A poção demente

Carlos Zilio, HCE QUARTO, 1970, caneta hidrográfica sobre papel, 22x30
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LEONARDO BOFF*

Dentro de um inferno, algo do paraíso não se perdeu

Se olharmos os cenários mundiais, temos a impressão de que a dimensão de sombra, o impulso de morte e a porção demente tomou conta das mentes e dos corações de muitas pessoas. Particularmente em nosso país, criou-se até o “gabinete do ódio”onde grupos maus maquinam maldades, calúnias, distorções e todo tipo de perversidades contra seus adversários políticos, feitos inimigos que devem ser liquidados senão fisicamente, pelo menos simbolicamente.

Várias janelas do inferno se abriram e  suas labaredas incineraram celebridades, alimentaram as fake news e destroçaram porções do Estado Democrático de Direito e em seu lugar introduziram um Estado sem lei e post-democrático e, no caso do Brasil, em sua cabeça, um chefe de Estado demente, cruel e sem compaixão.

Historiadores nos asseguram que há momentos na história de uma nação ou de um povo nos quais o dia-bólico (o que divide) inunda a consciência coletiva. Tenta afogar o sim-bólico (o que une) no intento de fazer regredir toda uma história aos tempos sombrios, já superados pela civilização. Então surgem ideologias de exclusão, mecanismos de ódio, conflitos e  genocídios de inteiras etnias. Conhecemos a Shoah, fruto do inferno criado pelo nazifascimo de extermínio em massa de judeus e de outros.

Na América Latina por ocasião da invasão/ocupação dos europeus, ocorreu talvez o maior genocídio da história. No México, em  1519 com a chegada de Hernán Cortez,  viviam 22 milhões de aztecas; depois de 70 anos restaram somente 1,2 milhões. Foram católicos anticristãos que perpetraram  extermínios em massa. Os gritos das vítimas clamam ao céu contra a “Destruição das “Índias”(Las Casas)  e têm o direito de reclamar até o juízo final. Nunca se viu algum ato de reconhecimento deste genocídio por parte das potências colonialistas nem se dispuseram a fazer a mínima compensação aos sobreviventes destes massacres.São demasiados desumanos e arrogantes.

Mas dentro deste inferno dantesco, há algo do paraíso que nunca se perdeu e que constitui a permanente saudade do ser humano: saudade da situação paradisíaca na qual tudo se harmoniza, o ser humano trata humanamente outro ser humano, sente-se confraternizado com a natureza e filho e filha das estrelas, como dizem tantos indígenas. Em tempos maus como o nosso, vale ressuscitar esse sonho que dorme no profundo de nosso ser. Ele nos permite projetar outro tipo de mundo que, para além das diferenças, todos se reconhecem como irmãos e irmãs. E se entreajudam.

Narro um fato real que mostra a emergência desse pedaço de paraíso, ainda existente entre nós, lá onde a inimizade  e a violência são diárias.

Essa não é uma história inventada mas real, recolhida por um jornalista espanhol do El Pais no dia sete de junho de 2001. Ocorreu no ontem, mas seu espírito vale para o hoje.

Mazen Julani era um farmacêutico palestino de 32 anos, pai de três filhos, que vivia na parte árabe de Jerusalém. No dia 5 de junho de 2001 quando estava tomando café com amigos num bar, foi vítima  de um disparo fatal vindo de um colono judeu. Era a vingança contra o grupo palestinense Hamás que, quarenta e cinco minutos antes, havia matado inúmeras pessoas numa discoteca de Tel Aviv mediante um atentado feito por um homem bomba. O projétil entrou pelo pescoço de Mazen e lhe estourou o cérebro. Levado imediatamente para o hospital israelense Hadassa chegou já morto.

Mas eis que a  porção adormecida do paraíso em nós foi acordada O clã dos Julani decidiu aí mesmo nos corredores do hospital, entregar todos os órgãos do filho morto: o coração, o fígado, os rins e o pâncreas para transplantes a doentes judeus. O chefe do clã esclareceu em nome de todos que este gesto não possuía nenhuma conotação política. Era um gesto estritamente humanitário.

Segundo a religião muçulmana, dizia, todos formamos uma única família humana e somos todos iguais, israelenses e palestinos. Não importa em quem os órgãos vão ser transplantados. Essencial e que ajudem a salvar vidas. Por isso, arrematava ele: os órgãos serão destinados aos nossos vizinhos israelenses.

Com efeito, ocorreu um transplante. No israelense Yigal Cohen bate agora um coração palestino, o de Mazen Julani.

A mulher de Mazen teve dificuldades em explicar à filha de quatro anos  a morte do pai. Ela apenas lhe dizia que o pai fora  viajar para longe e que na volta lhe traria um belo presente.

Aos que estavam próximo, sussurrou com os olhos marejados de lágrimas: daqui a algum tempo eu e meus filhos iremos visitar a Ygal Cohen na parte israelense de Jerusalém.

Ele vive com o coração de meu marido e do pai de meus filhos. Será grande consolo para nós, encostar o ouvido ao peito de Ygal e escutar o coração daquele que  tanto nos amou e que, de certa forma, ainda está pulsando por nós.

Este gesto generoso demonstra que o paraíso não se perdeu totalmente. No meio de um ambiente altamente tenso e carregado de ódios, surgiu um Jardim do Éden, de vida e de reconciliação. A convicção de que somos todos membros da mesma família humana, alimenta atitudes de perdão e de incondicional solidariedade. No fundo, aqui irrompe o amor que confere sentido à vida e que move, segundo Dante Alignieri da Divina Comédia, o céu e todas as estrelas. E eu diria, também o coração da esposa de Mazen Julani  e o nosso.

São tais atitudes que nos fazem crer que o ódio reinante do Brasil e no mundo, as fake news e as difamações não terão futuro. É joio que não será recolhido, como o trigo, no celeiro dos homens nem de Deus. Esse tsunami de ódio e seu promotor maior que desgoverna nosso país, irá descobrir, um dia em que só Deu sabe, as lágrimas, os lamentos e o luto que provocaram em milhares de seus compatriotas que por sua falta de amor e de cuidado para com os afetados pelo Covid-19 perderam a quem tanto amavam. Oxalá neles não esteja totalmente perdida a parcela do Jardim do Éden.

*Leonardo Boff é ecoteólogo. Autor, entre outros livros de Meditação da luz: o caminho da simplicidade (Vozes).

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Carla Teixeira Ricardo Abramovay Celso Favaretto Henry Burnett Heraldo Campos Tales Ab'Sáber Paulo Martins Leda Maria Paulani João Adolfo Hansen Berenice Bento Airton Paschoa Ronaldo Tadeu de Souza Tadeu Valadares Marilena Chauí Denilson Cordeiro Bruno Machado André Singer João Feres Júnior Igor Felippe Santos Marcelo Guimarães Lima Manuel Domingos Neto Bento Prado Jr. Luiz Renato Martins Eliziário Andrade Luiz Eduardo Soares Dênis de Moraes Lorenzo Vitral Marcos Aurélio da Silva Lincoln Secco Leonardo Avritzer Anselm Jappe André Márcio Neves Soares Gerson Almeida Jean Pierre Chauvin Annateresa Fabris Vinício Carrilho Martinez Manchetômetro Eduardo Borges Ladislau Dowbor Valerio Arcary Jean Marc Von Der Weid João Carlos Loebens Alexandre de Lima Castro Tranjan Atilio A. Boron Milton Pinheiro Luiz Bernardo Pericás Eugênio Trivinho Fernando Nogueira da Costa Otaviano Helene Liszt Vieira José Raimundo Trindade Plínio de Arruda Sampaio Jr. Sergio Amadeu da Silveira José Geraldo Couto Érico Andrade Francisco Pereira de Farias Samuel Kilsztajn Luiz Werneck Vianna Michael Roberts Julian Rodrigues Lucas Fiaschetti Estevez Luiz Roberto Alves Daniel Costa Ari Marcelo Solon Luís Fernando Vitagliano Claudio Katz Eleonora Albano Gilberto Lopes Salem Nasser Mário Maestri José Luís Fiori Celso Frederico Slavoj Žižek Leonardo Boff Paulo Capel Narvai Benicio Viero Schmidt Fábio Konder Comparato João Lanari Bo Vladimir Safatle Tarso Genro João Carlos Salles Alexandre Aragão de Albuquerque Antonino Infranca Alexandre de Freitas Barbosa Ricardo Fabbrini Antônio Sales Rios Neto Caio Bugiato Everaldo de Oliveira Andrade Boaventura de Sousa Santos Luiz Marques Marjorie C. Marona Flávio Aguiar João Sette Whitaker Ferreira Francisco Fernandes Ladeira Andrés del Río Flávio R. Kothe Henri Acselrad Paulo Sérgio Pinheiro Mariarosaria Fabris Marcus Ianoni Paulo Fernandes Silveira Jorge Branco Rodrigo de Faria Yuri Martins-Fontes Maria Rita Kehl Priscila Figueiredo Antonio Martins Renato Dagnino Rubens Pinto Lyra Osvaldo Coggiola Juarez Guimarães Vanderlei Tenório Dennis Oliveira Eleutério F. S. Prado Paulo Nogueira Batista Jr Thomas Piketty Francisco de Oliveira Barros Júnior Jorge Luiz Souto Maior Afrânio Catani Marilia Pacheco Fiorillo Sandra Bitencourt Rafael R. Ioris Alysson Leandro Mascaro Gilberto Maringoni José Dirceu José Micaelson Lacerda Morais Luiz Carlos Bresser-Pereira José Machado Moita Neto Kátia Gerab Baggio Bernardo Ricupero Carlos Tautz Andrew Korybko Valerio Arcary Chico Alencar Ronald León Núñez João Paulo Ayub Fonseca Ronald Rocha Luis Felipe Miguel Chico Whitaker José Costa Júnior Armando Boito Fernão Pessoa Ramos Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Gabriel Cohn Elias Jabbour Marcos Silva Eugênio Bucci Bruno Fabricio Alcebino da Silva Walnice Nogueira Galvão Remy José Fontana Daniel Afonso da Silva Luciano Nascimento Marcelo Módolo Matheus Silveira de Souza Michael Löwy Michel Goulart da Silva Ricardo Antunes Daniel Brazil Leonardo Sacramento Ricardo Musse

NOVAS PUBLICAÇÕES