Por MARCIA GOBBI*
Envelhecer é também um ato político, marcado pela desigualdade que dita quantos anos se vive e como se lembra de cada um deles
1.
Alardeados, os dados sobre o envelhecimento no Brasil apresentam um fato facilmente compreensível: a população brasileira está envelhecendo e rapidamente. Atualmente temos um aumento expressivo de 2 milhões de idosos, em relação ao Censo Demográfico de 2023. Projeções do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que temos 35 milhões de pessoas com mais de 60 anos, numa importante demonstração de mudança na população etária em nosso país.
A expectativa de vida tem aumentado, o que é devido, entre outros motivos, à diminuição da taxa de mortalidade e às melhores condições de vida. Infelizmente, não para todas as pessoas. A depender da região do país e daquelas dentro das cidades onde se nasce, essa mesma expectativa poderá diminuir brutalmente. O recém-publicado mapa da desigualdade da Rede Nossa São Paulo (2025)[i] apresenta dados fundamentais para compreendermos e enfrentarmos, entre outras questões, o envelhecimento da população.
Na capital, a Cidade Tiradentes, situada no extremo da Zona Leste paulistana, é o local onde se vive menos, a idade média ao morrer é de 62 anos, enquanto no Alto de Pinheiros, lugar onde se vive mais, a idade média é de 82 anos. Em 41 distritos, localizados majoritariamente nas periferias, o indicador é inferior a 70 anos. Esses dados nos fazem ver a discrepância de 20 anos quanto a expectativa de vida entre pessoas que nascem nos diferentes bairros da cidade de São Paulo.
Ao cruzarmos os dados com marcadores sociais da diferença, fica compreensível que ser preto, pobre, morar nas periferias compõem um conjunto de fatores importantes para refletirmos sobre o envelhecimento da população. São distintos os acessos aos atendimentos médicos, diferem enormemente as possibilidades de locomoção e mobilidade pelos bairros e pela cidade, sem esquecer do acolhimento, renda, tempo e condições financeiras das famílias para o cuidado, imprescindível para a manutenção da vida.
As demências que acometem pessoas idosas servem-nos também para exemplificar essas desigualdades sociais que se encontram nas escolhas ou imposições de cuidados. Quando a memória não está e a falta de mobilidade física e doenças se instalam – mulheres majoritariamente –, cumprirão a função de dedicar-se aos cuidados das pessoas.
2.
A Lei 15069/24 reconhece o cuidado como direito fundamental e a responsabilidade compartilhada entre Estado, famílias, sociedade e setor privado. Ainda assim, temos muitas e muitas lacunas a preencher, o que expressa visivelmente as desigualdades estruturais existente no país. Sofrimento e alegrias fundem-se.
O cuidado, então, não é apenas gesto técnico, é também guarda. É amparar o corpo e, ao mesmo tempo, sustentar uma vida e suas histórias que se fragilizam. Cada gesto parece ser responsável por refazer o nascimento a cada dia pelas memórias contadas. O documentário Alzheimer na periferia[ii] aborda muito bem as agruras e ajustes obrigatórios feitos à vida de quem cuida em família, não querendo ou não podendo terceirizar os cuidados – os serviços privados tornaram-se um negócio bastante caro. Essa combinação define trajetórias díspares para o envelhecer e nos faz refletir sobre a chamada “melhor idade”. Para quem?
Didier Eribon (2023), em Vida, velhice e morte de uma mulher do povo,trata da inevitabilidade do envelhecimento – esse destino biológico – e das agruras que o acompanham cotidianamente, sobretudo quando se trata do envelhecimento de uma – ou todas – as mulheres do povo, eixo a partir do qual o livro foi feito. Aquelas cujos limites impostos à vontade cerceiam parte da vida, impulsionam enraizamentos em certas casas, bairros e cidades e cuidados, que, envidados a todas as pessoas, tornam exíguas e dificultosas as perspectivas de sair de onde se está.
Isso, se houve, em algum momento, sobretudo para as mulheres, a possibilidade de arrebatar-se por outras formas de existir que não aquela da frequente aquiescência, traduzida como resiliência, destino ou missão. Essa mulher descrita por Eribon é reconhecível em tantas outras, cujas histórias estão inscritas em seus corpos nas condições que as prendem, de diferentes formas, por vezes de modo silencioso, a situações de maior ou menor precariedade.
O envelhecimento e a velhice nos habitam desde o presente, mas pouco nos atemos a isso como realidade concreta sobre a qual devemos nos debruçar. A isso somam-se as preocupações ligadas aos afetos, sensações, emoções que, aos poucos, passam a orientar as práticas cotidianas de vida no processo de envelhecer, não apenas de quem cuida, mas, de quem é cuidado e cuja vida se esvai.
Considerando a importância dos dados e pesquisas recentes sobre condições de vida de pessoas idosas e a projeção do envelhecimento da população brasileira – que parecia ser eternamente jovem –, gostaria de incluir, de modo breve, uma reflexão sobre o tema tomando como ponto de partida a relação entre um par de alianças de casamento e uma mulher idosa.
Elas deixaram de ser as peças que exerciam a função simbólica da instituição social do matrimônio, para se tornarem coisas vivas, com força vital, como na acepção de Tim Ingold (2012), que produzem memórias, contêm as emoções de um grupo ou de quem as usa, ligando passado e presente e reorganizando afetos. Alianças como mote para pensarmos sobre o experimento da ausência.
3.
De caráter pessoal, aqui partilhado e assumido pela escrita, esse texto-registro não se pretende particular e referente a uma única pessoa. Aparece como devaneios que insistem em produzir sentidos. Talvez possa, inclusive, ser pensado ou sentido em conjunto. A escrita resulta da remontagem de uma imagem vista e sentida por mim em dias recorrentes e tornou-se um exercício de desconfiança dos elementos da cena que implicam estar e não estar nela.
A tantas pessoas ela pode parecer trivial, trata-se de um fragmento do cotidiano vivido, em tantos momentos não projetado, por uma mulher de muita idade. Nesta cena cravada em mim como uma lança, a mulher com tantas e tantas décadas de vida, toca os dedos de uma mão, mais precisamente o anular da mão esquerda. Ela procura, em vão, as alianças usadas juntas no mesmo dedo há vinte anos – após 50 de vida em comum.
O gesto, mais do que palavras ditas, evocava resignação e a reunião de lembranças. No que aparentava ser infinito, ela menciona, preocupada e saudosa, a perda desses objetos cujo valor afetivo supera enormemente o financeiro, já que na condição operária nos idos anos 1950, ao casal, não era possível adquirir algo de alto custo.
Há muitas e variadas histórias guardadas em ambas as alianças. O baixo valor econômico, inclusive, somava-se à percepção de seu valor simbólico, já que revelava as lutas travadas e as conquistas do casal que as portaram durante décadas. Elas se juntaram após o falecimento do marido cujo convívio que durou 54 anos estava ali marcado neste adorno, símbolo do casamento de ambos, das juras de amor, das agruras, de acordos e desacordos e do que se desdobrou disso tudo, inclusive o nascimento de filhas – sou uma delas e daí o caráter pessoal –, netas, netos e bisnetos.
O dourado se apagava devido ao tempo e os nomes gravados na parte interna das alianças já não tinham a mesma nitidez, mas ela os encontrava lá e às suas histórias. As joias por serem mais duradouras ridicularizam nossa mortalidade. Somente um arranhão ocasional imitaria nossa finitude, Stallybrass (2008). A finitude também guardada nesse objeto.
As alianças consistiam-se em objeto e fluxo de vida, imbuídas de significado histórico, afetivo, social. Neste sentido, encontrava-me diante de um objeto fixo diante dos olhos e dos gestos repetidos desta senhora. Nas palavras de Ingold (2012), trata-se de uma “coisa” com movimento e que faz movimentar, entendida como um acontecer, ou o entrelaçar de vários acontecimentos.
Diante do constante apagamento e silenciamento da memória devido, entre outras coisas, a ligeireza que nos é imposta para continuar a vida, as alianças condensavam décadas. Não é possível esquecer-se de tantas histórias que compõe a vida da mulher idosa junto às alianças e que a configuram como uma linha a ser puxada de forma a entender para onde sua presença e posteriormente sua ausência nos levaria. Entre elas, o reconhecimento de que somos feitos de perdas.
A relação com esse objeto, parece-me que, ao mesmo tempo, contém e extrapola a nostalgia: trata-se de um esforço por manter vivo o vínculo, ao mesmo tempo, em que se encontra inscrita nesses dois objetos a parte de uma história.
4.
Seguir seus rastros importa. São como pistas que permitem entender esse envelhecimento: suas perdas e ganhos ao guardar no tempo e no objeto sínteses da vida. Não pretendo usar a descrição desse acontecido para generalizar compreensões sobre a velhice, mas para poder pensar sobre ela, a partir delas, das alianças tão presentes e tão perdidas, dando com isso, outro contorno aos dados estatísticos sobre o envelhecimento.
Trata-se de pensar nele a partir da relação com os objetos de memória, daqueles que evidenciam as sobras do tempo presente, neste caso, nas alianças. Parece ingênuo, e talvez seja, uma questão nada original, mas trata-se de pensar sobre a importância da experiência de vida que integra o passado ao presente e faz desse tempo presente o elemento primordial para compreender o envelhecimento. Observar a cena já descrita, exigia implicar-se a ela e assim foi.
Como quem cria e reaviva a história com os dedos, as alianças eram manuseadas diariamente e, certo dia, sumiram. O desaparecimento do objeto e a permanência da senhora em seus devaneios, levaram a tantas reflexões, dor, saudade, sofrimento, e concomitante faziam parecer recuperar ainda mais as memórias de um tempo tão distante.
As alianças, onde quer que estejam, são as mesmas, mas a senhora, com suas memórias, provocadas por olhá-las e manuseá-las atentamente, já não era a mesma. As lembranças, evocadas pelo objeto, tornaram-se comprometidas pela ausência do que antes as despertava. Essas alianças consistem em um documento de memória, um apoio para seguir vivendo na ausência do outro, ou na presença dos lapsos de si.
Consistem em rastros de vida. Discutir sobre elas – perdidas ou não – é renovar, não somente a memória, mas afirmar sua importância quando o assunto é o envelhecimento.
Efetivamente, a procura pelo objeto se constituiu como uma empreitada inglória. De outro lado, é refletir sobre as implicações disso à dinâmica do envelhecer, que parece se fazer tão lentamente, mas está implicado às relações ligeiras que podem dissolver memórias e vínculos, passando-nos a impressão de que são menos importantes. Mas, quando refletimos sobre o envelhecimento alguns gestos e objetos materializam as transformações e permanências de uma vida, às vezes, de quase um século, tal como um par de alianças. O que são as alianças?
As alianças enquanto estiveram presentes, ao guardarem força vital, elas faziam engrenar histórias. O manuseio não era apenas um tempo ocioso que passava, elas, em certa medida, traduziam a própria vida. E aqui, nesse breve ensaio, elas se oferecem singelamente como recurso promotor de análise a partir de tantas camadas de significado que englobam os gestos da senhora – minha mãe, mas que poderia ser de tantas outras mulheres com muita idade.
Não se trata apenas das alianças perdidas, mas do que evocam e possibilitam como movimento de vida. Num momento em que a escuta e a possibilidade de narrar a vida têm se tornado cada vez mais exíguas, esse objeto cumpria a tarefa de produzir memórias, forçar a dizê-las e lembrar. Isso é reforçado pela mão trêmula que insiste em acariciar o dedo onde elas se encontravam há alguns dias.
A pergunta feita pela senhora: mas, onde elas foram parar? Exige tantas reflexões. Repito que somos feitos de perdas e conquistas e perdas e presenças e ausências.
Objetos não contêm em si as memórias, mas podem atuar como traços que evocam narrativas quando e porque ativados por pessoas. Carregam alegrias e, ao mesmo tempo, guardam traços da perda entristecedora, destrutiva. Havia um conhecimento encarnado transmitido pelo uso das alianças que, agora perdidas, deixa lacunas. Como preenchê-las? Não sei de receitas, aplicações diretas sobre o que fazer diante do envelhecimento e das emblemáticas alianças perdidas, nem mesmo se devemos preenchê-las de forma a suprir a ausência sem possibilitar sua experiência, algo como passe a régua e seguimos.
Inegavelmente, é fundamental a necessidade de leis de proteção a quem cuida e quem recebe cuidado, que sejam públicas e destinadas a todas as pessoas. Mas que contemplem a importância das sensibilidades cotidianas quando estamos com as pessoas, e nesse caso, com tanta idade. Nesse tempo de aceleração absoluta, tentar capturar esse outro tempo e jeito de ser nas sensibilidades existentes no cotidiano, lembrar-se e manifestar o visto, o vivido e o sentido tornam-se gestos éticos, políticos e de profundo cuidado. E tanto importam.
*Marcia Gobbi é professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
Referências
ERIBON, DIDIER. Vida, velhice e morte de uma mulher do povo. Belo Horizonte: Aynè, 2024.
STALLYBRASS, Peter. O casaco de Marx: roupas, memória, dor. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
[i] https://nossasaopaulo.org.br/2025/11/27/mapa-da-desigualdade-de-sao-paulo-em-40-distritos-da-capital-vive-se-menos-de-70-anos/ consultado em 30/11/2025.
[ii] Documentário Alzheimer na Periferia. (2020). Direção Albert Klinke. Argumento Original Jorge Felix. Roteiro Thaís Bologna. https://www.youtube.com/watch?v=sNg54_B8UBE






















