Por CAIO NAVARRO DE TOLEDO*
A pretensa neutralidade da mídia liberal desfaz-se quando sua linguagem, ao transformar massacre em “efeito colateral”, revela uma cumplicidade silenciosa com a barbárie que se recusa a nomear
I.
Diante do conflito Israel x Palestina, é uma realidade inequívoca que a grande mídia corporativa ocidental (agências de notícias, TV´s, Rádios, portais de notícias online etc.) se posiciona, sem hesitação, na defesa incondicional do Estado de Israel. De forma eloquente, a atual guerra contra Gaza se configura como um caso exemplar desse posicionamento.
As estarrecedoras imagens de mortes de civis (crianças, mulheres, jovens) e da destruição de hospitais, escolas, postos de assistência humanitária, abrigos de refugiados e outros espaços em Gaza têm sido interpretadas como “efeitos colaterais” da guerra justa perpetrada pelo Estado de Israel na região a fim de erradicar o “grupo terrorista” do Hamas.
Sob a perspectiva da quase totalidade dos noticiários da mídia ocidental, a intensa utilização do poderoso arsenal bélico das Forças Armadas de Israel – sob o eufemismo de Forças de Defesa de Israel (FDI) – está inteiramente justificada, pois estaria em jogo a sobrevivência do Estado e da sociedade democrática de Israel… As dantescas cenas de destruição humana e material podem ser lamentadas, mas os porta-vozes da grande mídia corporativa, além de não se solidarizem com o drama palestino, negam-se a pronunciar a palavra genocídio para identificar a natureza da ação das FDI em Gaza.
A grande mídia corporativa no Brasil – representada pela Rede Globo, GloboNews, CNN, TV´s (Bandeirantes, Record, SBT), os três maiores jornais impressos (Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo) – não deixa de se orientar pelo estilo de jornalismo adotado e imposto pelos grandes órgãos de comunicação do ocidente.
Reconheça-se que, entre os jornais da grande imprensa brasileira, a FSP, talvez, seja o único veículo que, regularmente, publica textos (artigos, ensaios e abaixo-assinados) de acadêmicos e militantes solidários ao povo palestino e críticos da barbárie em Gaza; no entanto, entidades e intelectuais sionistas, igualmente, têm espaço garantido no jornal a fim de que possam justificar as ações militares contra a população civil palestina e atacar o alegado “antissemitismo” dos críticos da política bélica de Israel.
Se, de um ponto de vista democrático e humanitário, o comportamento da FSP deve ser ressaltado, é certo, contudo, que o jornal, por meio de seus editoriais, jamais admitiu que, em Gaza, o genocídio é uma política do Estado de Israel. Ou seja, o jornal liberal-democrático – embora admita e condene o “morticínio” (realidade inevitável em conflitos bélicos duradouros) – recusa-se, editorialmente, a empregar a noção de genocídio, tal como entidades de direitos humanos e instituições democráticas de todo o mundo têm reconhecido e denunciado. Entre elas, destacam-se a qualificada Associação Internacional de Estudiosos do Genocídio, a Comissão de Inquérito Internacional Independente da ONU, a Anistia Internacional, além de organizações de direitos humanos israelenses, como são a B’Tselem e a Physicians for Human Rights-Israel (que, de forma digna e corajosa, falam em “nosso genocídio” em Gaza).
Neste sentido, reitere-se, a FSP, editorialmente, se comporta de forma idêntica ao Estadão, O Globo, Globo News, CNN-Brasil e demais órgãos da mídia liberal no país.
No caso específico da FSP, quais as razões e motivações que explicariam a negação do emprego da noção jurídica de genocídio em seus editoriais que clamam pela paz e fazem reparos críticos ao atual governo de Israel?
Certamente, a utilização da grave noção – que, de imediato, é associada ao Holocausto nazista – implicaria o veemente repúdio da Embaixada de Israel no Brasil e de influentes entidades (entre elas, Conib, FSB, StandWithUs Brasil) contra o jornal que busca manter um respeitoso e privilegiado relacionamento com as entidades e os intelectuais sionistas. No entanto, para os donos e editorialistas da FSP, mais relevantes e sensíveis seriam as reações de empresas (industriais, comerciais e financeiras) que poderiam cortar gastos publicitários e reduzir o apoio financeiro, regularmente, concedidos ao jornal.
Sobre a questão de represálias, cabe, de forma breve, lembrar que, em vários países ocidentais, todos e todas (entidades e indivíduos) – que identificam a ação do Estado de Israel em Gaza como uma prática de genocídio e manifestam solidariedade ao povo palestino – têm sido objeto de retaliações diversas: demissões de empresas e entidades públicas, da docência e da condição estudantil em universidades, além de projetos de pesquisa serem vetados, financiamentos suprimidos e processos judiciais abertos sob a alegação de antissemitismo etc. [i]
II.
Nesta breve Nota sobre a cobertura facciosa e enviesada da mídia sobre a destruição de Gaza, destaco o caso exemplar de uma matéria publicada, dias atrás, pelo site, de orientação liberal-democrática, Poder360.
Por meio dessa matéria, o site, que abriga colunistas de comprovadas posições democráticas, parece regozijar-se ao informar, de forma sucinta, que “o porta-voz das FDI (Forças de Defesa de Israel), major Rafael Rozenszajn, 45 anos, visitou a sede do jornal digital Poder360, em Brasília, nesta 4ª feira (12.nov.2025). Estava acompanhado de Kathia Kozlowski, representante da Conib (Confederação Israelita do Brasil) em Brasília”. Fotos dos dois sorridentes sionistas ilustram a matéria.
Ao leitor, no entanto, nada é informado sobre o poderio militar das FDI, hoje posicionadas em 15º lugar no ranking das forças armadas de todo o mundo. Igualmente, nenhuma relevância é dada ao fato das FDI – apoiadas militar e financeiramente, de forma permanente e multibilionária, por todos os governos dos EUA – se destacarem pela sua sofisticada tecnologia de ponta, equipamentos altamente letais e sólido sistema de defesa.
Nenhum comentário da editoria do site, igualmente, é feito a fim de lembrar que as FDI têm um papel central e decisivo na destruição da infra-estrutura civil de Gaza e nas mortes, segundo fontes insuspeitas, de mais 67 mil palestinos, além de mais de 170 mil feridos e desaparecidos.
Por último, seria descabido julgar que caberia à Editoria do site informar seus leitores sobre o comportamento de soldados de Israel nas ações contra Gaza? Além de vídeos na internet, que documentam as comemorações dos soldados após as chacinas realizadas (danças, cantos e falas festivas), igualmente, graves denúncias de violações dos direitos humanos e “crimes de guerra” têm sido feitas por agências da ONU, entidades de direitos humanos e, inclusive, por ex-soldados israelenses.
Reconheça-se que, em princípio, Poder360 não pode recusar as solicitações de visitas à sua sede. Provavelmente, o porta-voz das FDI – desempenhando as funções de relações públicas das forças armadas de Israel – esteja visitando outras redações jornais e de sites do país. No entanto, ao se regozijar com a presença do porta-voz das FDI e não se posicionar, editorialmente, sobre esta visita de elevado simbolismo, o jornal digital acaba revelando seu apoio ou conivência à ação do aparelho militar de Israel, responsável pela barbárie em Gaza.
Por meio da publicação desta matéria, Poder360 revela que os ideais de isenção, neutralidade e objetividade afirmados em sua proposta editorial, típica da mídia liberal, se desmancham no ar… Por meio desta publicação, Poder360 tomou partido ao lado de cúmplices e responsáveis pelo genocídio na Palestina.
Por último, a questão que se coloca ao conjunto da mídia liberal-democrática é a de saber se, diante de tragédias humanitárias semelhantes à de Gaza, é possível manter neutralidade e isenção sobre a realidade social conflitiva e contraditória. Ao deixar de questionar o regime colonial de Israel, o conjunto da mídia liberal-democrática, no Brasil e no mundo, na prática, torna-se cúmplice e aliado das potências que apoiam o genocídio e negam o direito à existência de um Estado Palestino livre e soberano.
[i] No Brasil, a acusação de antissemitismo tem sido desferida por entidades sionistas a jornalistas e docentes universitários. Entre os jornalistas, Breno Altman, autor e militante antissionista de origem judaica, é o mais destacado. Em A Terra é Redonda, vários textos sobre os processos judiciais que ele tem sofrido são divulgados. No final de 2024, a FUNDASP, Fundação São Paulo, mantenedora da PUC-SP, cedendo às pressões de sionistas da Universidade, solicitou esclarecimentos a dois qualificados docentes e pesquisadores, Bruno Huberman e Reginaldo Nasser, acusados de difundirem “ideias antissemitas” em seus cursos na instituição.
*Caio Navarro de Toledo é professor aposentado da Unicamp e membro do comitê editorial do site marxismo21. É autor, entre outros livros, de O Governo Goulart e o Golpe de 64 (Brasiliense
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