A alegria é uma responsabilidade política

Paul Klee, Tráfego do salão tunisino no Boulevard Tunis, 1918.
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Por LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA*

Prefácio do livro recém-lançado de Camilo Vannuchi sobre Diogo de Sant’Ana

O Brasil precisa de mais gente como o Diogo de Sant’Ana.

Precisa daquele sorriso que raramente se fechava. Daquela disposição para o diálogo, que ele trazia o tempo todo. Daqueles ouvidos e daquele coração que estavam sempre abertos para escutar e compreender o sofrimento e a luta das pessoas mais vulneráveis de nossa sociedade.

Diogo trabalhava por pessoas que sofrem não apenas com a negação de seus direitos mais básicos, mas também com o preconceito e o nariz torcido daqueles que tiveram todas as oportunidades na vida e acham que a miséria é uma opção de vida.

A verdade é que falta um mínimo de humanidade a quem acha que a miséria é um sinal de inferioridade ou o resultado de alguma lei natural que separa os que merecem viver bem dos que merecem sofrer. A miséria é uma escolha política. E, como toda opção política, pode ser mudada.

Diogo sempre compreendeu isso muito bem. Sabia que o caminho para a retomada da dignidade dessas pessoas passa pela existência de políticas públicas que lhes deem oportunidade de vida melhor. Que efetivamente garantam a eles tudo o que está gravado em nossas Leis, em nossa Constituição, na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Uma das primeiras coisas que aprendi na minha vida sindical é que é a luta que faz a lei. Uma luta que nunca foi fácil, mas que resultou em salários mais justos e melhores condições de trabalho. Que, em última análise, levou um metalúrgico à Presidência da República.

No movimento sindical, contudo, nós tínhamos algumas condições que nos fortaleciam. Em primeiro lugar, tínhamos empregos formais. Tínhamos sindicatos. Mesmo apanhando da polícia, fazíamos greves que obrigavam os patrões e o Estado a nos ouvir.

Mas que instrumentos de pressão têm os catadores de material reciclável? Como eles podem se fazer ouvir no centro do poder? Qual é o poder dessa gente, por mais que se organize, para exigir que seus direitos sejam garantidos?

Por isso mesmo, não basta ao Estado esperar passivamente que as suas reivindicações cheguem até nós. É preciso que a gente vá até essas pessoas, as escute de coração aberto e trabalhe duro para que suas necessidades se transformem em políticas públicas.

Em 2008, quando Diogo começou a trabalhar em meu gabinete, não demorei para perceber aquilo que o Gilberto Carvalho, seu chefe imediato, já tinha percebido: aquele rapaz não só estava totalmente alinhado com nosso propósito maior – garantir uma revolução de direitos no Brasil, sem deixar ninguém para trás – como era também capaz de correr a Esplanada de alto a baixo para transformar esse propósito em políticas públicas.

Lembro o tanto que me emocionei quando, graças a uma articulação do Diogo, recebemos em Brasília um grupo de mulheres da Amazônia que foram vítimas de escalpelamento. Eram mulheres e meninas que sofreram acidentes com hélices ou eixos de motores de barco e acabaram perdendo seus cabelos e seu couro cabeludo.

Naquele momento, determinei que era preciso o envolvimento de várias áreas do governo, não apenas para dar a necessária atenção às mulheres vitimadas, como também para evitar que acidentes desse tipo continuassem ocorrendo. Foi Diogo, com sua persistência e sua habilidade, quem articulou as ações com vários de nossos ministérios. E disso resultou a criação de procedimentos específicos no SUS, a criação de casas de atendimentos para as vítimas e as normas para que as embarcações se tornassem mais seguras.

Com os catadores de recicláveis, foi a mesma coisa. Desde 2003, graças a articulações feitas pelo Gilberto Carvalho, eu vinha participando de celebrações de Natal com os catadores em São Paulo.

Em 2006, promovemos uma coisa inédita neste país: recebemos os catadores no Palácio do Planalto para participar da assinatura de um ato solene. Fiz isso porque achava importante mostrar que a barreira entre aqueles que puxam carroças de recicláveis na rua e a maior autoridade do país era uma barreira que podia ser quebrada. Que somos todos seres humanos, brasileiros, portadores exatamente dos mesmos direitos.

Também, desde 2003, vínhamos lançando políticas e programas para garantir direitos à população de rua, beneficiar os catadores de recicláveis e fomentar a economia baseada no reaproveitamento de resíduos sólidos.

 Quando Diogo começou a trabalhar conosco, tomou esse tema como uma missão de sua vida. E quem tem um propósito na vida não se abate, faz as coisas acontecerem. Diogo foi fundamental para botar em funcionamento, em 2010, o Programa Pró-Catador. Ajudou as cooperativas e redes de catadores a se organizarem para terem acesso a financiamentos do BNDES. Ajudou a retirar travas burocráticas dos processos. E isso resultou em centros de reciclagem, caminhões, organizações de redes de cooperativas e uma série de transformações concretas na vida dos catadores.

Infelizmente, Diogo se foi muito cedo, muito jovem. E é até difícil imaginar o quanto mais ele estaria fazendo hoje.

Sua luta, contudo, ainda gera frutos. E continuará gerando.

Sua luta está viva nas mãos da Aline Souza, a catadora de recicláveis que tantas vezes se reuniu com Diogo e que me entregou a faixa presidencial em 1º de janeiro de 2023.

Sua luta está viva em cada jovem que consegue acesso a uma boa escola, a uma universidade, a um emprego.

É por isso que digo que o Brasil precisa de mais gente como o Diogo. Digo isso não como um lamento. Mas como uma esperança de que, ao seguirmos dando aos nossos jovens as oportunidades que lhes são de direito, estamos também dando ao Brasil a oportunidade de gerar muitos outros Diogos de Sant’Ana.

*Luiz Inácio Lula da Silva é Presidente da República.

Referência


Camilo Vannuchi. A alegria é uma responsabilidade política: a ginga, a audácia e  a urgência de Diogo de Sant´Ana. Fundação Perseu Abramo; Autonomia Literária, 2023. 264 p.


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