A greve dos professores das Universidades federais

Imagem: Abdelrhman Magdy
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Por DANIEL AFONSO DA SILVA*

O fundamental de toda a situação reside na necessidade de imediato reconhecimento da incontestável derrota moral, intelectual, tática e operacional de toda a categoria nos últimos dez, quinze ou vinte anos

Tem muitos anos que Luis Felipe Miguel virou incontornável no debate público de ideias no Brasil. Sempre bem informado, ele clarifica, como ninguém, a compreensão da conjuntura política corrente. Poucos observadores da cena nacional possuem a sua sofisticação na abordagem dos temas e a sua precisão na elaboração de argumentos. No entanto, nem sempre é possível concordar tudo que ele propõe. Há momentos em que ele, sinceramente, acelera demais ou freia bruscamente nas curvas. De toda sorte, mesmo nessas derrapadas injustificadas que promovem ocasiões de franca discordância intelectual fica impossível totalmente ignorá-lo.

A sua avaliação da razão da greve dos professores de algumas universidades federais a partir da segunda-feira, 15/04, apresentada no luminoso artigo “Por que os professores das federais vão entrar em greve?”, é precisa, honesta, inteligente e contundente. Seria sinceramente difícil encontrar manifestação melhor. Numa primeira leitura, inexistem reparos a serem feitos à sua análise nem à sua posição.

Entretanto, meditando com mais vagar vai sutilmente emergindo a convicção de que ele acerta pura e simplesmente no varejo deixando no atacado quase tudo a desejar. Não seguramente por ignorar a dimensão da complexidade do problema. Mas, talvez, por não ansiar adentrar no vivo das questões que estão para muito além da variabilidade de pesos e medidas que a nova presidência Lula da Silva imprime ao funcionalismo público federal e à sua categoria docente.

Luis Felipe Miguel sabe perfeitamente que o indicativo da greve não decorre simplesmente da recomposição – necessária, urgente, legal e moral – dos vencimentos dos professores das universidades federais. Não são só os centavos. Por saber disso, ele talvez compreenda o essencial da presente divergência e perceba que o fundamental de toda a situação reside na necessidade de imediato reconhecimento da incontestável derrota moral, intelectual, tática e operacional de toda a categoria nos últimos dez, quinze ou vinte anos.

O “silêncio dos intelectuais” na viragem para a presidência Dilma Rousseff foi a demonstração mais fidedigna do deslocamento – e mesmo, desvirtuamento – do peso da universidade brasileira em geral e das universidades federais em particular na vida nacional. O espetáculo em torno do “Escândalo do Mensalão” e a pugnacidade da Ação Penal 470 entorpeceram, intimidaram e desbarataram a integralidade das lideranças verdadeiramente pensantes e publicamente atuantes entre os docentes. A frustração, ali, parece ter canibalizado as fagulhas de esperança. Conseguintemente, a universidade pública brasileira como um todo começou a sinceramente perder a densidade de sua força e combatividade.

Voltando compassadamente no tempo, vai possível perceber que a partir daquele momento a universidade foi progressivamente deixando de pautar positivamente a agenda de mudanças estruturais urgentes e necessárias do país. O sonho – materializado na vitória de 2002 – fazia-se, então, pesadelo, e parecia tudo desmanchar no ar. Como consequência, a dinâmica de melhoramentos da educação brasileira em geral e do ensino superior em particular foi sendo implodida em pleno voo.

Muitos poderão datar em outro momento o início da hecatombe. Antes ou depois talvez. Mas, pensando-se bem, foi a imaculada incompreensão e perplexidade generalizada diante da extraordinariedade dos eventos de 2004-2006 que pavimentaram uma alameda retilínea para o ensimesmamento sem precedentes de toda a categoria de professores universitários federais.

Desde ali, portanto, que as expectativas com o fator universidade viraram inclementemente decrescentes. Mesmo diante da fulgurante expansão das universidades federais – sobre essa expansão, vale muito a leitura do formidável artigo “Lula e o ensino superior”, assinado por de André Moreira Cunha e Alessandro Donadio Miebach, postado recentemente no site A Terra é Redonda – naqueles anos iniciais das aventuras lulitas e petistas no poder, o entusiasmo com tudo era frio.

Dessa maneira, ressurgir – leia-se: retirar a cabeça até o nariz da submersão em águas profundas do desgosto – para barrar a vitória de José Serra nas presidenciais de 2010 foi uma questão envolta em dispositivos de natureza simplesmente moral e de honra. Só por isso e só pra isso. Em seguida, todos os docentes de expressão pública e reconhecidamente intérpretes engajados do Brasil retornaram ao silêncio. E assim permaneceram. Mesmo diante das noites de junho de 2013.

Muito já se falou e se escreveu sobre aqueles incidentes das noites de junho. Praticamente todos os seus aspectos já foram ostensivamente auscultados pela intelligentsia brasileira e estrangeira. Entretanto, por mais extraordinário que possa parecer, a categoria dos professores notadamente universitários claramente não retirou a integralidade das lições daquelas noites tampouco promoveu o exame necessário de consciência para contrastar enfaticamente a ideia subjacente naqueles protestos que, pouco a pouco, foi se afirmando na máxima “Olavo tem razão”.

Não: Olavo de Carvalho não tinha nem tem razão.

Mas isso não foi observado nem problematizado à época tampouco depois. Um depois que envolveu da hipocrisia do “não vai ter Copa” em 2013-2014, as escaramuças das presidenciais de 2014, o martírio da presidente Dilma Rousseff em 2015-2016, a implacabilidade do impeachment de 2016, o sangramento às jorras do tecido social brasileiro sob a Ponte para o Futuro da presidência Michel Temer, o contraditório “Ele, não” das presidenciais de 2018 até se chegar à indicação e à nomeação de gente da qualidade de Ricardo Vélez Rodríguez e Abraham Weintraub para o Ministério da Educação.

Ou seja, sem meias palavras, a categoria mais bem intelectualmente equipada do país foi incapaz de ver, prever e conter a multiplicação dos ovos de serpentes que ladrilharam os caminhos iracundos para a ascensão e afirmação de um verdadeiro estúpido à presidência da República.

Não se trata aqui de qualificar ideologicamente o presidente Jair Bolsonaro e a sua trupe como sendo a expressão de alguma direita ou de algo de extrema direita. Esse tipo de manobra intelectual simplesmente desvirtua e anuvia a discussão sobre as dimensões reais do problema – e aqui e agora talvez não seja o lugar nem o momento apropriados para se voltar a essa verdadeira querela analítica. Mas, curta e grossamente, vai importante se reconhecer de uma vez por todas que a afirmação do bolsolavismo e de toda a sua letalidade na paisagem política brasileira decorreu também e sobretudo do apagão mental geral dos professores universitários brasileiros nesses anos todos.

Alguma clarividência, sim, surgiu ao longo do tempo. Veja-se, por exemplo, a estridência do “Ele, não”. Foi importante e interessante, mas, reconheça-se, quase que inteiramente insignificante. O leite já estava quase todo derramado e a quase totalidade da categoria docente observava bestializada e entorpecida todo aquele aterramento do país.

De toda sorte, Luis Felipe Miguel tem muita razão ao sinalizar que a categoria dos professores federais esteve na “linha de frente da defesa da democracia e da resistência aos retrocessos” – mesmo não estando claro para ninguém a natureza dessa “democracia” tampouco o tamanho do sinistro tangido por esses “retrocessos” – sob o bolsonarismo e durante as presidenciais de 2022.

Entretanto, mesmo estando diretamente afiliado à lendária Universidade de Brasília, onde o eterno Darcy Ribeiro pronunciou o inflamado discurso “Universidade para quê” de renascimento da Universidade após o regime militar, ele, Luis Felipe Miguel, em nenhum momento de seu alentado artigo “Por que os professores das federais vão entrar em greve?” cogita considerar que o enclausuramento da categoria diante da verdadeira blitzkrieg olavista e bolsolavista envelopada no axioma de guerra cultural desconjuntou o que havia sobrado da natureza essencialmente crítica – com “c” maiúsculo e não com o “c” minúsculo da crítica de tipo identitária e woke que passou em toda parte a imperar – da universidade brasileira.

Vale singelamente sempre lembrar que os professores universitários brasileiros nunca foram tão impunemente desrespeitados, destratados, desconsiderados, difamados, humilhados e violentados quanto na quadra que envolveu das noites de junho de 2013 à tarde de 8 de janeiro de 2023 e redundou na afirmação da indigência acadêmica e intelectual em todas as franjas da realidade brasileira. Nunca. Da mesma forma, pesa muito se reafirmar que nunca as universidades públicas de todas as esferas foram objeto de tamanho descrédito, desprestígio, desvalorização e também humilhação como nesse período.

Tudo devido – é verdade – a uma inquestionável brutalização de todas as relações sociais no Brasil adicionada a uma franca, intencional e declarada tentação revisionista simplesmente inédita na história educacional brasileira. Mas, ao mesmo tempo, tudo também alimentado pelo silêncio gritante da categoria que, em sua maioria, preferiu a autopreservação individual na carreira que o embate grupal pelos seus valores existenciais.

Vendo por esse prisma, quando vários professores saíram corajosamente às ruas aos brados de “Ele, não”, o leite, além de quase todo derramado, já estava quase todo azedo ou coalhado.

Note-se bem, quando um histriônico proprietário de lojas de departamento tipo Havan começa a ubiquamente vandalizar e menosprezar a legitimidade do que se ensina no interior das universidades federais e nenhum reitor, nenhum conselho universitário, nenhuma associação da classe, nenhum intelectual ou nenhum professor de expressão pública se levanta, tudo está claramente perdido. O rei está nu e a torre de marfim, desabada. Não há o que fazer nem o que reivindicar. A capitulação geral está consumada. Trata-se de uma implacável “défaite”. “Étrange défaite”.

Não vem, assim, ao caso defender ou não a greve dos professores das federais por merecidas, constitucionais e morais reposições salariais. O fundamental é se recobrar nas forças para se reconhecer com honestidade a brutalidade do peso derrota de cunho existencial dos últimos anos e enfim voltar a meditar com seriedade sobre pra quê todos nós professores das federais e das demais universidades brasileiras efetivamente servimos.

*Daniel Afonso da Silva é professor de história na Universidade Federal da Grande Dourados. Autor de Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas (APGIQ). [https://amzn.to/3ZJcVdk]


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