A naturalização do horror

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Por EMILIANO JOSÉ*

A imprensa brasileira embarcou nos novos esforços de golpe, agora, associados, a extrema-direita política, o empresariado monopolista, o capital financeiro e ela própria. Trata o quinta-coluna presente nos EUA com pompa e circunstância.

Quase metade de um século marcado por duas guerras provocadas pelas urgências do capitalismo já em sua fase imperialista, muito sangue derramado, muito sacrifício, e parecia, eram as aparências, ter ingressado o mundo numa nova fase.

Logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, era razoável pensar num horizonte de boas notícias. Houve a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tão importante. O nazifascimo, levado aos tribunais, com pompa e circunstância. Tribunal de Nuremberg escancarando os crimes de Hitler e companhia.

A ideia da democracia ganhava força. O socialismo, também. Havia a proposta capitalista. E a socialista. A ver, então, quem triunfaria. E nesse a ver quem triunfaria, desponta então a chamada Guerra Fria. Mais do que a Guerra Fria, a humanidade é colocada à beira do precipício, com a bomba atômica, fase do terror nuclear, sob o qual vivemos até os dias atuais.

Nem tudo eram flores, mas inegável a existência de um clima marcado pela esperança, pela crença em mudanças, em melhorias na vida dos povos, fosse pela social-democracia, fosse pelo socialismo. O pensamento nazista, condenado, sepultado. Assim parecia. Só parecia.

Entre o final dos anos 1940 e os anos 1960/1970, aqueles sonhos foram ganhando alguma consistência, com lutas revolucionárias notáveis, como a vitória em Cuba, no Vietnã, na Argélia, nas colônias portuguesas, entre tantas.

No meio do caminho tinha uma pedra

Veio a derrocada da União Soviética, por razões endógenas, e não externas, e já se desenhara a emergência do neoliberalismo, uma espécie de recuperação, novos métodos do capitalismo, a perdurar até os dias atuais. A mostrar a todos nós a complexidade da luta política e, inegavelmente, a força do capitalismo, a capacidade de recuperação desse modo de produção.

Nem se queira, por injusto, atribuir a Karl Marx a visão da chegada rápida da revolução, a mudar profundamente as estruturas. A leitura de Marx, uma biografia, de José Paulo Netto, nos demonstra o quanto isso é falso.

Karl Marx tinha noção nítida do quanto era longa a caminhada em direção à revolução, à mudança de estruturas, à chegada a um novo modo de produção, diferente do modo produtor de mercadorias. Avisava isso ao longo da obra dele. Estamos testemunhando isso, testemunhando o quanto o capitalismo se alimenta de crises, e sob o neoliberalismo isso é ainda mais evidente.

Aquele mundo, desenhado pela vitória sobre as forças nazistas, onde o papel principal foi do Exército Vermelho, importante ressaltar, aquele mundo onde tudo parecia caminharmos em direção a uma sociedade mais justa, foi esboroando-se sobretudo a partir da emergência do neoliberalismo. Diria ser sobre este solo, o solo neoliberal, o crescimento, hoje inegável, da extrema direita, acossada, agora, pelo despontar de um novo e poderoso ator da cena mundial, a China.

Não estarão errados os partidários da existência de um império em decadência, os EUA. E por isso, por experimentar uma crise sem retorno, é um império perigoso, como vai sendo demonstrada a política de Donald Trump, como fosse, sem o ser, imperador do mundo.

Horror

A impressionar, nessa conjuntura, a naturalização do horror, a naturalização das ideias nazifascistas. Estas, voltam à luz do dia, não mais vistas como pensamentos arianos, racistas, segregacionistas, negacionistas, contra a humanidade. Só de passagem, observar o rearmamento, fortalecimento militar da própria Alemanha, berço do nazismo.

Estamos vivendo um massacre televisado, mortes, massacres à luz do dia de milhares de crianças e mulheres pelo terrorista Estado de Israel, sem nenhuma ação mundial. Gaza deveria agredir, convocar a consciência mundial. Deveria nos recordar o quanto é inaceitável a repetição das práticas nazistas, a revisitação do Holocausto, como está ocorrendo.

E não agride. Assiste-se ao massacre levado a cabo pelos EUA e Israel como se fosse algo de rotina. Não há nenhum levante diante do fato de Benjamin Netanyahu dizer de sua disposição em varrer os palestinos do mapa, esvaziar Gaza. E instalar ali uma colônia de férias, com deslumbrantes hotéis à beira-mar. Estamos chegando a um grau de insensibilidade jamais visto depois do término da 2ª. Guerra.

O horror do nazifascismo, revisitado, em sua forma mais cruel. Não bastasse o sacrifício de milhares de crianças e mulheres no altar da crise capitalista, no caso de Gaza, a mortandade de jornalistas é superior ao número de mortos na Segunda Guerra Mundial. Naquela, mortos 69 profissionais.

Em Gaza, os assassinos dos EUA e de Israel já mataram 242 homens e mulheres da imprensa, conforme a jornalista iraniana Marzieh Hasmehi, comentarista e documentarista nascida nos EUA, radicada no Irã, em matéria publicada na PressTV, republicada pelo Pátria Latina.

E prometem mais, mais sangue, na limpeza étnica em andamento, na solução final proposta por Benjamin Netanyahu. E o trágico, além dos crimes em si, é o fato de a imprensa mundial fazer ouvidos de mercador a tal crime, naturalizando a morte de tantos profissionais. Imprensa mundial e brasileira.

Israel, nessa fase genocida, na fase da solução final, da limpeza étnica, proibiu a entrada de jornalistas internacionais em Gaza, sob o argumento da preservação dos jornalistas, a cuidar da segurança deles. Israel e EUA, na verdade, pretendem esconder o massacre. Os assassinatos a sangue-frio de profissionais de imprensa atingiram níveis sem precedentes. Uma tenda ocupada por cinco jornalistas da Al Jazeera foi deliberadamente atacada pelos soldados de Benjamin Netanyahu, todos mortos.

Um dia após o assassinato do jornalista da Al Jazeera, Anas al-Sharif, veículos de comunicação ocidentais, entre os quais BBC, isto, até a BBC, Reuters e Fox News, fortaleceram a acusação israelense de o profissional morto ser chefe de uma “célula terrorista do Hamas”, e que havia trabalhado para a assessoria de imprensa do Hamas. O Hamas nunca terá direito a dar a versão dele. Ao menos, para a imprensa ocidental, nunca.

Imprensa brasileira

Triste e revoltante, a naturalização de tal massacre imposta pelos meios de comunicação ocidentais e pela imprensa brasileira. O movimento de naturalização de crimes atinge o Brasil, de forma nítida. Nem se discuta a ausência de qualquer boa vontade com o governo Lula, já da rotina, e pouco importa apresente números extraordinários, a beneficiar o povo.

A imprensa brasileira já fez o giro: está claramente disposta a anistiar o bolsonarismo, a apiedar-se, se a palavra coubesse, do ex-presidente, a naturalizar a atividade de quinta-coluna do filho dele nos EUA, a procurar chifre em cabeça de cavalo quanto às decisões do ministro Alexandre de Moraes, como se houvesse divisões no STF quanto ao processo contra Jair Bolsonaro e toda a quadrilha, típica manobra fake news.

De uma forma ou de outra, a imprensa brasileira embarcou nos novos esforços de golpe, agora, associados, a extrema-direita política, o empresariado monopolista, o capital financeiro e ela própria. Trata o quinta-coluna presente nos EUA com pompa e circunstância.

Não há escândalo diante do fato de ele trabalhar às claras para prejudicar o Brasil. Donald Trump ataca até o “Mais Médicos”, e o quinta-coluna proclama abertamente a disposição de buscar junto aos EUA mais e mais meios de seguir com a guerra híbrida contra o Brasil. Naturaliza-se tal procedimento. É um fonte, acreditada, e ponto. Aonde vamos parar? Ninguém sabe.

A celebração da democracia americana, feita com entusiasmo por liberais deslumbrados e pouco afeitos à pesquisa, parece ter se encerrado. Se aquela democracia, comandada pelo Deep State desde sempre, jamais tenha justificado plenamente o nome, muito menos agora.

Tudo agora, nos EUA, é estado de exceção – está certo Christian Lynch.[1] Todas as regras antes balizadoras do Estado de direito norte-americano foram ao chão. É um governo, volto a Christian Lynch, que se “erige em ditadura no sentido mais estrito da expressão”. Uma ditadura no sentido de regime autoritário, de despotismo ou tirania. A intervenção brutal de Donald Trump em Washington é algo de fazer corar qualquer ditador. Ali, sim, clara violação dos direitos humanos contra a população. Tudo naturalizado.

Curioso queira o império decadente, nesse momento sob um governo ditatorial, jamais assim encarado pela mídia ocidental e muito menos pela nossa imprensa, dar lições ao mundo e ao Brasil sobre direitos humanos, lições também naturalizadas entre nós, lamentavelmente.

Não sei, e não sei mesmo, aonde vamos parar com tanto horror, com tanto desmando, com tanto arbítrio, tanta extrema-direita, hoje uma praga a se espalhar por todo o Ocidente, e tudo tão inaceitavelmente naturalizado.

Sorte, destino, o que seja, termos um presidente como Lula. Capaz de não se dobrar. De erguer bem alto a bandeira da soberania. De procurar unir o País na defesa dos interesses da pátria, e aqui a palavra pátria cai bem. A esperança, a partir de tanta naturalização do horror, naturalização a contar a ajuda militante dos meios de comunicação empresariais, é ver a população nas ruas, assistir à presença do povo na cena política, a contribuir para seguirmos na trilha da democracia, tão atacada pela extrema-direita nacional e pelo império em decadência.

Aquele tempo de sonhos, aquele horizonte cheio de promessas do fim da Segunda Guerra, não voltam assim como um raio caído num dia de céu azul. A revolução sempre foi obra do ser humano, continua a ser. E, como já dito, a caminhada é longa. Os tempos sombrios só são enfrentados com a presença das classes trabalhadoras. Sem elas, os horizontes permanecem nublados, como neste momento.

Pode ser apenas um desejo, mas não só um desejo: os trabalhadores logo, logo assumirão a consciência política necessária para enfrentar a crise, no Brasil e no mundo. Entrarão em luta para continuar, passo a passo, a construção de outro mundo, sempre possível se a população trabalhadora se movimenta, com consciência.

*Emiliano José é jornalista, escritor, membro da Academia de Letras da Bahia.

Nota

[1] Ver “Por que o governo Trump é uma dupla ditadura”, no Diário do Centro do Mundo, 12/8/2025.


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