As ideias precisam circular. Ajude A Terra é Redonda a seguir fazendo isso.

A impunidade de Eduardo Pazzuelo

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIS FELIPE MIGUEL*

Dissipa-se de vez a ilusão de que os generais podem servir de freio a Jair M. Bolsonaro.

A impunidade de Pazuello é um indicador poderoso da posição dos militares e da complexidade da conjuntura política no Brasil para quem sonha com a restauração do caminho democrático.

Dissipa-se de vez a ilusão de que os generais podem servir de freio a Bolsonaro. Para não brigar com ele, assumiram um vexame homérico: aceitar a desculpa esfarrapada de um general embusteiro, num caso que atraiu os olhares de toda a nação, avacalhando de vez a hierarquia (que, segundo o discurso oficial, seria a marca distintiva dos militares) e escancarando a partidarização dos quartéis. Para Bolsonaro, que cultiva hoje, como cultivou no passado, a agitação política do baixo oficialato, é uma vitória e tanto. Seus adeptos mais aguerridos ganharam carta branca para fazer o que bem entenderem. Para o generalato covarde, é a absoluta desmoralização.

Desde o começo do governo, Bolsonaro tem se estranhado com alguns chefes militares. Há os que são seus caudatários fiéis, como Augusto Heleno ou Eduardo Villas Bôas. Com outros, a relação é sujeita a atritos, permanecendo em estado de constante tensão (caso do vice-presidente Hamilton Mourão) ou chegando ao rompimento (caso dos ex-ministros Carlos Alberto dos Santos Cruz e Fernando Azevedo e Silva). São divergências quanto a políticas pontuais e lutas por espaço no governo, não incompatibilidades de fundo. Por vezes, analistas da imprensa vestem estes desafetos com as fantasias do “apreço à democracia”, do “legalismo” ou do “medo da politização das Forças Armadas”, mas há pouca base para isso. Todos eles, afinal, foram avalistas do golpe de 2016, agentes da fraude institucional que levou à vitória de Bolsonaro em 2018, entusiastas de primeira hora de um governo com nítido fedor fascista e que entregou a gestão do Estado brasileiro a oficiais militares. Diante disto, como sustentar a imagem de generais democratas e profissionais?

Não há um setor legalista expressivo na cúpula do Exército desde o expurgo ocorrido logo após o golpe de 1964. Os governos da Nova República ficaram encantados com a relativa paz que reinou nos quartéis depois da devolução do poder dos civis. Houve resmungos por parte de generais de pijama, manifestações desabridas de comandantes da ativa em ocasiões específicas (como a promulgação da Constituição e durante os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade) e turbulências eventuais entre oficiais de baixa patente, destacando-se o plano para atentado terrorista preparado no Rio de Janeiro por um jovem tenente de limitadas luzes, descoberto em 1987. Pouco, em comparação com os frequentes tumultos militares do período democrático anterior a 1964. A relativa calmaria permitiu que os governos posteriores a 1985 se desinteressassem da questão e quase nada fizessem para adequar as Forças Armadas ao controle civil e à convivência democrática. Elas jamais foram instadas a produzir uma autocrítica da ditadura. Pelo contrário, aferraram-se a um universo paralelo em que a “Revolução” de “31 de março” tinha livrado o Brasil da ameaça comunista e a tortura e a corrupção não tinham existido.

Não se trata de uma corporação militar apenas antidemocrática. Ela o é, profundamente, mas no cerne de sua rejeição à democracia está sua crença fervorosa no valor das hierarquias sociais, seu repúdio categórico ao valor da igualdade. Trata-se de um sentimento antipovo. Por isso, além de seu caráter antidemocrático, esta corporação não se percebe como parte do povo ao qual deveria servir – e este é o outro elemento importante para compreender sua posição diante da conjuntura. O sofrimento dos trabalhadores, a privação dos miseráveis, a desesperança dos jovens, nosso meio milhão de mortos na pandemia, nada disto a comove porque ela se vê como pertencendo a outro lugar. Neste sentido, a elite militar é bem parecida com as outras elites brasileiras, incapaz de qualquer solidariedade com a massa dos que estão abaixo e, portanto, incapaz de alcançar um verdadeiro sentimento nacional.

Quanto a isto, é possível dizer que até regredimos, da ditadura empresarial-militar de 1964 para cá. Os generais que empalmaram o poder há quase 60 anos eram, muitos deles, guiados pela fantasia do “Brasil potência”. Tinham, lá, o seu nacionalismo antipovo. A frase antológica de Garrastazu Médici indica um pouco seu programa: “O país vai bem, mas o povo vai mal”. Depois que largaram o governo, no entanto, eles foram abandonando o desenvolvimentismo. Aderiram ao credo neoliberal: “livre mercado”, “vantagens comparativas”, o pacote completo. Abandonaram também a noção de soberania nacional. Ficam satisfeitos com uma posição de subordinação canina diante dos Estados Unidos e estão, alguns deles, chegando perto de Paulo Guedes no campeonato de entreguismo.

É também por isso, por virar as costas a um povo com o qual faz questão de não se identificar, que a cúpula militar pode se mostrar tão insensível ao sofrimento, tão cúmplice do descalabro, tão bolsonarista. Tem seus cargos, suas verbas, suas mordomias, suas muitas vantagens – e o que importa o resto?

A decisão sobre Pazuello, pela alta visibilidade que teve, vale por uma declaração do Alto Comando do Exército. Mesmo que motivada não por genuíno apreço, mas por conveniência, é uma declaração de fidelidade a Bolsonaro e a seus métodos – o desrespeito às regras estabelecidas, o desprezo pelas aparências, o vale-tudo. E uma declaração de compromisso. Eles estão indicando, sem margem para dúvida, de que lado estão hoje e de que lado permanecerão em 2022.

Vão dar um golpe? Acho difícil pensar numa quartelada clássica. Falta liderança, falta coragem e falta coesão – a impressão é de que existe uma disputa interna muito grande, grupos se digladiando para saber qual pode auferir maiores vantagens. O mais provável é a continuidade do comportamento adotado desde a preparação do golpe de 2016: ações e declarações para manter a temperatura política elevada, demonstrações localizadas de truculência, pressão indisfarçada sobre as “instituições” (que já mostraram o quão acovardadas estão).

“Pressão” é a palavra-chave também para o nosso lado. O que a decisão sobre Pazuello enterra é a ilusão de que teríamos, no ano que vem, um processo eleitoral razoavelmente “normal” – e, com ela, a ilusão paralela de que basta ganhar as eleições (com Lula?) para pôr o país nos trilhos da retomada democrática. Ganhar as eleições é o mais fácil, ainda que não o seja. Antes disso, temos que garantir que a esquerda possa escolher livremente suas candidaturas. Depois, temos que garantir a posse dos eleitos e sua capacidade de efetivamente governar. Para tudo isso, precisamos de capacidade de pressão. Isto é, de organização e de mobilização.

As circunstâncias são desafiadoras; a pandemia, cúmplice do governo, é nossa inimiga. Mas as manifestações do domingo passado mostraram que há, na sociedade, energias esperando ser canalizadas para esta tarefa. O reforço do trabalho político permanente, de resistência hoje e acúmulo de forças para o futuro, é imprescindível e urgente.

*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).

 

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.800 autores.
Boaventura de Sousa Santos Luis Felipe Miguel Fernando Nogueira da Costa Leda Maria Paulani Benicio Viero Schmidt Manuel Domingos Neto João Lanari Bo Flávio Aguiar Gabriel Cohn Caio Bugiato Henry Burnett Fernão Pessoa Ramos Luiz Marques Sergio Amadeu da Silveira Afrânio Catani Tales Ab'Sáber Luiz Werneck Vianna Milton Pinheiro Priscila Figueiredo Berenice Bento Lincoln Secco Everaldo de Oliveira Andrade Antonio Martins Lucas Fiaschetti Estevez Ladislau Dowbor Daniel Afonso da Silva Michael Löwy Ronald Rocha Carlos Tautz Bernardo Ricupero Marcos Aurélio da Silva Ari Marcelo Solon Luiz Augusto Estrella Faria Alexandre de Lima Castro Tranjan Slavoj Žižek Roberto Noritomi Daniel Costa Ruben Bauer Naveira Eugênio Bucci José Raimundo Trindade Ronald León Núñez Juarez Guimarães Jorge Branco Flávio R. Kothe Carlos Águedo Paiva Samuel Kilsztajn Chico Whitaker Maria Rita Kehl José Geraldo Couto Chico Alencar Vanderlei Tenório Airton Paschoa Fábio Konder Comparato Marcelo Guimarães Lima Mário Maestri Ricardo Fabbrini Leonardo Boff Luciano Nascimento Marjorie C. Marona Paulo Capel Narvai José Costa Júnior Vladimir Safatle Rodrigo de Faria Paulo Martins Gerson Almeida Walnice Nogueira Galvão Marcos Silva Rubens Pinto Lyra Jorge Luiz Souto Maior João Adolfo Hansen Henri Acselrad Leonardo Sacramento Paulo Sérgio Pinheiro Marcus Ianoni Daniel Brazil Bruno Machado Luiz Renato Martins Kátia Gerab Baggio Valério Arcary Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Remy José Fontana Annateresa Fabris Ricardo Musse Gilberto Lopes Bento Prado Jr. Manchetômetro Francisco Fernandes Ladeira Celso Favaretto José Micaelson Lacerda Morais Otaviano Helene Heraldo Campos João Paulo Ayub Fonseca Vinício Carrilho Martinez Osvaldo Coggiola Atilio A. Boron Liszt Vieira Jean Pierre Chauvin Luiz Carlos Bresser-Pereira Ricardo Abramovay Paulo Nogueira Batista Jr Luís Fernando Vitagliano Luiz Bernardo Pericás Leonardo Avritzer Dennis Oliveira Luiz Costa Lima Eleutério F. S. Prado André Márcio Neves Soares Celso Frederico Eduardo Borges Eliziário Andrade Jean Marc Von Der Weid Yuri Martins-Fontes Claudio Katz João Sette Whitaker Ferreira José Machado Moita Neto Marilia Pacheco Fiorillo André Singer Dênis de Moraes Antônio Sales Rios Neto Alexandre Aragão de Albuquerque Denilson Cordeiro Ricardo Antunes João Feres Júnior Alysson Leandro Mascaro José Luís Fiori João Carlos Salles Luiz Roberto Alves Tadeu Valadares Francisco de Oliveira Barros Júnior Julian Rodrigues Thomas Piketty Ronaldo Tadeu de Souza Tarso Genro Carla Teixeira Luiz Eduardo Soares Lorenzo Vitral Elias Jabbour Marcelo Módolo Anselm Jappe Francisco Pereira de Farias José Dirceu Andrew Korybko Alexandre de Freitas Barbosa Paulo Fernandes Silveira Antonino Infranca Mariarosaria Fabris Plínio de Arruda Sampaio Jr. Rafael R. Ioris João Carlos Loebens Matheus Silveira de Souza Igor Felippe Santos Anderson Alves Esteves Michael Roberts Eleonora Albano Armando Boito Roberto Bueno Eugênio Trivinho Marilena Chauí Sandra Bitencourt Érico Andrade

NOVAS PUBLICAÇÕES