A língua frankestein dos comunicadores

Imagem: Jessica Lewis
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Por URARIANO MOTA*

O extermínio das falas regionais, na voz dos repórteres e apresentadores

Eu já havia escrito no Dicionário Amoroso do Recife que os apresentadores de televisão fazem um extermínio das falas regionais. Isso acontece até na televisão dos estados nordestinos! Os falares diversos, certos/errados aos quais Manuel Bandeira já se referia no verso “Vinha da boca do povo na língua errada do povo/ Língua certa do povo”, ganha aqui um status de anulação da identidade, em que os apresentadores nativos se envergonham da própria fala. Assim, repórteres locais, “nativos”, se referem ao pequi do Ceará como “pê-qui”, enquanto os agricultores respondem com um piqui.

O que me despertou foi uma reportagem sobre o trânsito na Avenida Beberibe, no bairro de Água Fria, que tão bem conheço. E não sei se foi um despertar ou um escândalo.

Na ocasião, o repórter, o apresentador, as chamadas, somente chamavam Beberibe de Bê-Bê-ribe. O que era aquilo? É histórico, desde a mais tenra infância, que essa avenida sempre tenha sido chamada de Bibiribe, ainda que se escrevesse e se escreva Beberibe.

Liguei para a redação da tevê no Recife. Um jornalista me atendeu. Falei, na minha forma errada de falar, como eu saberia depois. Falei este absurdo, compreenderia depois:

“- Amigo, por que vocês falam bê-bê-ribe, em vez de Bibiribe? – Porque é o certo, senhor. Bé-Bé é Bebê. – Sério? Quem ensina isso é algum mestre da língua portuguesa? – Não, senhor. O certo quem nos ensina é uma fonoaudióloga”.

Ah, bom. Para o certo erram de mestre. Mas daí pude ver que a fonoaudióloga como autoridade da língua portuguesa é uma ignorância que vem da matriz, lá no Rio. Ou seja, assim me falou a pesquisa:

“Em 1974, a Rede Globo iniciou um treinamento dos repórteres de vídeo… Nesse período a fonoaudióloga Glorinha Beuttenmüller começou a trabalhar na Globo. Como conta Alice Maria, uma das idealizadoras do Jornal Nacional: “sentimos a necessidade de alguém que orientasse sua formação para que falassem com naturalidade”.

Foi nesta época, que Glorinha Beuttenmüller começou a uniformizar a fala dos repórteres e locutores espalhados pelo país, amenizando os sotaques regionais. No seu trabalho de “definição de um padrão nacional, a fonoaudióloga se pautou nas decisões de um congresso de filologia realizado em Salvador, em 1956, no qual ficou acertado que a pronúncia-padrão do português falado no Brasil seria a do Rio de Janeiro”.

Mas isso é a morte da língua. É um extermínio das falas regionais, na voz dos repórteres e apresentadores.

Esse ar “civilizado” de apresentadores regionais mereceria um Molière. Enunciam, sempre sob orientação do fonoaudiólogo, “mê-ninô”, “bô-necÔ”, enquanto o povo, na história viva da língua, continua com miní-nu e buneco. O que antes era uma transformação do sotaque, pois na telinha da sala os apresentadores falariam o português “correto”, atingiu algo mais grave: na sua imensa e inesgotável ignorância, eles passaram a mudar os nomes dos lugares naturais da região.

O tão natural Pernambuco, que dizemos Pér-nambuco, se pronuncia agora na tevê como Pêr-nambuco.  E Petrolina, Pé-tró-lina, uma cidade de referência do desenvolvimento local, virou outra coisa: Pê-trô-lina. E mais este “Nóbel” da ortoépia televisiva: de tal maneira mudaram e mudam até os nomes das cidades nordestinas, que, acreditem, amigos, eu vi: sabedores que são da tendência regional de transformar o “o” em “u”, um repórter rebatizou a cidade de Juazeiro na Bahia. Virou JÔ-azeiro! O que tem lá a sua lógica: se o povo fala jUazeiro, só podia mesmo ser Jô-azeiro.

Mas hoje, conversando no café da manhã, me ocorreu que o sotaque é também um retrato de classe social. Ao mesmo tempo que origem da discriminação contra os que vêm “de baixo”, contra as “pessoas humildes”, como gostam de falar os não-humildes do andar “de cima”. Ou que pensam estar em lugar mais alto. 

Daí que me lembrei de Pigmalião, a peça de Bernard Shaw, depois transformada em musical e filme sob o nome de My Fair Lady. A peça conta a história de uma jovem que vende flores pelas ruas de Londres. Mas uma noite a jovem conhece um culto professor de fonética, cuja maior ocupação é descobrir a origem de pessoas apenas pelo sotaque. Quando ouve o “horrível” sotaque da moça, para ele, aposta que é capaz de transformar a simples vendedora de flores numa dama da alta sociedade, “reeducando-a” para o padrão “culto” da língua.

Assim falam os comunicadores da televisão regional, maquiados como falantes da língua padrão de cultura. Uma outra língua. Na verdade, um Frankenstein da pronúncia de classe.

*Urariano Mota é escritor e jornalista. Autor, entre outros livros, de Soledad no Recife (Boitempo). [https://amzn.to/4791Lkl]


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