A insubmissão do real

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Por Marilia Pacheco Fiorillo*

Uma realidade totalmente desconhecida há poucos meses, total incógnita até o momento, pede certa paciência, inclusive do conceito.

Aviso ao leitor educado: o real daqui, em minúsculas, não é a majestosa confluência com o Racional, a quimera hegeliana do último vibrato na ópera agonística da marcha do mundo. Não é grandioso, soberbo ou escatológico. È tão somente cruel. De uma crueldade da dimensão dos fatos. Fatos? Há quem, à menção deles, levante as sobrancelhas. No mundo das ideias, fatos são uma falsificação. Não há fatos nus, ingenuidade das ingenuidades. São aparência, mera crença, delírio de uma doxa obstinada, ou pistis teimosa. Desprezíveis e menosprezados, dizem que fatos não passam da máscara da máscara da máscara da Real Ideia. Aderir a eles – assim, como matéria prima para matutar –, seria compactuar com um reles grau do conhecimento, só um pouquinho melhor que querer entender a vida pela arte.

1.

Pode ser. Mas às vezes este atordoante e comezinho real se impõe com tamanha violência, tal tempestade, que torna terra arrasada – para platônicos ou pós – as costumeiras, rebuscadas e deliciosas digressões. Como argumentar com um tsunami? É o caso da pandemia do coronavírus, e de alguns muito respeitáveis filósofos.

Uma realidade totalmente desconhecida há poucos meses, total incógnita até o momento, pede certa paciência, inclusive do conceito. Seria injusto, porque prematuro, esperar explicações razoáveis (de epidemiologistas, sanitaristas ou doutores no trivium) já e já. Isto é, pedir que elucidem algum arrazoado que atenda não só á hermenêutica, mas sobretudo às aflições dolorosamente reais daqueles que padecem. Qualquer hipótese em curso (de cura ou colapso) precisará, agora, para não fermentar o anti-intelectualismo reinante, aferrar-se ao tal real. À intransponível realidade do sofrimento, da dor, da crueldade, do dilema moral a que estão submetidos os que decidem sobre vidas. À tangível existência de indivíduos, corpos, cada corpo.

Pior, para a turma do trivium: não há evasivas. Não há, também, um eu que seja o centro de gravidade da narrativa (eu classe, eu gênero, eu estamento), nem a possibilidade de invocar a narrativa como escapatória da angústia.

O nós – a descrição, límpida, universal, da dor indiscriminada – finalmente triunfou, pelo pior dos motivos. Se impôs, e não foi pela desejada disseminação da tolerância ( palavrinha muito condescendente), muito menos pela explosão da empatia ( palavrinha que tem sido muito abusada, e mal empregada). O vírus é democrático, pois seu terror se abate sobre todos – claro, como em toda democracia, uns se saem melhor, outros sucumbem.

Ironicamente, ele, e o medo dele, vão provavelmente nos levar à criação de uma “comunidade de confiança”, por paradoxal e excêntrico que pareça. Como diz Richard Rorty em um breve ensaio sobre justiça como lealdade ampliada, sentimento e não imperativo categórico [Pragmatismo e poltica, Martins], “o que Kant descreveria como resultado do conflito entre obrigação moral e sentimento, ou entre razão e sentimento, é, em uma explicação não-kantiana, um conflito entre um conjunto de lealdades e outro conjunto de lealdades. A ideia de uma obrigação moral universal de respeito à dignidade humana é substituída pela ideia de lealdade para com um grupo mais amplo – a espécie humana (…e mesmo) de lealdade para com todos aqueles que, como nós, podem experienciar a dor”.

Se dilemas morais não são conflitos entre o dever e o querer, mas entre querer para a gente, um pequeno grupo, ou um grupo maior, a briga entre os eus alternativos vai perder fogo (a família, o clã, os vizinhos versus os estrangeiros, os estranhos). Data vênia aos otimistas, surgiu algo comum, e todos comungam no “não ter nada a perder”, antes apanágio de uma classe.

É o terror da morte que vai botar em uníssono o “nós”, não a boa-vontade. Recapitulando Rorty, não são os princípios abstratos que moldam a justiça, mas alguma circunstancia em que as “lealdades paroquiais” se expandem , e os problemas de certas pessoas (as próximas) se igualam aos de (quase) todas. No caso da pandemia, o dilema deu um piparote: deixou de ser o clássico guardar comida para a própria família em tempos de escassez, em vez de dividi-la com moradores de rua, e tornou-se o mantra de todos com todos: encontrar a vacina, ou o remédio, para a tribo do planeta.

O medo, não a compaixão, extinguiu o duvidoso choque de civilizações (burka ou shorts, dá na mesma), a refrega entre direitos de minorias ou direitos humanos, atinge ricos e pobres, precariado e burguesia, garotos e idosos, como você queira chamar.

O medo, quem diria, é o vetor do único bem comum em emergência, a lealdade ampliada.

2.

Cabe aos filósofos, claro, desembaraçar-se da tosca empiria e projetar voos de maior alcance no tempo e maior consistência na amplitude. Muitos deles tem se dedicado a discutir a pandemia da perspectiva da perda de liberdades individuais, do controle, da vigilância, do pretexto de que necessitava o Estado de Exceção para se regalar de vez.

Tomemos o caso do filosofo italiano Giorgio Agamben e do artigo publicado um pouco antes de a Itália tornar-se o epicentro da vez do coronavírus, situação só mitigada quando se decretou o lockdown, o confinamento inflexível. Agamben , autor de Homo Sacer (UFMG) e Estado de Exceção (Boitempo) é, inegavelmente, um filósofo que merece o título, ao criar conceitos potentes, originais, plugados no mundo contemporâneo – ao contrario de muitos de seus pares que se esmeram em novas nomenclaturas, tão mais impenetráveis quanto triviais.

Giorgio Agamben

Para uma rápida introdução às ideias de Agamben. O Homo sacer (Homo Sacer. Poder soberano e vida nua, 1998) é inspirado em uma figura do direito romano, daquele que cometeu certo crime não previsto na lei, mas pelo qual tem revogada sua condição de “cidadão”; assim, por estar fora da jurisdição da lei, não pode ser punido; entretanto, como também não está protegido por ela, pode ser assassinado a bel prazer por qualquer um e a qualquer momento sem que o assassinato configure um crime, (já que o sacer está além e aquém de dispositivos legais.)

Assim, por estar desalojado de seus direitos civis, fica automaticamente despojado de seus direitos humanos básicos. O conceito é luminoso, pois corresponde em minúcia à anatomia do refugiado contemporâneo, tema por excelência do século XXI, e que ressurgirá como um dos mais aterradores efeitos colaterais da pandemia. O morador dos campos de refugiados é aquele que foi empurrado, de vez, para a situação de “fora da lei”.

Só possui a vida nua (zoé), o corpo. Os prisioneiros de Guantanamo, detidos sem acusação formal, eram privados de seus direitos humanos exatamente por terem sido despidos de sua condição de cidadãos, já que se tratava de “prisioneiros inimigos-combatentes”, não de prisioneiros de guerra, como definido pelas convenções de Genebra. Só lhes restava resistir com a vida nua, a greve de fome. Nesta medida, o sacer é o oposto especular do Basileus, ou soberano, que, por encarnar a lei em sua pessoa pode suspendê-la ou alterá-la.

O soberano também é um “fora da lei”, mas vantajosamente, pois paira acima dela. O Führer é o soberano que opera à margem da lei, mas do interior dela, como se ela emanasse de sua pessoa. Entre suas prerrogativas está a de decretar o Estado de exceção, no qual (e aqui está o umbigo do conceito) a lei não precisa ser revogada, mas apenas suspensa por tempo indefinido.

Para Agamben, é assim que agem a maioria das ditas democracias ocidentais. Vide o “Ato Patriotico” de Rumsfeld/ Bush, que legalizava a tortura, ao redefini-la como vale tudo, desde que não atingisse, irreversivelmente, algum órgão vital. Agamben inspirou-se no trabalho do ideólogo e jurisconsulto do nazismo (depois escanteado) Carl Schmitt, conselheiro de Hermann Göring. A vida sob o Estado de Exceção está incluída no ordenamento jurídico pelo avesso: por sua condição de excepcionalidade, de ameaça, velada ou não, de exclusão de direitos.

A aniquilação destes direitos civis e humanos, para Agamben, é algo que se tornou corriqueiro no mundo contemporâneo: campos de concentração (os Uighurs na China), centros de detenção de imigrantes (Líbia, Grécia e outros), campos de refugiados, a perder de vista.

3.

Em 26 de fevereiro, Agamben publicou “Lo stato d’eccezione provocato da un’emergenza immotivata: Coronavirus. La paura dell’epidemia offre sfogo al panico, e in nome della sicurezza si accettano misure che limitano gravemente la libertà giustificando lo stato d’eccezioneeste” [O Estado de exceção provocado por uma emergência imotivada: o coronavirus. O medo da epidemia oferece um escape ao pânico, e em nome da segurança, são aceitas medidas que restringem gravemente a liberdade, justificando o Estado de exceção].

O texto saiu no jornal Il Manifesto (o paciente número um da Itália havia sido internado dia 19, ainda sem diagnostico preciso). Eis alguns trechos:

“Frente ás frenéticas, irracionais e completamente imotivadas medidas de emergência visando uma suposta epidemia devida ao vírus corona, vamos partir da declaração oficial do Consiglio Nazionale delle Ricerche (CNS), segundo a qual “não há epidemia de Sars-CoV2 na Itália”. Mais: a infecção, pelos dados epidemiológicos hoje disponíveis sobre dezenas de milhares de casos, causa sintomas leves/moderados (uma espécie de gripe) em 80/90% dos casos. Em 10/15%, pode evoluir para uma pneumonia, cuja evolução é, porém, benigna em sua maioria absoluta. Calcula-se que apenas 4% dos pacientes venham a necessitar de terapia intensiva. Se esta é a situação real, porque a mídia e as autoridades se dedicam a disseminar clima de pânico? (…). Dois fatores podem concorrer para explicar um comportamento tão exagerado. Antes de mais nada, manifesta-se novamente a crescente tendência de usar o Estado de exceção como paradigma normal de governo. O decreto-lei rapidamente aprovado pelo governo “por motivos de higiene e segurança pública” implica,de fato, em uma verdadeira militarização dos municípios e das áreas em que há ao menos uma pessoa para a qual não se conhece a fonte de transmissão (…). Se diria que, exaurido o terrorismo como motivação de medidas de exceção, a invenção de uma epidemia ofereceria o álibi ideal para ampliá-las além de qualquer limite”.

Para Agamben, pois, eram “frenéticas, irracionais e totalmente desmotivadas” as medidas que “provocariam um verdadeiro e próprio Estado de exceção. Sua pergunta central: o que é uma sociedade que não tem outro valor senão a sobrevivência?

Epidemia inventada, álibi para fincar de vez o Estado de exceção, normalização da emergência. Agamben dixit. A sobrevivência pode não ser o mais sublime dos ideais da sociedade, mas, convenhamos, é a maiúscula condição real para todos eles.

O também filosofo francês Jean-Luc Nancy, respondeu com o sarcástico artigo “Exceção Viral”. Concordando com o alerta de Agamben de que os governos sempre buscam pretextos para esticar Estados de exceção, lembrou, porém, que a diferença de letalidade entre uma simples gripe e a Covid é enorme. “Há uma espécie de exceção viral – biológica, informática, cultural – que nos pandemiza. Os governos não são senão tristes executores dela e desforrar neles é mais uma manobra diversionista do que uma reflexão política”. E finalizou: “Giorgio é um velho amigo. Há quase 30 anos os médicos julgaram que eu deveria fazer um transplante de coração. Giorgio foi dos poucos que me disse para não escutá-los. Se eu tivesse seguido seu conselho, provavelmente estaria morto”.

Pois é. O real não se submeteu aos refinados, precisos, originais, dignos de todo encômio, conceitos de Agamben, desajeitadamente alocados.

4.

Contra o admirável Agamben: Jacinda Ardern. A prosaica, jovem, magnética, delicada primeira-ministra da Nova Zelândia. Aquela que levava seu bebê recém-nascido ao gabinete, e estranhava quem se escandalizava. Aquela que revelou um respeito e solidariedade às vitimas muçulmanas do atentado á mesquita em Christchurch lembrando-se de cobrir a cabeça, na conversa com as famílias das vitimas. Aquela que transmitia seus boletins diários sobre a Covid em camiseta e moleton. Aquela que falava não em “guerra contra o vírus” mas em amabilidade e união do “time de 5 milhões”. Aquela que chegou ao cúmulo de discursar sobre a importância de Papai Noel.

Mas que tirana desastrada!. A Nova Zelândia venceu a batalha contra o coronavírus, após cinco semanas de lockdown drástico. Agiu rápido, com medidas draconianas e cirúrgicas. O lockdown foi decretado aos primeiros sinais de que a pandemia chegava. Temos só 102 casos, disse na ocasião a primeira ministra, “mas foi assim que a Itália começou”.

5.

Contra Rorty, com toda admiração: “Beautiful souls, saying no, breaking ranks, and heeding the voice of consciente in dark times” [Beleza no âmago: dizendo não, agindo sozinhos e alçando a voz da consciência em tempos sombrios] (Farrar, Strauss and Giorux, New York). O autor, o historiador Eyal Press conta quatro historias de gente desconhecida e pouco vaidosa, gente desencanada que desafiou o grupo a que pertencia, desobedeceu a lei e a norma, inventou truques para salvar vidas, mesmo arriscando as suas próprias, e que, de diferente, só tem a marca da lealdade imensa e incondicional à tribo humana, no singular. É ler, para crer.

*Marilia Pacheco Fiorillo é professora aposentada da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP).

 

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