A extrema direita – uma das tradições dos Estados Unidos

Imagem: Luiz Armando Bagolin
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MARY ANNE JUNQUEIRA*

A extrema direita nos Estados Unidos é maior do que o incontrolável presidente Trump

No dia 06 de janeiro uma multidão tomada por fúria e ressentimento tomou de assalto o Congresso dos Estados Unidos. Tratou-se da maior ocupação do prédio público que se tem notícia. Antes disso, o Capitólio esteve sob fogo cerrado na guerra de 1812 com a Inglaterra. Na época, o país europeu quis restringir a veloz conquista do Oeste por parte dos Estados Unidos e conter o comércio do país, sobretudo com a França, em razão das guerras napoleônicas. Os norte-americanos atearam fogo em Toronto, Canada, em abril de 1813. A retaliação veio em agosto de 1814, quando Washington foi tomada, e Capitólio, Casa Branca e estaleiros da U. S. Navy incendiados.

Há ainda registros de outros tipos de violência no prédio desde sua construção em 1800, mas o que vimos no dia 6 de janeiro foi inédito, brutal e grotesco: edifício invadido, depredado e conspurcado. Mais: levado a cabo por nacionais. A iniciativa posta em prática pela extrema direita, alguns de última hora mobilizados por Donald Trump e redes sociais, não é boa para os Estados Unidos nem para os que prezam governos pautados por contratos sociais. Já que o país é referência na matéria, apesar dos limites e contradições. O país que garante eleições indiretas e contínuas desde 1789, quando da formação da República representativa, tem convivido muito bem com aspectos não democráticos do país desde então.

Muito se tem falado do presidente que insuflou a invasão, Donald Trump, e do trumpismo. O homem, apesar dos mais de 74 milhões de voto, perdeu muito: a presidência, apoios na Câmara e Senado e o seu lugar entre os republicanos. Partido que tem abrigado a extrema direita e agora se vê frente a dilemas quanto ao seu futuro.

Sobre o trumpismo, é urgente considerar que a extrema direita nos Estados Unidos é maior do que o incontrolável presidente. Ela é parte das tradições norte-americanas como o próprio contrato social que agora é questionado por muitos. Entretanto, essa extrema direita, supremacista branca, que faz uso de táticas militares e iniciativas terroristas, nos remete ao pós Guerra Civil (1861-1865). Período da emergência das sociedades secretas, supremacistas brancas, constituídas no sul derrotado. Entre elas, The Knights of the White CameliaWhite League e a famosa e influente Klu Klux Klan, fundada em 1865. Essas e outras organizações ganharam apoiadores e se ramificaram entre os sulistas.

A Klan atravessou os séculos entre declínios e ressurgimentos, alcançando o século 21. A maioria dessas sociedades secretas foi fundada por ex-oficiais confederados, inconformados e ressentidos com a derrocada do Sul. Acima de tudo, temerosos de que os negros adquirissem direitos políticos. Elas foram centrais para pavimentar o caminho para segregação racial no Sul que acabou por atingir todo o país.

Muitos dos que invadiram o Capitólio, em 6 de janeiro, ostentavam orgulhosamente a bandeira da Confederação e insígnias da Klan, entre outros símbolos. A bandeira confederada era (e é) distintivo do que se configurou chamar “nacionalismo sulista”. Para se ter ideia dos usos do passado da Confederação: apenas em 2020 — após o supremacista Dylan Roof, em 2015, abrir fogo na igreja de afro-americanos, em Charleston, e da consequente batalha dos monumentos —, os Marines Corps aboliram o uso de símbolos sulistas na arma.

Do mesmo modo que a extrema direita solidamente estabelecida, a existência de congressistas que apoiam supremacistas brancos está ancorada firmemente na História norte-americana. A lista não é pequena, muitos ex-klansmen serviram como deputados, senadores, juízes federais e governadores, nos séculos 19 e 20. Na mesma direção, em 2021, alguns congressistas não esconderam seu apoio a Trump e aos movimentos extremistas. Muitos devem a atual posição aos votos que receberam de apoiadores desse espectro político.

Donald Trump é líder prestigiado dessa extrema direita. Ele deu lugar a ela na política e reforçou a comunicação com grupos extremistas. Entretanto, essa liderança é circunstancial. As indicações são de que ela (a extrema direita), permanecerá, ainda que não saibamos se ganhará mais espaço ou voltará às margens onde esteve, por exemplo, durante a Guerra Fria. Portanto, o trumpismo é circunstancial tanto quanto Donald Trump.

No século 21, a extrema direita que vinha crescendo desde as últimas décadas do 20, irrompeu graças às redes sociais e à Deep web, e não só nos Estados Unidos. Hoje recebe nomes diversos: alt-rightfar-rightextreme right etc. Congrega milícias (como Oath KeepersProud BoysThree Percenters), grupos cristãos diversos (muitos anticatólicos), neo-nazistas, como o Creativity Movement, entre outros. Parte das milícias compara-se aos patriotas do período da Independência do país. Isso explica por que o ano da emancipação, 1776, é clamado por esses grupos. Por exemplo, a loja on-line dos Proud Boys, que reúne apenas homens, a quem Trump pediu prontidão (stand by) quando da eleição em novembro, orgulhosamente chama-se: 1776.shop.com

Ainda que enraizada na tradição, a extrema direita nos Estados Unidos mobiliza símbolos, discursos e iniciativas não apenas da tradição supremacista do país, mas também dos nazistas e fascistas europeus. Mesmo as organizações supremacistas norte-americanas do 19 mobiliza(va)m temas da Europa medieval. Hoje, além de Cruzados e Templários, ostentam mitologia racial nórdica, cujos símbolos foram igualmente expostos na invasão do Capitólio.

Se a extrema direita está solidamente radicada na tradição histórica dos Estados Unidos, o que é atual na invasão do Congresso? Pode-se destacar pelo menos dois aspectos recentes: a própria natureza desse tipo de direita é mais diversificada, de alcance nacional e com vínculos internacionais. Para se ter ideia, em 2019, o site Southern Poverty Law Center que monitora grupos de ódio (antissemitas, anti-imigrantes, supremacistas, misóginos, islamofóbicos etc.) rastreou 940 grupos nos Estados Unidos. Número que certamente cresceu em 2020. Além disso, registrou a existência de 1747 símbolos da Confederação em todo o território nacional, contra os quais moderados e progressistas, entre eles o movimento Black Lives Matter, têm se defrontado nos últimos anos.

O segundo aspecto está relacionado com a mais incontornável iniciativa do presidente e seguidores: não aceitar os resultados da eleição de novembro de 2020. Não é novidade que milicianos e organizações secretas rejeitem o status quo. Mas pelo menos na História recente do país, é a primeira vez que regras do jogo antes acordadas são tão veementemente recusadas. Tal negação, tenta deslocar o democrata Joe Biden para o espaço nebuloso da ilegitimidade, o que pode abrir para situações inusitadas como a que vimos em 6 de janeiro.

Críticas ao sistema são comuns: note-se as feitas ao Colégio Eleitoral, outra tradição norte-americana, responsável por distorções nos pleitos. Entre elas, a de assumir a Casa Branca o candidato que não leva no voto popular.

Tal deturpação, prejudicou, e muito, os democratas no século 21. Al Gore ganhou no voto popular, mas foi George W. Bush que levou em 2000, e o mesmo se deu com Hillary Clinton e Donald Trump, na eleição de 2016. Ainda que Al Gore tenha pedido recontagem dos votos, a Suprema Corte decidiu pelo Colégio Eleitoral. Al Gore e Hillary aceitaram os resultados em nome da manutenção do processo que orienta o país. Confirmar e honrar o sistema sempre foi importante para os políticos e para a maioria dos norte-americanos. Reitera-se que o que se viu nas últimas semanas foi a recusa inusual de um candidato à reeleição — que perdeu no voto popular em 2016 e 2020 — e de seus apoiadores às regras do jogo acordadas e consolidadas.

Não resta dúvida de que o democrata Joe Biden contabiliza importantes vitórias, e ele já responde àqueles que o alçaram ao mais alto posto da nação. Além dos mais de 81 milhões de votos, os democratas conduzirão a Câmara e o Senado, ainda que o último esteja dividido em 50% para cada partido. Ele, com a inestimável ajuda de Stacey Adams, ativista e ex-congressista, ajudou a virar o estado da Georgia aos democratas — num feito inédito — após 28 anos de domínio de republicanos no estado. Ainda assim, a divisão do país é incontestável. Biden herdará o país cindido por rachadura que Trump ajudou a aprofundar. No momento, Trump e a invasão do Congresso ofuscaram a transição e a celebração que deveria ser de Biden. O democrata moderado de 78 anos, de estilo discreto, reservado e avesso a arroubos, certamente terá anos difíceis pela frente.

*Mary Anne Junqueira é professora Departamento de História da FFLCH-USP e do Instituto de Relações Internacionais (IRI-USP).

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Michael Roberts Paulo Sérgio Pinheiro Remy José Fontana Luiz Bernardo Pericás Lincoln Secco Julian Rodrigues Luís Fernando Vitagliano Manchetômetro Vinício Carrilho Martinez Andrés del Río Ronald León Núñez Liszt Vieira João Lanari Bo Valerio Arcary João Adolfo Hansen Eugênio Trivinho Carlos Tautz Eliziário Andrade Dênis de Moraes José Raimundo Trindade Flávio Aguiar Jorge Branco Luiz Renato Martins Osvaldo Coggiola Bruno Machado Francisco de Oliveira Barros Júnior Marcelo Módolo Francisco Pereira de Farias Luiz Carlos Bresser-Pereira João Feres Júnior Caio Bugiato Rafael R. Ioris Alexandre de Freitas Barbosa Claudio Katz Ronaldo Tadeu de Souza Gilberto Maringoni Yuri Martins-Fontes José Micaelson Lacerda Morais Luiz Werneck Vianna Ari Marcelo Solon Kátia Gerab Baggio Daniel Afonso da Silva Salem Nasser João Carlos Loebens Maria Rita Kehl Michael Löwy Boaventura de Sousa Santos Ronald Rocha João Sette Whitaker Ferreira Afrânio Catani Bernardo Ricupero Marilena Chauí Ricardo Abramovay Marcos Aurélio da Silva Chico Alencar Alexandre de Lima Castro Tranjan Priscila Figueiredo Érico Andrade Lorenzo Vitral Vladimir Safatle Samuel Kilsztajn Vanderlei Tenório Rodrigo de Faria Eduardo Borges Leonardo Avritzer Elias Jabbour Luis Felipe Miguel Atilio A. Boron Paulo Fernandes Silveira Henry Burnett Valerio Arcary Marcos Silva Leda Maria Paulani Slavoj Žižek Bento Prado Jr. Thomas Piketty Gabriel Cohn Walnice Nogueira Galvão Jean Marc Von Der Weid Antonio Martins José Dirceu Celso Frederico Andrew Korybko Airton Paschoa Sandra Bitencourt Anselm Jappe Fernão Pessoa Ramos Juarez Guimarães Bruno Fabricio Alcebino da Silva José Geraldo Couto Paulo Capel Narvai Gerson Almeida Ricardo Antunes Otaviano Helene Eugênio Bucci Antonino Infranca Chico Whitaker Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Fábio Konder Comparato Plínio de Arruda Sampaio Jr. Lucas Fiaschetti Estevez Luiz Roberto Alves Jorge Luiz Souto Maior Flávio R. Kothe Tales Ab'Sáber José Machado Moita Neto Luiz Eduardo Soares Ricardo Fabbrini Marilia Pacheco Fiorillo Luciano Nascimento Armando Boito Igor Felippe Santos Alexandre Aragão de Albuquerque Henri Acselrad Tarso Genro Renato Dagnino Antônio Sales Rios Neto André Singer Berenice Bento André Márcio Neves Soares Denilson Cordeiro Daniel Brazil Mário Maestri Luiz Marques Dennis Oliveira Matheus Silveira de Souza Everaldo de Oliveira Andrade Eleonora Albano Celso Favaretto Marcelo Guimarães Lima Alysson Leandro Mascaro Manuel Domingos Neto Rubens Pinto Lyra Paulo Martins Francisco Fernandes Ladeira José Costa Júnior José Luís Fiori Leonardo Boff Ladislau Dowbor Leonardo Sacramento João Paulo Ayub Fonseca Marcus Ianoni Gilberto Lopes Annateresa Fabris Paulo Nogueira Batista Jr Tadeu Valadares Marjorie C. Marona Daniel Costa Fernando Nogueira da Costa Jean Pierre Chauvin Michel Goulart da Silva Eleutério F. S. Prado Milton Pinheiro Sergio Amadeu da Silveira Mariarosaria Fabris Ricardo Musse Carla Teixeira João Carlos Salles Heraldo Campos Benicio Viero Schmidt

NOVAS PUBLICAÇÕES