Por LUCYANE DE MORAES*
A selvageria imposta pela lógica do açoite nas mídias sociais deixa um vazio que mina impulsos de resistência futura
1.
Constituídas enquanto avanço técnico vocacionado para muito além das demandas sociais de informação, as mídias corporativas reproduzem o poder da coisa sobre as pessoas, exercido de forma invisível. Não coincidentemente, ultimados recursos tecnológicos têm desempenhado função significativa nos processos de virtualização da realidade, uma vez que, ao relacionar a produção material de mercadorias a produtos mentais de qualidade subjetiva – entre o controle e o espetáculo – promovem uma espécie de poder espectral entre os usuários.
Esse procedimento tendencial de interatividade remete, ainda, a uma simetria no processo entre emissão e recepção de conteúdos enquanto procedimento análogo à comunicação, caracterizando um quadro de imposição às massas cada vez mais receptivas.
Como exemplo expressivo tem-se a notícia de um indivíduo que foi detido após divulgar um vídeo em suas redes sociais, no qual aparece açoitando um homem negro com um cinto, que aceita em relação de troca o recebimento de R$ 10,00 (dez reais). Sabe-se, também, que o repugnante acontecimento ocorreu no dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, em Itaúna, cidadezinha na região centro-oeste de Minas Gerais.
Nas imagens da violência, o agressor exibe cenas em que oferece dinheiro ao agredido como pagamento a chicotadas nas costas. Como se não fosse o bastante, vitupera, mencionando Deus, entre outros assuntos desconexos como a eleição dos EUA, Lula e Bolsonaro, enquanto o homem açoitado, sem camisa, se submete ao castigo passivamente. “Dez reais e ele vai me deixar dar duas lapadas e o patrocínio é o Bar do Sandoval”. In Gold we trust!
Com requinte abusivo e comportamento sádico, o indivíduo desfere golpes no homem identificado como Djalma Rosa da Costa, de 45 anos. Azorrague. Flagelo. Látego. Sofrimento moral. Dor física. Dado o nível de precariedade da alma e do logos, não há como ficar indiferente, para o bem ou para o mal. Tudo sob a gestão qualificada dos meios informacionais de comunicação via imersão interativa.
Devido à repercussão alcançada pelo vídeo, o açoitador, Ralf Vilaça, alega em entrevista televisiva que tudo não havia passado de uma farsa. Que as imagens tinham sido gravadas com o consentimento de Djalma Rosa da Costa, que ambos eram usuários de drogas e haviam consumido substâncias entorpecentes, “razões” essas que teriam motivado a gravação: “Foi uma brincadeira. O problema foi o vídeo ter viralizado no dia de Zumbi dos Palmares. Agora tá essa burocracia toda. Foi uma resenha. Eu vou provar que não passou de uma resenha. Peço desculpas a todos os brasileiros”.
De forma apressada, a Polícia Militar identificou a vítima como indivíduo em situação de rua e, conforme relatado por seu algoz, dependente de drogas. Por sua vez, a Prefeitura da cidade de Itaúna desmentiu o fato, esclarecendo que Djalma Rosa da Costa não é morador de rua, possui residência fixa, família e recebe suporte intensivo do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS).
Ironicamente, desmedidos anseios por engajamento midiático, misto de aceitação e ao mesmo tempo repulsa ao social, tendem a transformar “likes” e “dislikes” em reais manifestações virtuais, expressões perfeitas de participação em um mundo concebido e reproduzido de forma interativa.
2.
Nesse contexto, a acepção comunicacional inerente a uma implícita condição de perda do significado social é caracterizada como questão funcional, decorrência do próprio caráter interativo que acomete o sujeito que deseja engajamento nas redes sociais, constituído como reflexo estratégico dos media digitais que produz – e reproduz – artificialmente sentimentos de imersão, de presença (uma impressão sugestiva de “aparecer”), ainda mais realçados pela interação com ambientes em tempo real.
Sob o primado da imersão interativa – expressão de empatia com os meios comunicacionais tendo como base a supremacia da imediatidade frente à ética relacional -, no que refere às mídias sociais corporativas importa refletir o quanto a virtual aparência digital atribuída às ultimadas matrizes técnicas tem resumido um quase consolidado domínio no âmbito de um não-social exclusivo das trocas.
De acordo com uma afirmação corrente, a sociedade do tempo presente é cada vez mais tecnológica, embora cada vez mais tecnológica de forma virtual. Em verdade, cada vez mais tecnologicamente adestrada para as trocas, a mentalidade do sujeito mercantil parece apresentar traços de irracionalidade comparados aos primeiros nativos dos agrupamentos sociais de antanho, “atirando pedras na lua”, sob a eminência daquilo que lhes açoita em um contexto de supressão das necessidades vitais. O sujeito privado é cheio de necessidades.
Sob esse enfoque, reporta-se à impotência que os procedimentos tecnológicos hegemônicos impõem aos indivíduos, como um dos efeitos daquilo que Karl Marx denominou “fetiche da mercadoria”. Ocorre que tal referência adquire sentido figurado, uma vez que as relações mercantis parecem vir assumindo, como segunda natureza, formas alternativas àquelas tradicionalmente circunscritas nos processos de troca, incorporando outros sentidos para a mercadoria que vão muito além daqueles que decorrem da posse física dos objetos.
Se os valores humanos sobreviverem à imposição dos procedimentos tecnológicos isentos de função social – e devemos ter esperança, mesmo ante as adversidades –, é preciso, tanto quanto possível, tornar claro ao maior número de pessoas o que a bestialidade do universo virtual – enquanto um não-real consolidado – significa para a sociedade. Resignação ou consolo são inúteis.
A selvageria imposta pela lógica do açoite nas mídias sociais deixa um vazio que mina impulsos de resistência futura. Desnecessário dizer sobre a necessidade de realizar a crítica aos media hegemônicos existentes, dando voz à disposição de pensar outras formas consequentes de resistir ao encanto indiscutível das tecnologias isentas de finalidades sociais. Ou seja, lançar “resoluta e ousadamente algumas garrafas ao mar”, para além de uma luz no fim do túnel.
*Lucyane de Moraes é doutora em filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Autora do livro Theodor Adorno & Walter Benjamin: em torno de uma amizade eletiva (Edições 70/Almedina Brasil) [https://amzn.to/47a2xx7]
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