Ricardo Nunes contra os direitos sexuais e reprodutivos

Imagem: Anh Nguyen
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Por HELOÍSA BUARQUE DE ALMEIDA*

Prefeitura de S. Paulo interrompe o acesso ao aborto legal no Hospital de Vila Nova Cachoeirinha

O Hospital de Vila Nova Cachoeirinha, por decisão da Prefeitura Municipal de São Paulo, deixou de atender o serviço de aborto legal. Recentemente, esse tema voltou à baila com a decisão da justiça que demanda a reabertura do serviço, mas que continua sendo desrespeitada. Podemos notar a partir desse embate entre Prefeitura e Judiciário algo muito grave e revelador dos retrocessos que ainda estamos vivendo em termos de gênero e direitos.

Desde 2016, há uma série de retrocessos em direitos humanos no País promovidos por propostas políticas de direita em detrimento do respeito à legislação vigente e aos direitos sexuais e reprodutivos. O aborto legal refere-se à interrupção da gravidez que acontece de forma segura nos casos previstos em lei, ou seja, nos casos de gravidez resultante de estupro, risco de morte da pessoa que está gestando, ou mais recentemente nos casos de fetos anencefálicos.

Desde a década de 1940, está previsto em lei no Brasil o direito ao acesso a abortamento nos casos de gravidez resultante de estupro, mas o acesso a esses serviços demorou décadas a ser efetivamente implementado e é ainda muito difícil na maior parte do País – por vezes, uma pessoa que foi violada tem que viajar mais de mil quilômetros para conseguir atendimento. Alguns serviços ainda exigem que a vítima faça um Boletim de Ocorrência supostamente para comprovar o estupro, o que não é necessário para se ter acesso ao atendimento médico e à interrupção da gravidez.

Mais do que isso, no caso de menores de 14 anos o estupro é presumido – a lei considera que a vítima não tem como consentir e, portanto, qualquer gravidez é considerada legalmente como resultante de violação. O retrocesso representado pelo governo federal anterior tem reduzido e mesmo eliminado redes de atendimentos e serviços, e tem colocado pessoas que sofrem violência sexual em risco, de modo crescente. A atual prefeitura da cidade de São Paulo parece ter escolhido as piores políticas daquele grupo, encerrando serviços e equipamentos que trabalham a favor dos direitos das mulheres, meninas e minorias sexuais, assim como pessoas trans.

O acesso ao aborto legal é muito difícil ou inexistente na maior parte do País. São Paulo é uma das poucas cidades que oferecem o serviço, mas ainda assim em raros hospitais – para saber mais, consulte a página do Mapa do aborto legal ou o Panorama do aborto no Brasil. O Hospital e Maternidade de Vila Nova Cachoeirinha é muito importante e considerado uma maternidade de referência na zona norte da cidade – e inclusive atende pessoas de muitos lugares do País, não apenas de São Paulo, como tantos outros centros médicos de referência nesta cidade, públicos ou privados. Era também o único local em São Paulo que fazia interrupção de gravidez em estágios mais avançados, ou seja, acima de 12 semanas.

Interrupções em gestações um pouco mais avançadas geram polêmicas, mas trata-se de um serviço fundamental, pois apenas deste modo pode-se atender inclusive os casos de estupro contra crianças e adolescentes menores de 14 anos que, muitas vezes, demoram a descobrir a gravidez. É preciso lembrar que esse é o tipo de violência sexual mais comum – ela atinge muito mais as crianças e adolescentes do que pessoas adultas, e podem ser estupros perpetrados dentro de casa e de modo repetido, normalmente por pessoas conhecidas ou parentes da vítima.

No boletim Violência contra meninas e mulheres no 1º semestre de 2023, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública demonstra o aumento das denúncias de estupro, sendo que 74,6% destas referiam-se a vítimas menores de 14 anos. Ademais, levar a gravidez a termo em meninas de pouca idade é muito perigoso e arriscado para suas vidas e saúde, e a interrupção da gestação pode ser feita de forma segura.

Direitos sexuais e reprodutivos são desdobramentos dos direitos humanos. Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, algumas noções de direitos se materializaram em acordos e convenções internacionais. No caso dos Direitos Sexuais e Reprodutivos, dois eventos marcam e consolidam a ideia: a Conferência do Cairo sobre População e Desenvolvimento, em 1994, e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em Beijing, em 1995. Essas convenções estendem a ideia de respeito, livre-arbítrio e bem-estar para as esferas da intimidade e da reprodução.

Direitos reprodutivos referem-se ao acesso à informação e a métodos contraceptivos, permitindo a autonomia da pessoa que gesta sobre a decisão de ter ou não filhos, com assistência à saúde em todo o período reprodutivo. Os direitos sexuais referem-se a uma vida sexual sem constrangimento nem agressões, e afirmam que cada pessoa tem direito a escolher com quem terá relações sexuais, inclusive o direito de mulheres e meninas não se submeterem a relações forçadas, assim como o direito de parcerias homossexuais, quando o sexo é consentido por ambas as partes.

Quando a Prefeitura interrompe um serviço tão importante, ela inviabiliza o acesso a direitos. As mulheres que buscam os serviços estão sendo atacadas e humilhadas, segundo a coluna de Mônica Bergamo no jornal Folha de S. Paulo. Mais ainda, outras violações estão sendo promovidas: a Prefeitura copiou os prontuários de pacientes deste hospital do ano de 2023 para supostamente investigar o atendimento naquele local. Mas isso foi feito sem a devida autorização legal e nem consentimento das pacientes, e significa ainda uma outra violência, agora direcionada àquelas pacientes que conseguiram realizar o procedimento no ano passado.

Resultam dessa decisão de suspender os atendimentos no Vila Nova Cachoeirinha situações como as de crianças e pessoas jovens violadas de diversas partes do País que buscam esse local e não têm mais acesso ao procedimento seguro. Muitas vezes, terão que perambular por outros hospitais até encontrar um atendimento, quando pode ser tarde demais. Com esta atitude, a Prefeitura fere a autonomia da pessoa que gesta sobre a decisão de não ter filhos, ou seja, fere um direito reprodutivo.[1]

*Heloísa Buarque de Almeida é antropóloga e professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Autora, entre outros livros, de Diferenças, igualdade (Berlendis). [https://amzn.to/3Su8zDz]

Publicado originalmente no Jornal da USP.

Nota


[1] Agradeço à consultoria de Shislene de Oliveira-Macedo para este texto.


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