A filosofia das luzes e as metamorfoses do espírito libertino

Terry Winters, 2000.
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Por BENTO PRADO JR.*

Considerações sobre a continuidade histórica que liga os libertinos ao ateísmo, ao materialismo, ao livre-pensamento, em cujo centro encontra-se a filosofia das Luzes

“O princípio autêntico de nossos costumes reside tão pouco nos juízos especulativos que formamos sobre a natureza das coisas, que não há nada mais comum do que cristãos ortodoxos que vivem imoralmente e libertinos de espírito que vivem com moralidade” (Pierre Bayle[1]).

“Editores e livreiros setecentistas usavam a expressão “livros filosóficos” para designar sua mercadoria ilegal, fosse ela irreligiosa, sediciosa ou obscena. Não se importavam com distinções mais refinadas, já que a maioria dos livros proibidos eram ofensivos por várias vias. No jargão desse comércio, libre significava às vezes “lascivo”, mas evocava também o libertismo do século XVII — isto é, o livre-pensamento. Por volta de 1750, o libertinismo dizia respeito tanto ao corpo quanto ao espírito, à pornografia e à filosofia. Os leitores sabiam reconhecer um livro de sexo quando viam um, mas esperavam que o sexo servisse como veículo para ataques à Igreja, à Coroa e a toda espécie de abuso social” (Robert Darnton[2])

 

1.

Antes de começar a justificar o título desta exposição, é preciso refletir sobre o contexto em que ela se desenrola. Ou seja, no contexto de um simpósio sobre libertinos e libertários. Comecemos, portanto, por refletir sobre a conjunção entre essas duas palavras, e sobre o interesse que há hoje em conjugá-las, mesmo que nos limitemos a focalizar a conectiva e, que não envolve necessariamente nenhuma implicação recíproca ou relação interna.

É preciso, antes de mais nada, formular algumas questões semânticas, que jamais são ociosas. Tanto a palavra libertino como a libertário, como todas as palavras ou as ideias em geral, têm história – e essas duas palavras, de origem comum, têm histórias que não podem ser superpostas com exatidão. Digamos desde já que não nos interessa opor uns a outros, que não queremos sugerir alguma incompatibilidade lógica ou fundar uma diferença histórico-social entre libertinos e libertários. Ou seja, é difícil negar que, do século XVII ao XVIII (e mesmo desde o XVI), os chamados libertinos eram de algum modo libertários.

Nossa questão preliminar visa, antes de mais nada, o imperativo da diferenciação, tanto conceitual como histórica, para evitar os escolhos, dificilmente contornáveis, do anacronismo e da confusão conceitual. Noutras palavras, o que anunciamos, com a expressão dessa precaução, é que os diferentes cruzamentos entre essas noções irmãs, ao longo dos últimos cinco séculos, podem ensejar confusão de ideias, de formas de vida e de pensamento muito diferentes.

De um lado, é impossível imaginar um contemporâneo nosso que não ligue a ideia de libertinagem (para provocar outro forte curto-circuito anacronizante) com o “dérèglement des sens” (século XIX) ou, mais cruamente, com a débauche ou a orgia sexual, numa palavra, com a transgressão. Um pouco como, já antes do nascimento da modernidade, o epicurista era visto como débauché ou libertino avant la lettre, como está expresso na fórmula clássica que anatemiza os “porcos da grei de Epicuro” – tudo isso na contracorrente da elevada reflexão ética dessa respeitável tradição filosófica.

Alguém dirá que sempre foi assim. Testemunho disso é a precoce autodefesa dos libertinos. Assim, podemos ler sob a pena dos chamados “libertinos eruditos” do século XVII parágrafos tão esclarecedores como o seguinte, de Guy Patin: “O sr. Naudé, bibliotecário do sr. cardeal Mazarin, amigo íntimo do sr. Gassendi, bem como amigo meu, convidou-nos para, no próximo domingo, jantarmos e dormirmos, nós três, em sua casa em Gentilly, com a condição de que fôssemos apenas os três, e que lá nos consagrássemos à débauche, mas só Deus sabe que débauche. O sr. Naudé só bebe água, jamais degustou vinho. O sr. Gassendi é tão delicado que não ousaria degustá-lo, e pensa que seria queimado se bebesse vinho… Quanto a mim, só posso deitar pó sobre a escrita desses dois grandes homens, e bebo muito pouco — e, no entanto, será uma débauche, mas filosófica, e talvez algo mais; talvez nós três, curados do lobisomem e libertos da doença dos escrúpulos, que é a tirana das consciências, possamos nos aproximar do santuário. Fiz, no ano passado, essa viagem a Gentilly com o sr. Naudé, somente nós dois, tête-à-tête; não havia testemunhos e eles não eram necessários, lá pudemos falar de tudo, muito livremente, sem escandalizar ninguém”.[3]

É bem verdade ainda que, no mesmo século, autores insuspeitos (à primeira vista ou através dos óculos da retrospecção), como se pode observar no texto de Bayle em epígrafe, insistiam na pureza do espírito libertino.

De outro lado, é impossível não reconhecer algo como uma lógica histórica que conduz do século XVI até hoje –  o movimento geral da Aufklärung ou das Lumières que, visando o peso deformador de toda tradição, ataca diretamente a forma de organização social dominante (Antigo Regime ou capitalismo) e exprime a aspiração a uma forma de humanidade mais pura no futuro, ao mesmo tempo mais humana e racional. De Rabelais aos surrealistas e aos anarquistas, é certo que uma mesma inspiração ou aspiração parece perpassar.

Mas serão, de fato, a mesma inspiração e os mesmos pulmões? Os bons impulsos do coração guardarão, ao longo desses poucos séculos, o mesmo sentido, a mesma direção? É o que podemos nos perguntar. Há já várias décadas, Lucien Febvre mostrava em Le problème de l’incroyance au XVIème siècle quanto de anacronismo estava implicado na atribuição retrospectiva de ateísmo a Rabelais. O mesmo Rabelais que, a seguir o doce declive ou inclinação da leitura retrospectiva, estaria na origem (ou na perspectiva) de tudo o que é bom no chamado pensamento moderno: ateísmo, materialismo, ceticismo, libertinismo, livre-pensamento etc…

 

2.

Entre Caríbdis e Cila, é urgente portanto encontrar um caminho intermédio, que permita conciliar evidências assim tão inimigas. De um lado, reconhecer a continuidade inequívoca da Aufklärung, de outro assimilar a ideia de que a rememoração do passado (mesmo próximo) pode corresponder a ignorância ou esquecimento.

Voltemos a nosso ponto de partida: que significam palavras como libertino e libertário? Nos dias de hoje, são vocábulos que incitam nossa imaginação por motivos vários. Mas é preciso discriminar as formas contemporâneas desse revival que tem muito de esquecimento e assume formas tão opostas como as da adesão imediata e do distanciamento crítico.

Para bem compreender as metamorfoses, tanto da filosofia como do espírito libertino nos séculos XVII e XVIII, seria preciso também fazer a história da acolhida e da interdição da literatura libertina durante os séculos XIX e XX. Desde a sua paradoxal preservação no “Inferno” da Biblioteca Nacional (que, curiosamente, como observa Darnton, não se localiza no porão do edifício), preservação que mantinha esses livros fora do alcance do leitor, ou pelo menos do leitor comum. Os livros não foram queimados no século XIX (como desejaria, talvez, uma mentalidade mais jurídica ou policial), mas sua leitura era proibida. Daí, ou desse momento, até as sucessivas fases da reabilitação dessa literatura, de Baudelaire ao surrealismo, para usar o título de um livro muito sugestivo de Maurice Nadeau.

Etapas sucessivas que podem ser descritas como o aprofundamento ou o alargamento do espaço de acolhida dessa literatura passada. Pensemos nas poucas décadas, em nosso século, que separam as edições de Sade promovidas por J.-J. Pauvert (que teve, por isso, problemas com a justiça) e a recente entronização do divino marquês entre os grandes clássicos, na Bibliothèque de la Pléiade. Sem falar nas mais recentes edições que finalmente oferecem ao público o que há de mais infernal na bibliografia que estava segregada no “Inferno” da Biblioteca Nacional em Paris. Penso aqui na Antologia dos Romances libertinos do século XVIII (Ed. Robert Laffont, 1993) elaborada por Raymond Trousson, que é também responsável por um longo e iluminador prefácio de que muito nos serviremos nesta conferência. Ou ainda nos sete volumes do “Inferno” da Biblioteca Nacional, que incluem os romances eróticos de Mirabeau e de Restif de la Bretonne, primeiro e segundo volumes respectivamente; e mais cinco volumes de obras anônimas. Tudo isso sem contar uma antologia que já havia sido publicada na própria Bibliothèque de la Pléiade da Gallimard.

Mas esse retorno do reprimido não implica necessariamente uma abertura dos canais da compreensão. Escolhas teórico-práticas contemporâneas podem opor-se a elas, mesmo quando levam a uma reapreciação positiva dessa tradição literária e filosófica. É o que podemos verificar, comparando duas atitudes contemporâneas, simetricamente opostas, em face da tradição da libertinagem.

A primeira delas é representada pela crítica feminista da literatura libertina. Recorro aqui, mais uma vez, ao belo ensaio de Robert Darnton. Aí podemos ler: “Depois de ler as obras de 150 anos de pornografia, achei difícil resistir à conclusão de que algumas feministas não entenderam bem as coisas. Ao invés de condenar sumariamente toda pornografia, poderiam ter usado algo dela em causa própria. Catharine MacKinnon pode estar correta ao associar os adeptos modernos da pornografia à ideia de que “sexo e pensamento são antitéticos” Mas essa afirmação não resiste aos argumentos desenvolvidos três séculos atrás nos “livros filosóficos”, nos quais o sexo é “uma fonte inesgotável de pensamento” [4]

E não é difícil para Darnton mostrar o quanto a literatura libertina representa de liberador para a condição feminina. A começar pelo elogio da superioridade da mulher no campo da sexualidade. Assim como indicam os versos seguintes, extraídos do romance Histoire de dom B…, de 1740: “Par des raisons, prouvons aux hommes / Combien au-dessus d’eux nous sommes / Et quel est leur triste destin. / Nargue du genre masculin. /Démontrons quel est leur caprice, / Leur trahison, leur injustice. Chantons et répetons sans fin: /Honneur au sexe féminin”.

Não é apenas a superior capacidade, por assim dizer, orgasmática que é aqui sublinhada. É também, e sobretudo, o alcance epistêmico da experiência sexual da mulher. Mesmo se é vítima de violência sexual, a vítima é déniaisée (isto é “desasnada”) e atinge a maioridade da razão – segundo o imperativo da Aufklärung. Como se ao lema kantiano (e antes dele) “sapere aude” essa literatura recomendasse: fornicare aude ut sapias (lembrando aqui que, em latim, sapere tanto significa “saber” como “degustar”). Como é o caso, entre mil outros, de Fanchon, personagem de L’école des filles, que, depois de desvirginada, diz: “Começo a ficar esperta e meter meu nariz em coisas que antes eram desconhecidas para mim”. Sex is good for thought, como diz em inglês o título do texto de Darnton – e poderíamos acrescentar: for ethics. Principalmente se ligarmos, como é sensato fazer, as ideias de ética e de autonomia.

Mas não é apenas a recusa da literatura libertina (como consagração da alienação feminina ou de sua redução a objeto de prazer) que deixa, anacronicamente, passar os traços essenciais dessa tradição literária. A apologia da literatura libertina também pode ser anacrônica – projetando categorias e sensibilidade contemporâneas nossas num mundo essencialmente outro. Penso, aqui, na apropriação contemporânea dos libertinos do século XVIII operada pelos pensadores da “transgressão”, na esteira do surrealismo.

Falo, é claro, de Georges Bataille – aquele que na década de 1930 ficou fortemente interessado pela antropologia de Marcel Mauss, e pela tese de que os tabus foram feitos para ser transgredidos. Mas falo também de Foucault, como pode ser esclarecido com uma breve anedota. Como mera anedota, deve ser relativizada, mas não deixa de lançar – boutade reveladora – alguma luz sobre o uso contemporâneo da ideia de transgressão. A historieta é a seguinte: em 1965, quando da primeira visita de Foucault ao Brasil, na circunstância de um jantar em São Paulo, perguntamos a ele (que escrevera a História da loucura na Suécia) sobre a famosa “liberdade sexual” aparentemente dominante naquele país de clima frio. Ao que sucedeu o seguinte diálogo que agora dramatizo para melhor exemplo:

FOUCAULT: “Não há nenhuma liberdade sexual na Suécia”.

NÓS: “Mas, como?”.

FOUCAULT: “É verdade que as moças escolhem um novo parceiro sexual a cada ano. É verdade, também, que só começam a ser malvistas quando escolhem mais de um parceiro por ano. A partir desse índice, podem ser vistas como ‘galinhas’, como se diz no seu belo país”.

NÓS: “E isso não representa alguma forma de liberdade sexual?”.

FOUCAULT: “É preciso pensar que, na Suécia, o inverno é muito longo e rigoroso, o que torna dramática a escolha do parceiro no fim do outono. Tudo ou nada. Mas o que vocês não percebem é que, feita a escolha, o cotidiano da convivência é o mais convencional possível. Ou seja, essa aparente liberdade é a expressão de uma generalização catastrófica da cinzenta atmosfera do matrimônio. É por isso que digo, cum grano salis, que sou favorável à polícia e à repressão. Caso fosse proibida qualquer forma de intercurso sexual antes dos oitenta anos, as mulheres de 79 se tornariam irresistivelmente desejáveis”.

Repito que se trata de mera piada, e que Foucault estava longe de ser um advogado da polícia e das instituições penais. Mas a piada não deixa de lembrar algumas páginas da História da loucura, em que se descreve a montagem dos dispositivos práticos e discursivos do império da moralidade burguesa e nas quais ecoa a fascinação pela ideia de trangressão retrabalhada por Bataille em chave não só antropológica, mas também ético-estético-metafísica.

 

3.

No discurso libertino articulam-se maciçamente, contra as ideias de tradição, crença, convenção social injustificada, as ideias de razão, natureza e liberdade. Ser libertino é pensar livremente (contra a coerção dos preconceitos e da tradição) segundo os princípios da razão e da natureza. Não temos aí todo o programa próprio da filosofia das Luzes?

Mas, que é a Aufklärung? Em primeiro lugar, o Iluminismo é o espelho onde se reconhece a filosofia setecentista. Rubens Rodrigues Torres Filho abre seu belo ensaio Respondendo à pergunta: quem é a Ilustração?[5] como se estivesse abrindo um verbete de um dicionário, com as seguintes palavras: “Luzes (Século das): com essa metáfora de claridade (Lumières, Iluminismo, Enlightenment, Ilustración, Aufklärung), o pensamento europeu do século XVIII formou sua auto-imagem, caracterizada pela confiança no poder da luz natural, da razão, contra todas as formas de obscurantismo”. É impossível não notar a ironia presente nessa definição elementar – embora devamos deixar para a conclusão o sentido que talvez se possa atribuir a ela. Falo da ironia que se exprime na circularidade da definição (como sói ocorrer nos dicionários) do Iluminismo pelo predomínio da luz. Ironia que se multiplica na vírgula presente na seguinte frase, “caracterizada pela confiança no poder da luz natural, da razão (…)” Se podemos vislumbrar alguma tensão no que liga Iluminismo a razão, Rubens Rodrigues Torres Filho separa, por uma vírgula, o poder da luz natural do poder da razão.

De qualquer maneira, estamos em pleno século XVIII e diante de uma filosofia que – para arriscar outra definição elementar, sem nenhuma intenção irônica – poderia ser definida como essencialmente francesa, embora suas melhores origens sejam inglesas e seus efeitos teóricos mais fortes tenham sido alemães. Pensamento europeu, sim, mas nessa ordem. Esse século, na Europa, é francamente francês. Mas, à diferença do século, no século XVIII os filósofos franceses vão buscar na Inglaterra os modelos que utilizarão tanto contra o Grande Racionalismo (para utilizar o vocabulário de Merleau-Ponty) quanto contra o que lhes parece anacrônico na sociedade que os cerca. Não se trata mais, para os filósofos, de encontrar a rocha e a argila buscadas por Descartes, onde assentar, com segurança absoluta, o Sistema do Saber. No século XVIII, a França começa a se ver de fora. Penso aqui, é claro, nas Lettres persanes (o ilustre antepassado das Cartas chilenas de nossa pobre Aufklärung) de Montesquieu. Mas penso, sobretudo, nas Lettres anglaises de Voltaire.

Esse belíssimo livro de Voltaire mostra quão profundamente a França – num século essencialmente francês está enamorada pela Inglaterra. Filosofia natural, filosofia moral, política (isto é, Newton, Locke e a monarquia constitucional), tudo é modelo a ser contraposto aos “romances” físicos e metafísicos de Descartes e aos efeitos perversos do absolutismo na vida social. Nem falta à Inglaterra a vantagem da Reforma, através da qual, ao contrário da França, “cette fille ainée de l’Église” , conseguiu libertar-se “de l’infâme“. ” Écrasez l’infâme!”, dizia Voltaire, convocando a inteligência a combater a Igreja ou Roma.

Mas se a França do século XVIII começa a ver-se a si mesma com olhos exóticos, não é apenas por efeito de uma efêmera “anglomania” (anglomania muito forte, expressa, também, além do texto aludido de Voltaire, na Nouvelle Héloise de J.-J. Rousseau – sem mencionar que o projeto da própria Encyclopédie só veio à mente de Diderot depois do projeto anterior de tradução, para o francês, de um dicionário enciclopédico inglês). Se desde o século XVI, com Montaigne, o pensamento francês havia se aberto para a ampliação do mundo conhecido, é no século XVIII que os filósofos começam a se nutrir da literatura de viagens. Desde o livro clássico de Paul Hazard (La crise de la conscience européenne) até o belo livro de Alain Grosrichard (La structure du sérail), os historiadores mostraram a cumplicidade existente entre o advento do pensamento ilustrado e a descoberta progressiva do Outro, não só na vertente “civilizada” inglesa ou “bárbara” oriental, como na “selvagem” ou “natural” das Américas e do Pacífico. Ao lado das Lettres persanes e das Lettres anglaises, seria preciso mencionar, no caso, o Supplément au voyage de Bougainville, de Denis Diderot.

Mas que buscam, assim, tão longe da França os franceses? Duas palavras são essenciais para a definição desse projeto ou do alvo dessa busca. Razão e natureza. Os historiadores consagraram milhares de páginas às ideias de natureza e de razão no século XVIII, mas o leitor guarda alguma inquietação depois de percorrê-las. Essas palavras ou esses conceitos – tão centrais parecem esquivar-se a uma definição positiva. O uso crítico de que são suscetíveis é claro: razão versus imaginação (ou especulação vazia, esprit de système), e natureza versus artifício “ou convenção infundada e iníqua”. Mais uma vez, já Montaigne se interrogava: “Où commence la peau, et finit la chemise?”. Ou, na sequência de Montaigne, Pascal já apontara para a falta de substância dos hábitos ou dos costumes (em todos os sentidos dessas palavras): “Nos magistrats ont bien connu ce mystère. Leurs robes rouges, leurs hermines, dont ils s’emmaillotent en chats fourrés, les palais où ils jugent, les fleurs de lis, tout cet appareil auguste était fort nécessaire […]”. Tanto mais necessário quanto só o imaginário ou a mistificação pode dar consistência ao aparelho social. Mas agora trata-se de despir o rei.

Se é tão difícil definir o conceito de natureza, na filosofia das Luzes, é talvez porque ele seja menos um conceito do que um horizonte de toda a conceitualização possível. Há finalistas e mecanicistas que se entendem perfeitamente bem quanto ao uso do “conceito” de natureza. Lendo os historiadores do conceito de natureza no século XVIII, somos tentados a fazer pastiche de Wittgenstein e recomendar: “Don’t ask for the meaning, ask for the use […]”.

Não ocorreria o mesmo com o conceito de razão? É claro que o modelo lockiano do entendimento impera – mas, mais uma vez, é o uso que dele é feito que importa. Como observa Cassirer, na sua Filosofia do Iluminismo, tudo se passa como se a tarefa da filosofia das Luzes fosse construir, no domínio da filosofia moral, o equivalente da filosofia natural newtoniana. E é o próprio Cassirer que sublinha como esse ideal da “razão analítica” é indissociável da ideia de progresso. Curiosamente, os três termos da equação (natureza, razão, progresso) parecem articular-se de forma circular – como se o progresso, permitido pela atividade da razão, tornasse possível o retorno à boa ordem da natureza. Não é por acaso que Cassirer insiste em desmontar a imagem caricatural do pensamento iluminista (a ideia de um progresso puramente linear e cumulativo) elaborada pelo pensamento conservador a partir da Restauração. Não se trata, para a razão entendida como “luz natural”, de acumular pacientemente verdades parciais, na direção do mapa-múndi total: quando utilizei, há pouco, a expressão “razão analítica”, pensava no uso crítico ou dissolvente da razão quando aplicado ao preconceito que cimenta – lembrar o texto de Pascal – esta sociedade, aqui e agora. Numa palavra, também a razão só pode ser definida – na Aufklärung – como uma função, não como uma substância, como um horizonte de definição, não como um conceito definível.

 

4.

Mas esse quadro elementar da episteme da filosofia das Luzes não é o suficiente para esclarecer a dialética que a une ao espírito libertino. Para avançar, é necessário fixar nossa atenção nos efeitos ético-políticos desse estilo de pensamento. Procedendo negativamente, consideremos um esquema interpretativo clássico, de inspiração marxista, exemplificado num pequeno ensaio de Peter Nagy[6] Bem menos rico que o monumental livro de René Pintard, ele se presta melhor, por isso mesmo, a uma tarefa, por assim dizer, propedêutica, que nos permitirá, a seguir, passar ao que importa – isto é, à figura que o espírito libertino assume no interior da Aufklärung, principalmente na segunda metade do século XVIII. Leiamos duas páginas do livro de Peter Nagy: “Os libertinos, enquanto grupo religioso[7] coerente que nega radicalmente todas as regras de jogo da sociedade existente, desaparecem da sociedade e da consciência durante o século XVI; mas com o século XVII aparece a tendência e depois o círculo dos libertinos eruditos que por seu ceticismo, por sua busca de uma moral leiga e por seu tateante materialismo se tornariam os precursores dos filósofos do século XVIII. Embora essa filiação, aceita por R. Pintard e A. Adam, tenha sido seriamente posta em questão por um pesquisador italiano, estamos convencidos de sua justeza. Há evidentemente muitas diferenças entre essas duas ideologias: a concepção aristocrática, o ceticismo frequentemente estéril e a visão cínica da história afastam Gassendi, Naudé e seus amigos, certamente, do revolucionário otimismo histórico dos filósofos, de sua convicção da possibilidade de difundir as Luzes nas massas e de sua crítica racional da ordem material e espiritual existente, com o fim de substituí-la por um novo sistema. É evidente que a libertinagem do início do século XVI foi um dos fermentos daquilo que estava na ordem do dia da história: o absolutismo. E o absolutismo triunfante logo busca livrar-se dele. É igualmente evidente que o movimento ideológico que forjou as armas intelectuais da abolição do absolutismo não poderia ser idêntico longe disso a um dos movimentos criadores desse mesmo absolutismo. Todavia, o laço de parentesco não pode ser negado: não somente porque a transformação do ceticismo em racionalismo crítico é indubitável (e por si mesmo basta, aliás, para justificar a filiação), mas porque é corroborado pelo fato de que um mesmo princípio os anima: a negação da ordem estabelecida e dos valores aceitos, para instaurar novos valores. Retrospectivamente, podemos acrescentar que, por um trabalho de demolição e de descoberta, cada um serviu à sua maneira e em sua época para o progresso da história, que era a expressão intelectual de uma classe, de um movimento ascendente.[8]

Para mostrar quão insuficiente é esse esquema interpretativo, seria preciso que nos detivéssemos em cada um dos conceitos aqui mobilizados (ceticismo “estéril-racionalismo”, materialismo etc.), bem como na alegada base social das filosofias do século – que apontássemos, enfim, os problemas envolvidos por essa interpretação “ideológica” da história da filosofia. Fixemos, todavia, apenas um ponto – aquele que faz da Revolução Francesa (senão de outra revolução, mais radical, ainda inscrita no horizonte da história) o telos, alvo e culminação de dois séculos de cultura, onde o espírito libertino é momento essencial.

Para fixar esse ponto, recorrerei a um texto póstumo de B. Groethuysen, originariamente destinado à redação dos últimos volumes programados das Origines de l’esprit bourgeois en France, que deveriam ser consagrados aos grandes pensadores do século XVIII e que foi publicado sob o título de J. -J. Rousseau.[9] O capítulo VIII desse livro tem como tema justamente as relações entre a filosofia das Luzes e a Revolução Francesa, e a posição original de Rousseau dentro desse contexto. Nele, Groethuysen procura sublinhar o caráter revolucionário da obra de Rousseau, por oposição ao pensamento das Luzes como um todo. A tese é clara: ao contrário dos philosophes, Rousseau, ele sim, antecipa, em seus textos, a Revolução Francesa. A filosofia das Luzes não era revolucionária de modo algum; o pensamento de Rousseau, de alguma maneira, já o era. De um lado, uma filosofia cega, por princípio, ao sentido e à possibilidade de uma revolução; de outro, uma filosofia que – desde que levada às suas últimas consequências, para além das escolhas e do estilo do autor – antecipa, ao mesmo tempo, a Revolução Francesa e uma nova forma de pensamento político, que só emergeria dos escombros do Antigo Regime e no cenário social armado pela economia do século XIX.

Groethuysen sublinha fortemente a originalidade ou a solidão de Rousseau no século das Luzes. Mas, afinal, qual é essa originalidade? Em que o pensamento político de Rousseau se demarca, por exemplo, do de um Montesquieu? Groethuysen responde, apontando para os limites do pensamento político de Montesquieu (e fornecendo, dele, uma imagem diversa da proposta por Althusser). A perspectiva de Montesquieu é, de alguma maneira, externa ou contemplativa; ele vê “as coisas políticas de longe, como historiador e jurista; não tem a visão imediata dos movimentos políticos; não toma partido”.[10] Tudo se passa, enfim, como se Montesquieu, como os philosophes em geral, tivesse uma concepção, por assim dizer, técnica da política. E, sobretudo, uma concepção dos mecanismos políticos, cujas peças fundamentais (rei, parlamento, antigas reminiscên­cias dos Estados-Gerais, imagens da república antiga) não dão lugar à “atividade” política, aos programas, a nenhuma forma de um projeto prático. É a própria ideia de ação política que não tem aqui o menor cabimento. Ao que Groethuysen acrescenta: “Isso só tem início com a revolução. É só a partir de então que passou a haver políticos propriamente ditos”.[11] Encontraríamos, acaso, em Rousseau, do outro lado da linha, o esboço da futura concepção, digamos, “intervencionista” da política, com a promoção da ideia de ação política, de um programa de transformações sociais ancorado em um movimento social, quase diríamos: com a ideia de partido? É claro que não. Mas Groethuysen matiza os termos de sua comparação, sublinhando o que lhe parece corresponder à emergência de um novo sentido do político ou da política em alguns textos de Rousseau, como o seguinte: “J’avais vu que tout tenait radicalement à la politique, et que, de quelque façon qu’on s’y prit, aucun peuple ne serait que ce que la nature de son gouvernement le ferait être” (Confissões, II, livro IX). Mas não será, certamente, a determinação da “alma de um povo” pela “forma de governo” que há de discrepar do estilo analítico do Espírito das leis. Na verdade, o que dá corpo à proposição “Tout tient à la politique” é a situação excepcional de Rousseau – o genebrino na França. Tudo se passa como se, paradoxalmente, uma visão menos “externa” da política derivasse do olhar suíço com que Rousseau considera a França, como se a distância fosse condição da proximidade.

Aqui é necessário ler in extenso um parágrafo de Groethuysen: “Isto tem importância. Imaginemos um francês do século XVIII que se dissesse republicano. Isso significaria que, descontente com o regime atual, gostaria de substituí-lo por outro, que adota máximas absolutamente contrárias àquelas em vigor. Ora, no tempo de Rousseau, ninguém na França foi sinceramente até esse ponto, e veremos quanto, durante a Revolução, o pensamento republicano tardou a enraizar-se nos espíritos. Um francês que, no tempo de Rousseau, fosse sinceramente republicano, isto é, partidário de uma república na França e não somente, como havia muitos, admirador da república romana, teria sido um milagre: teria ultrapassado seu tempo, teria realizado em si e por si mesmo, sozinho, a transformação que só por um esforço coletivo se realizaria mais tarde; ter-se-ia libertado de todos os preconceitos, teria vivido, por assim dizer, fora de seu tempo. Não quero dizer que um amor platônico pela forma republicana fosse impossível na França do século XVIII. Um contemporâneo de Voltaire poderia enamorar-se pela forma republicana, mas ouvir a França, a antiga monarquia dos Capetos, proclamar uma república isso teria soado estranho aos seus ouvidos. E o próprio Rousseau não encorajou ninguém a seguir esse caminho. A França é uma grande nação e essa é a razão pela qual, a não ser transformando-a num Estado federalista outra teoria que pareceria estranha na França está excluída qualquer ideia de república.[12]

Mas não é apenas o olhar externo e etnográfico de Rousseau que lhe permitiria – sem contudo sonhar com o impensável, ou seja, com uma França republicana – uma virulência na sua descrição dessa sociedade, que faria dela um bom instrumento na mente e nas mãos dos futuros revolucionários. A esse olhar excêntrico junta-se outra peça essencial, propriamente teórica, que marca a discrepância da teoria rousseauniana da sociedade e da história em relação ao fundo homogeneamente otimista da filosofia das Luzes. Otimismo cego para aquilo que mais tarde se chamaria “a inércia dos aparelhos”, a “positividade do negativo”, ou a contradição como motor do devir histórico. Com efeito, a filosofia das Luzes entende-se a si mesma como pedagogia, ou sua tarefa como a da educação da humanidade. O fio condutor da história humana incide no limite móvel que separa o saber do não-saber, e a essência da política coincide com a propagação das Luzes. A especificidade do poder e da dominação é diluída no elemento mais etéreo do saber. Nada há de opaco, no social ou no desenho das instituições, que não possa ser dissolvido pelo puro exercício da razão: só o preconceito ou a ignorância dão consistência ao negativo na sociedade.

“Se todas as pessoas se tornaram razoáveis e se as leis são bem-feitas, será que é verdadeiramente importante saber quais, dentre elas, governarão as outras, e de que modo o farão? As grandes reformas aplaudidas pelos philosophes não foram justamente efetuadas por reis esclarecidos?”[13]

Com Rousseau, o centro de gravidade da reflexão política se desloca da esfera do saber para a do poder, ou da esfera da razão para a da paixão, ou ainda da do Discurso para a da Força. As vontades, as paixões, mesmo os direitos reivindicados remetem a uma Econômica ou uma Dinâmica onde se opõem proprietários e despossuídos, fortes e fracos, dominantes e dominados. Não se trata mais de difundir o saber, mas de organizar forças dadas, ou de neutralizar um conflito existente desde sempre, contando apenas com as forças (demasiado humanas) disponíveis. É a diferença social que vem finalmente à tona, tornando necessária a determinação dos meios de suprimi-la. O que há de irracional ou intolerável na organização social não lhe advém, como que de fora, de uma administração desamparada pela razão e obscurecida pela ignorância. Advém-lhe, sim, de seu próprio coração ou de sua natureza íntima, já que as instituições, ou as sociedades políticas, nasceram justamente da necessidade de legitimar e de garantir a permanência da desigualdade que terminou por emergir nas sociedades pré-políticas.

Sobre o pano de fundo dessa arqueologia da desigualdade (Segundo discurso), o Contrato social aparece como design de um dispositivo organizacional que permite reverter o movimento espontâneo que levou à criação das instituições políticas. O grande problema será resolvido quando a lei sempre for posta acima dos homens: ser servo da lei é não ser servo de ninguém. Se nas sociedades políticas as instituições nada mais fazem do que recobrir e legitimar o império da violência, trata-se de dar força à lei, retirando-a de grupos e indivíduos, transformando assim a própria estrutura e a natureza da sociedade. Tal transformação não seria propriamente uma revolução?

Com a descrição impiedosa do funcionamento da sociedade, o pensamento de Rousseau abre um abismo entre o ser e o dever ser, onde o dever ser aparece como exigência de realização: “Não há meio de conciliar o que é com o que deve ser, através de simples reformas que, resguardando o que foi conquistado, permitiriam uma evolução em direção a um melhor estado de coisas”.[14]

Ao fim e ao cabo, as oposições entre Rousseau e os philosophes culminam, no quadro desenhado por Groethuysen, numa fórmula lapidar na sua simetria: “Os philosophes seriam antes evolucionistas em matéria de política e revolucionários em matéria de religião. Em Rousseau, levando suas teorias a suas últimas consequências, seria o contrário”.[15]

 

5.

É claro que o esquema que acabamos de apresentar é sumário, se não caricatural. E poderia ser indefinidamente afinado e sofisticado. Por exemplo, poderíamos pelo menos lançar mão de estudos recentes de Marcel Gauchet. Este ano mesmo [1995], ele desenvolveu na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, um interessante curso, que poderia receber o título de “Arqueologia do sujeito moderno”, no qual examinou as transformações simultâneas do sujeito passional ou afetivo (a progressiva transformação da paixão da filosofia antiga no sentimento da filosofia moderna), do sujeito do conhecimento e do sujeito político. O interessante é que esse estudo chega a mostrar mesmo a continuidade inesperada entre o elevado discurso jansenista e a linguagem desabusada dos filósofos das Luzes ou dos libertinos do século XVIII, entre anti-humanismo e humanismo. Mas não era já essa continuidade que havíamos sugerido, acima, viajando de Pascal a Diderot?

Mas deixemos de lado os matizes mais delicados. Nosso esquema elementar nos permite, pelo menos, esclarecer nossa intenção. Ou explicar nossa impressão de que muito, na historiografia e na crítica produzidas em nosso século, é mais resultado de projeção retrospectiva do que de compreensão filológica. Risco a que estamos sempre sujeitos, mas que se avoluma quando aproximamos expressões como libertinos e libertários. É o caso, por exemplo, de Roger Vailland, em muitos de seus escritos, dentre os quais aquele que consagrou a Laclos. Aí vemos surgir um Laclos não só libertino, como também libertário, no sentido de revolucionário – mais ainda, no sentido que a palavra revolução assumiu, no século XIX, com o movimento operário, particularmente entre os anarquistas.[16]

Deixemos bem claro: é certo que essa forma de razão analítica ou dissolvente representada pela filosofia das Luzes não é pacifica e transforma a análise conceitual em dinamite. De resto, a prudência, na linguagem e no comportamento, dos libertinos eruditos do século XVII e o anonimato em que se protegiam os libertinos agressivos ou militantes do século seguinte mostram que ninguém ignorava que o espírito libertino punha algo mais que o próprio espírito em questão.

O que queremos insinuar, no fundo e um pouco na contracorrente de certa literatura, é que é preciso reconhecer a unidade do pensamento clássico (séculos XVII e XVIII) e sua heterogeneidade em relação ao nosso mundo, engendrado na viragem do século XVIII ao XIX (assim como o mundo renascentista de Rabelais era reconhecido por Lucien Febvre como essencialmente heterogêneo ao da Idade Clássica, que lhe atribuía retrospectivamente a etiqueta de “ateísmo”). Dito brutalmente (e ao contrário do que sugere Peter Nagy): não há revolucionário antes da Revolução Francesa.[17] Ou, ainda, a palavra libertário assumiu, no século XIX, um sentido que jamais tivera antes, e é este o que se oferece imediatamente, hoje, a nossa sensibilidade e nossa compreensão. É bem o que diz Robert Darnton (embora sem pensar, no texto acima referido, pelo menos, na dimensão propriamente política da libertinagem), quando sublinha a distância que nos separa da forma de vida e de sensibilidade do Antigo Regime, que torna, para nós, quase impossível sequer imaginá-la.

Mas, se afastamos, assim, o mundo clássico de nós – reconhecendo sua alteridade e sua estranheza –, talvez compreendamos melhor a continuidade que o atravessa. Sem achatar todas as formas do espírito libertino numa única matriz invariável, podemos vislumbrar o fio que conduz da filosofia austera dos libertinos eruditos aos mais escabrosos romances eróticos do século XVIII. Discrição no século XVII, ostentação provocatória nos fins do XVIII – mas, num caso como no outro, é a razão analítica que lança seu ácido na argamassa imaginária ou teológico-política que cimentava o Antigo Regime. Movimento que só se torna revolucionário com a própria Revolução Francesa, como podemos ver no panfleto “Français, encore un effort, si vous voulez être républicain”, presente no romance La philosophie dans le boudoir, de Sade, que marca talvez a ponta mais extrema e o fim, a morte do espírito libertino.

No entanto, percebendo a continuidade, percebemos também algo como uma mudança, que não consiste apenas num aprofundamento ou numa radicalização da razão crítica. Arrisquemos, para finalizar, uma fórmula provocativa. Reconhecendo, contudo, que filosofia das Luzes e espírito libertino são mais ou menos cúmplices desde a origem, de um século a outro uma inversão parece ocorrer entre essas duas figuras da cultura.

A narrativa de Guy Patin, citada acima, mostra-nos que, no tempo de Gassendi, a libertinagem era pouco mais do que livre-pensamento ou livre exercício da razão. Os romances do século XVIII, de Crébillon Fils a Sade, passando por mil outros autores, mostram que a libertinagem, entendida cruamente como orgia e excesso erótico, passou a ser entendida como condição de possibilidade da razão e da filosofia.

*Bento Prado Jr. (1937-2007) foi professor titular de filosofia na Universidade Federal de São Carlos. Autor, entre outros livros, de A retórica de Rousseau (Cosac & Naify).

Publicado originalmente no site ArtePensamento IMS.

 

Notas


[1] Apud Paul Hazard, A crise da consciência europeia (1680-1715), Lisboa, Cosmos, 1948, P. 107.

[2] Cf. Robert Darnton, “Sex for thought”, The New York Review of Books, 22 de dezembro de 1994. Cf. neste mesmo volume, pp. 19-40.

[3] Apud René Pintard, Le libertinage érudit dans la première moitié du XVIII’ siècle, Genebra/Paris Slatkine, 1983, p. 326.

[4] Cf. Robert Darnton, op. cit.

[5] Cf. revista Discurso, ric. 14, pp. 101-12.

[6] Cf. Peter Nagy, Libertinage et révolution, Gallimard, 1975.

[7] Peter Nagy refere-se aqui a movimentos heréticos do século XVI, como o dos anabatistas de Flandres, combatidos como libertinos por católicos e protestantes, tanto pela “livre crítica espiritual” quanto pelo dévergondage sexuel. Uma bela descrição romanesca desse movimento pode ser encontrada em A obra em negro, de Marguerite Yourcenar. Movimento semelhante, na Idade Média, entre os franciscanos, é descrito no romance O nome da rosa,de Umberto Eco, que tematiza a libertinagem dos fraticcelli.

[8] Cf. Peter Nagy, op. cit., pp. 20-1.

[9] Cf. B. Groethuysen, J.-J. Rousseau, Paris, Gallimard, 1949.

[10] Cf. idem, ibidem, p. 224.

[11] Idem, ibidem, p. 225.

[12] Cf. idem, ibidem, pp. 221-2.

[13] Idem, ibidem, p. 226.

[14] Idem, ibidem, p. 209.

[15] Idem, ibidem, p. 233.

[16] Para uma interpretação diferente do sentido ético e político da obra de Laclos, cf. Raquel de Almeida Prado, “Ética e libertinagem nas Ligações perigosas”, neste mesmo volume, pp. 253-65.

[17] Isso vale também para Rousseau. Lembremos que B. Groethuysen só faz dele exceção, quando levado às últimas consequências, para muito além das intenções e da consciência do próprio filósofo. Afirmação que, obviamente, faz problema: que significa, para um filósofo, ser revolucionário sem sabê-lo?

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