seus afetos, raiva, impotência, ressentimento, tristeza, vingança, medo, desdém, despeito…

Na elegia erótica, o ego fala triplamente: de si e da amante: “Cíntia foi a primeira que me capturou com seus olhinhos(…) então o Amor (…) me ensinou(…) a viver sem prudência”, como na 1ª. elegia. E do outro, o homem que a tem: “ela já diz que não é minha”. Como na elegia 16: “Agora ela está deitada envolvida no abraço feliz de outro”. Paulo é lúcido, não se deixa levar pelo páthos do ego patético, observando friamente, como convém, a técnica aplicada à fictio dos seus furores, as melancolias retoricamente formuladas de ego que sempre afirma, como na elegia i, 7, aliquid duram quaerimus in dominam, “alguma coisa procuramos na dura dona”.

O amor, não custa lembrar, é uma doença fundamental também em Roma: Amor páthos, diz Quintiliano. Não é sério, mas seus efeitos são graves, como é grave o que evidencia: Cupido é um menino cego, bem se vê, porque sempre é um jogador pueril que não distingue números nos dados que lança. Mas ele os lança e quer porque quer unir ego e tu e seus acasos naquele bicho com dois costados além, que é muito feio, medonhoso bronco, andrógino, meu (minha) caro(a). Não consola nunca de núncaras o aqui-agora do amor. Como diz outro poeta, o Um é o que é e que devíamos saber: um nunca de corvo. Dizem que a responsabilidade é do pai Júpiter. Mas Paulo demonstra com precisão que isso não é verdade, fazendo o leitor saber, como diz outro que se ocupou do Outro, que não deve meter o pai real nessas obscenidades da lei.

*João Adolfo Hansen é professor titular aposentado e sênior de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Agudezas seiscentistas – Obra reunida, vol 1 (Edusp).

Referência


Paulo Martins Elegia Romana. Construção e Efeito. São Paulo, Humanitas.

 

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