Por MÁRIO AUGUSTO MEDEIROS DA SILVA & ANTONIO BRASIL JR.*
Trecho do Prefácio à nova edição do livro de Florestan Fernandes
A integração do negro na sociedade de classes – tese de cátedra defendida por Florestan Fernandes em 1964 e publicada em forma de livro no ano seguinte, em volumes de mais de 700 páginas pela editora Dominus em parceria com a USP – exprime de modo agudo as promessas e as frustrações que marcaram o breve interregno democrático que se estendeu de 1945, com o fim do Estado Novo, a 1964, ano do golpe civil-militar. O livro, escrito ao final deste período – a defesa ocorreu poucos dias depois do golpe – captura e amplifica as grandes questões colocadas a respeito da democratização da sociedade brasileira em meados do século passado, com as quais dialoga de modo tenso, dotando-lhes de rigor e densidade sociológicas.
Neste sentido, o texto operou como uma caixa de ressonância de um momento histórico que apresentava simultaneamente um horizonte inédito de transformação social e a presença latente – que logo depois se tornou manifesta – de tentativas de redefinição daquele horizonte em sentido autoritário, conservador e excludente. Não por acaso, Fernandes trata, no livro, da questão racial como um dilema a ser enfrentado ativamente pela sociedade brasileira, e não deixado simplesmente ao sabor das circunstâncias. Dilema que, a seu ver, tinha relação necessária com a própria realização da democracia no país.
Dito de outra forma: há uma discussão consistente em A integração do negro sobre os limites estruturais de nossa realização democrática, que não é apenas o tema do livro, mas acompanha o próprio processo de construção dos seus argumentos. Pode-se afirmar que, entre “o legado da raça branca” e “o limiar de uma nova era” – subtítulos dos dois volumes do livro, respectivamente –, o autor propõe a discussão da passagem de uma sociedade rural, eivada de distinções estamentais e de castas, para uma sociedade urbana, competitiva, porém esvaziada de conteúdo democrático. Tal processo sócio-histórico plasmaria sujeitos e instituições, impedindo a plena realização dos direitos no novo cenário. Desafios contextuais do Brasil, na metade do século XX, observados pelo elo mais fraco e prejudicado de sua corrente: o negro.
Há um balanço tanto teórico e metodológico que precisa ser feito sobre o potencial heurístico dessa obra, mas também uma análise contextual sobre as condições sociais de sua produção e seus desdobramentos, tanto para a história das ciências sociais, como para a sociedade brasileira. Menos para se procurar uma determinação – o que implicaria numa relação mecânica entre efeitos de origens variadas –, e sim para que se pondere sobre os modos ativos pelos quais o livro se relacionou com os vocabulários cognitivos e normativos disponíveis em seu tempo, inclusive para que se possa avaliar se a obra inovou ou simplesmente deu seguimento a procedimentos intelectuais rotinizados. Com isto, tornam-se visíveis os ditos e os interditos, os efeitos de contatos, os constrangimentos dos possíveis, as conexões de sentidos.
Estas duas formas de abordar o livro – uma analítica e outra contextual – não devem ser vistas necessariamente, contudo, como antitéticas, mas como fecundando-se mutuamente. Embora possamos, com proveito, retomar analiticamente certas hipóteses e construções do livro e divisar sua capacidade de interpelação contemporânea, esse movimento ganhará maior profundidade caso retenhamos certos aspectos contextuais que organizam, internamente, à própria obra, os argumentos desenvolvidos em A integração do negro. Especialmente se levarmos em conta que, no livro, há uma aposta permanente no potencial de uma efetiva democratização da sociedade brasileira, feita de baixo para cima, através do protagonismo do negro.
O que inclusive dá um sentido inconformista à própria noção de “integração social” que anima o título do livro e o andamento dos argumentos – “integração” não remeteria à estabilização da ordem social, mas à plena realização dos potenciais democráticos de uma ordem social aberta –, não obstante as muitas evidências em contrário que Fernandes também identifica e analisa exaustivamente ao longo dos dois volumes. Trata-se, portanto, de uma aposta, e não de uma predição. Aposta que se liga, é claro, aos anseios que se difundiam nos anos 1950 e 1960 de que a sociedade brasileira deveria se encaminhar para a democratização de suas estruturas sociais, mas devidamente calibrada pelo rigor da pesquisa empírica sociologicamente orientada, que apontava para a conexão estrutural e profunda entre a modernização em curso e as formas de desigualdade e de condutas herdadas do passado.
A aposta expressa em A integração do negro, segundo nossa hipótese, é portadora e expressiva de uma radicalidade política e teórica, que nem mesmo em seu tempo conseguiu ter portadores sociais para sua execução, fossem negros e não negros, fosse a sociedade brasileira mais ampla. Não se tratava de alcançar alguns direitos, especialmente os juridicamente formais; ou de alguns pontos da democracia e da cidadania, como se vislumbram nos dias correntes. Haveria – como há ainda hoje – sempre uma situação incompleta, fosse na cena histórica, fosse na realização dos sujeitos, quase sempre aspeados (“negros”, “brancos”, “democracia” etc.). Pode-se acusar o autor e sua obra, então, de certo idealismo – quando e em que circunstâncias tais condições se realizaram cabal e irrestritamente, na experiência social das sociedades capitalistas? Mas tal acusação não diminui a altura do horizonte dos problemas; antes, recoloca-os.
Vale dizer que esta aposta precisou ser rapidamente requalificada por Fernandes, em termos teóricos e políticos, em fins dos anos 1960, haja vista o contravapor autoritário iniciado em 1964. Os bloqueios estruturais à democratização da sociedade brasileira, já extensamente anotados e analisados em A integração, seriam mesmo típicos de uma revolução burguesa nas condições de um “capitalismo periférico”, argumento exposto dez anos depois em A revolução burguesa no Brasil (1975). Ou, dito de outro modo, os variados mecanismos, discutidos exaustivamente em A integração, que explicariam a reprodução e a naturalização das desigualdades raciais e sociais seriam agora entendidos pelo autor como um dos esteios da força e da persistência do que ele denominará em A revolução burguesa de “autocracia burguesa”.
No entanto, mesmo salientando com a maior nitidez possível os limites à democratização feita pelos “de baixo”, isto é, ao protagonismo popular, Fernandes jamais deixará de apostar que a única saída possível é dada justamente pela emergência do Povo na história, para glosar frase marcante que está na “Nota Explicativa” que abre A integração. Uma espécie de aposta impossível, uma vez que seu diagnóstico é o de uma sociedade que, com perdão do exagero, parece se orientar social, cultural, política e economicamente contra a democratização. Mas que outra saída haveria de existir senão apostar no poder popular, mesmo que as condições para a sua concreção histórica se revelem quase inverossímeis?
Em nosso contexto atual, de profunda crise da ordem democrática instituída pela Constituição de 1988 – cheia de limites e problemas, como o próprio Fernandes não deixou de anotar no calor da hora em sua atuação parlamentar –, bem como de regressões democráticas em diferentes partes do mundo, as perguntas colocadas pela sociologia de Fernandes a respeito da democracia no Brasil parecem cobrar novo sentido e urgência. É certo que o (agora sabemos) curto intervalo democrático permitiu avanços inquestionáveis, como a inclusão social e econômica de vastas parcelas dos setores subalternos e a afirmação e a institucionalização de direitos sociais e do direito à diferença racial e de gênero.
No que toca ao debate racial, termos como “racismo estrutural” passaram a disputar, no debate público e na percepção cotidiana, os limites impostos por décadas pelo pacto da “democracia racial”, permitindo inclusive o avanço (embora sempre disputado) da legitimação social às ações afirmativas no ensino superior, nas seleções para concursos públicos, dentre outras iniciativas. Por outro lado, o atual desdobramento da “autocracia burguesa” em uma nova ordem que passa a incorporar ativamente a fascistização nas diferentes dimensões da vida social, tensionando e corroendo por dentro os avanços das décadas anteriores, torna-se contraprova eloquente dos estreitos limites que a sociedade brasileira impõe a qualquer processo mais substantivo de democratização – mesmo que, para tal, seja necessário retirar qualquer máscara ou fachada de uma ordem minimamente civilizada e orientada para a universalização dos direitos e das garantias sociais. Se a crise democrática que experimentamos tomou de surpresa muitos de nós cientistas sociais, talvez Florestan Fernandes não se surpreendesse totalmente com o rumo atual dos acontecimentos no país.
Revendo a recepção do livro
Retomando o fio da meada, a releitura teórica de A integração do negro não pode deixar passar despercebida esta dimensão de aposta que está organizando o livro – tanto em sentido teórico e metodológico quanto normativo. Fernandes traduz as aspirações presentes em sua geração intelectual, no sentido de “fazer ciência, fazer história”, orientando seus argumentos em direção à sociedade, à possibilidade de autodeterminação do “Povo” – termo recorrente em seus escritos –, ou, mais especificamente, à possibilidade de o subalterno, o negro, ser senhor de si e de seu destino – e não mero instrumento das classes dominantes.
Mas isto nunca deu suporte a uma visão otimista do processo de democratização das relações raciais ou, em sentido mais amplo, da democratização da sociedade brasileira como um todo. Nos termos de Fernandes: “[…] não podemos endossar as opiniões ‘otimistas’. O caminho percorrido foi quase insignificante, não correspondendo nem aos imperativos da normalização da ordem social competitiva, nem às aspirações coletivas da ‘população de cor’”. Esta combinação peculiar de otimismo – a aposta no protagonismo popular – e ceticismo – sua desconfiança em relação à efetiva superação dos bloqueios à democratização – foi como o autor respondeu aos desafios postos à cena histórica naquele tenso período da sociedade brasileira. Daí sua nota divergente em relação aos anseios desenvolvimentistas do período, que imaginavam que a simples aceleração da urbanização e da industrialização resolveria automaticamente os problemas de integração social.
Estas observações preliminares se impõem porque há um tipo de leitura – equivocada, a nosso ver – que sugere que, em A integração do negro, com o avanço do capitalismo, a questão racial se resolveria mais ou menos automaticamente. Parece-nos improvável encontrar suportes textuais para tanto. Mais uma vez: não podemos confundir a aposta normativa do autor com a reconstrução efetiva do universo empírico das relações raciais empreendida ao longo do livro.
Isto não quer dizer, é claro, que seja possível separar inteiramente a dimensão normativa da análise sociológica desenvolvida no livro. Caso contrário, a sociologia de Fernandes não poderia ser vista como uma sociologia crítica. Afinal, é à luz das potencialidades identificadas na “ordem social competitiva” –, suporte organizatório da sociedade de classes –, isto é, do horizonte emancipatório inscrito em uma sociedade aberta e democrática, que Fernandes identifica e avalia os bloqueios estruturais – desigualdades seculares, formas de conduta reguladas por valores “tradicionalistas”, processos de mudança social heterogêneos e fragmentados – que frustram permanentemente a realização daquelas potencialidades.
Há, assim, um juízo contrafactual carregado de sentido normativo: se o avanço da sociedade urbano-industrial se coadunasse com a universalização da ordem competitiva, o paralelismo entre cor e posição social precária poderia se dissolver, colocando noutro patamar – mais democrático – as relações entre brancos e negros. Para Fernandes, ao contrário do que sugere uma leitura rápida do livro, a urbanização não operaria como uma variável analiticamente independente, realizando sempre os mesmos efeitos, independentemente das especificidades históricas envolvidas. Antes, a expansão da sociedade de classes no Brasil, observada empiricamente a partir da cidade de São Paulo, caminhava pari passu a uma profunda indiferença a respeito da situação do negro. É por isto que a questão da democracia é uma dimensão substantiva da reflexão sociológica do autor, e não uma dimensão residual que pudesse ser deduzida de outras variáveis, como urbanização, industrialização, secularização etc.
Ao que tudo indica, sobretudo no campo de pesquisas sobre relações raciais no Brasil, é a leitura de Carlos Hasenbalg, em seu seminal Discriminação e desigualdades raciais no Brasil (1979), que vem modelando grande parte da recepção crítica de A integração do negro. Em seu valioso balanço bibliográfico da questão racial nos Estados Unidos e no Brasil, Hasenbalg faz uma leitura fina do livro de Fernandes; porém, acaba justamente por minimizar a distinção entre a dimensão normativa e contrafactual – a aposta, tal como assinalamos acima – e a dimensão factual da análise empírica das tendências sociais observadas pelo autor. Além disso, Hasenbalg imputa ao livro uma visão dualista da mudança social, como se tradição e modernidade – ou, nos termos de Fernandes, sociedade estamental e de castas e sociedade de classes – fossem compostas por variáveis sistêmicas interligadas e incompatíveis entre si.
A nosso ver, concordando com Elide Rugai Bastos, há, em A integração, a rejeição “de uma explicação linear”, pois é o encontro reiterado dos elementos arcaicos e modernos – e não a superação dos primeiros pelos últimos – que gera, “simultaneamente, o objetivo, a unidade de pesquisa, o desafio à compreensão, a busca de um suporte teórico e o método de investigação”. Vejamos, a título de exemplo, um trecho de “Raça, classe e mobilidade”, um dos capítulos escritos por Hasenbalg em Lugar de negro (1982), livro feito em parceria com Lélia González, em que o autor explicitamente dialoga com as teses de Fernandes: “preconceito e discriminação raciais [para Fernandes] são vistos como requisitos do funcionamento de regime escravista, mas como sendo incompatíveis com os fundamentos jurídicos, econômicos e sociais de uma sociedade de classes. A adoção de um modelo normativo de revolução burguesa e de sistema social competitivo leva a uma sobrestimação do potencial democrático e igualitário da sociedade de classes em formação. Isto, junto com a visão do preconceito e discriminação raciais como sobrevivências anacrônicas do passado escravista – destinados portanto a desaparecer com o amadurecimento do capitalismo – levam de forma implícita a um diagnóstico otimista sobre a integração do negro à sociedade de classes”.
Esta reserva quanto à interpretação de Hasenbalg do livro de Fernandes não tem intuito polêmico, muito pelo contrário. Cumpre registrar que Discriminação e desigualdades raciais no Brasil foi um elemento decisivo para a reorganização dos estudos sobre relações raciais no país a partir da década de 1980, tendo igualmente forte impacto no ativismo negro. Trata-se, apenas, de reabrir A integração para novas leituras possíveis, e, quem sabe, colocá-lo de volta nos debates contemporâneos referidos não só à questão racial, mas à própria condição da democracia no Brasil. Afinal, a versão que Hasenbalg nos legou de A integração parece estar presente em muitos trabalhos sobre o tema, como podemos ver em contribuições tão distintas como as de Angela Figueiredo (2015) (2015), Edward Telles (2014), João Feres Jr. (2006) e Roberto Motta (2000). E mesmo um autor que incorpora positivamente o legado teórico do livro, como Jessé Souza (2006), acaba repisando indiretamente no mesmo problema.
Para não deixar dúvidas, cabe lembrar que, para Fernandes, nenhuma sociedade de classes existente, nem mesmo aquelas que teriam experimentado revoluções burguesas clássicas, havia efetivamente logrado a universalização da ordem social competitiva, muito embora, nestes casos, a luta por direitos tenha avançado bem mais do que no Brasil. Como ele mesmo diz, “a história moderna está repleta de exemplos que demonstram que a ordem social competitiva pode ser ajustada, econômica, racial e politicamente, ao monopólio do poder por determinado estoque ‘racial’ (nos exemplos em questão: a ‘raça branca’)”.
Não há, em Fernandes, uma “idealização” do moderno capitalismo, como ele apresentasse uma afinidade necessária com a realização de uma ordem social democrática. O que ele aponta, sim, é que as formas de estratificação social que organizam a sociedade de classes articulam-se, ao menos potencialmente, com a abertura à competição e ao conflito pelas posições sociais mais vantajosas do sistema social, ao contrário da monopolização da renda, do prestígio e do poder que marcaria uma sociedade de tipo estamental. Se, e somente se, o processo de universalização fosse levado ao seu extremo limite é que poderíamos dizer que a sociedade de classes estaria plenamente realizada.
Em nenhum momento de A integração do negro na sociedade de classes, livro que analisa a formação, a expansão e a diferenciação deste tipo societário na cidade de São Paulo, epicentro da revolução burguesa no Brasil, Fernandes afirma que haveria tendências sociais consistentes no sentido de reverter a concentração racial da renda, de superar a estereotipação negativa dos negros e, associado a estes dois pontos, de colocar em crise a monopolização dos direitos e das garantias sociais da ordem social competitiva pelos brancos. Muito pelo contrário, e sem minimizar, é claro, as inúmeras mudanças ocorridas entre a Abolição e a década de 1960 – arco temporal coberto pelo livro –, o autor demonstra como, a cada momento histórico, a desigualdade racial herdada do passado se repõe, limitando a luta por direitos e a afirmação autônoma do negro na cena histórica.
Esta proposta de releitura de A integração do negro se beneficia de pesquisas recentes que têm trazido novas luzes sobre o contexto de produção e de recepção da obra, notadamente em relação aos movimentos negros de São Paulo. Nos últimos anos, há o adensamento da discussão sobre o papel desempenhado pelos informantes negros da pesquisa, cujos nomes são mencionados nos agradecimentos do livro: ao secretário da Comissão para o Estudo das Relações Raciais entre Negros e Brancos em São Paulo, Jorge Prado Teixeira; aos “informantes de côr” (sic), doutores Raul Joviano do Amaral, Edgar Santana, Arlindo Veiga dos Santos, Francisco Lucrécio, Geraldo de Paulo e Ângelo Abaitaguara, e aos senhores José Correia Leite, Geraldo Campos de Oliveira, Francisco Morais, Luis Lobato, professor Antonio Dias, José Pelegrini, Vicente de Paula Custódio, Paulo Luz, Vitalino B. Silva, Mário Vaz Costa, Carlos Assumpção, Romeu Oliveira Pinho, Joaquim Valentim, Nestor Borges, Cirineu Góis, José de Assis Barbosa, Adélio Silveira, Anibal de Oliveira, Luis Aguiar, Benedito Custódio de Almeida, Gil de Carvalho, José Inácio do Rosário, Sofia de Campos, Aparecida Camargo, Nair Pinheiro, e senhoras Benedita Vaz Costa, Maria de Lourdes Rosário, Maria Helena Barbosa, Ruth de Souza e Nilza de Vasconcelos são sujeitos pesquisados e ativos. Isso permite afirmar que uma chave explicativa da obra é esta construção de um horizonte de interesses partilhados, comum aos sociólogos e intelectuais negros em debater um estado de coisas complicado nos anos 1950.
Neste sentido, um dos pontos polêmicos do livro, a denúncia da “democracia racial como mito” é também consequência do pensamento no interior de associações de ativistas negros, envoltos em lutas sociais desde a década de 1920, ouvidos na pesquisa Unesco e fornecedores, para Fernandes e assistentes, de histórias de vida, ensaios sociais manuscritos, narrativas taquigrafadas e debates acalorados na antiga Faculdade de Filosofia ou na Biblioteca Municipal. Aqueles sujeitos seriam índices vivos do povo organizado, confrontando diariamente as possibilidades abertas (e fechadas) no processo sócio-histórico. Os ativistas eram participantes de jornais da imprensa negra paulista (Bastide, 1973; Ferrara, 1986), como Clarim d´Alvorada, Voz da Raça; de associações como Frente Negra Brasileira (1931-1937), Clube Negro de Cultura Social (1928-1932), Associação José do Patrocínio (década de 1940), Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos (1711-), Associação dos Negros Brasileiros (1948) e da Associação Cultural do Negro (1954). Esta relação entre sociologia e ativismo no meio negro é uma das mediações contextuais decisivas para se entender de modo mais preciso o sentido da aposta de Fernandes.
A fim de demonstrar a validade de nossa releitura de A integração do negro, o restante do texto está dividido em quatro partes. A primeira parte reconstrói os argumentos do autor no que toca à passagem do rural ao urbano, vista em A integração a partir da situação do negro e das relações raciais na cidade de São Paulo. Apesar das especificidades históricas de São Paulo e do grupo negro na cidade, Fernandes entende que este ângulo de observação permitiria iluminar, com notável nitidez, os limites mais gerais da democratização da sociedade brasileira. Do elo mais enfraquecido da corrente, seria possível analisar a estrutura social; da periferia do sistema afere-se melhor o centro.
A segunda parte destaca, de modo mais detido, como o autor analisa os modos de socialização experimentados pelo meio negro de São Paulo, quer em condições de pauperismo extremo, quer em situações de mobilidade social ascendente, retendo os efeitos da desigualdade e do preconceito racial em suas formas de interação, de associação e de reivindicação coletiva. Ainda que de diferentes maneiras, Fernandes mostra os limites impostos à autonomia do negro nos dois casos, limitando-o à elaboração de soluções individuais aos dramas coletivos deste grupo social em São Paulo.
Nas duas últimas, discutiremos com mais atenção a reconstrução, feita pelo autor, dos movimentos negros em São Paulo, cuja explicação não pode ser dissociada da intensa relação por ele travada com intelectuais e outros segmentos da população negra e das inovações teóricas, metodológicas e empíricas que esta relação trouxe para a discussão sociológica das relações raciais no Brasil.
[…]
*Mário Augusto Medeiros da Silva é professor do Departamento de Sociologia da Unicamp.
*Antonio Brasil Jr. é professor do Departamento de Sociologia da UFRJ.
Referência
Florestan Fernandes. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo, Contracorrente, 2021, 888 págs.