Os compromissos do governo Lula

Imagem: Hilary Susan Osman
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Por ION DE ANDRADE*

Queda de popularidade do governo Lula: se não universalizar o acesso a direitos pode piorar

Recentes sondagens de opinião vêm mostrando um panorama de perda de popularidade do governo Lula. Em primeiro lugar, como o Brasil é um poço inesgotável de problemas, é preciso considerar que qualquer governo que assuma é herdeiro de uma imensidão de coisas que são problemas prioritários para muita gente, mas não têm como ser resolvidos em um ano e dois meses de governo. Há, por isso, um passivo inevitável no próprio exercício do governo no Brasil.

O segundo aspecto toca à polarização política que fará com que haja uma flutuação que dependerá da influência desses setores anti-Lula hoje organizados debaixo do guarda-chuva do bolsonarismo à cada circunstância de oportunidade.

O terceiro aspecto é o que merece maior preocupação: o sentimento difuso do povo ou de parte importante dele de quebra de compromisso por parte do governo Lula. O que significa isso? A percepção de que o governo não incluirá aquele problema prioritário, pelo qual o voto em Lula foi dado, na agenda do governo. Ou seja, a percepção que já começa a se desenhar de que, daqui a três anos, estará e mais uma vez, tudo como d’antes no quartel de Abrantes. Essa percepção difusa, aliás, poderá ser o terreno fértil para aumentar a capacidade das ações oportunistas da ultradireita.

Entender isso permitiria ao governo ter algumas abordagens, como a de ter com os candidatos às prefeituras uma sinergia onde a lupa municipal que está nas mãos desses candidatos e depois desses prefeitos, poderia ter papel de diagnosticar necessidades não atendidas e de desenhar programas de governo focados em buscar resolvê-las, com o apoio da União.

Os governadores de estado deveriam também, mesmo que as eleições para os estados não sejam agora, fazer o mesmo. Por exemplo, que tal melhorar e humanizar as polícias dos estados que governamos para que não continuem matando os pobres sem perguntar?

Ora, a perda de conexão entre o povo e o governo que pretende representá-lo e que gera impopularidade é um fenômeno que poderíamos denominar de “despolitização” fenômeno cujo responsável (como quem responde, não como o culpado, atenção) é o próprio governo, pois tem o mando de campo, ainda que as forças de oposição, no caso do Brasil de hoje o fascismo, possam agir de forma oportunista, mentindo e difundindo fake news.

De forma muito esquemática, para entender esse processo de politização/despolitização e tentarmos construir saídas, duas coisas gerais, de maneira esquemática, politizam o povo: (i) um governo da ultradireita fazendo a coisa errada, a exemplo do governo de Tarcísio de Freitas que tanto fez que foi denunciado à ONU pelos massacres policiais e (ii) um governo do nosso campo fazendo a coisa certa e na quadra atual quero usar o exemplo, haveria muitos, pois há muitas coisas boas sendo feitas, das bibliotecas previstas para os conjuntos do Minha Casa Minha Vida.

As duas situações são propícias a produzir a leitura correta da realidade pelo povo: o governo que não me representa faz a coisa errada e o que me representa faz a coisa certa.

Por outro lado, duas coisas gerais despolitizam o povo: (a) um governo do nosso campo que faz a coisa errada, e, nessa quadra eu quero destacar o exemplo dos massacres e humilhações de pretos, pobres e índios pelas polícias de estados governados por nosso campo e (b) as forças de ultra direita fazendo a coisa certa, a exemplo de prefeituras bolsonaristas que ofertam a mobilidade em regime de tarifa zero.

As duas situações dificultam aos olhos do povo a compreensão de quem é e quem não é o seu representante, afinal, nesses exemplos, o governo que me representa faz a coisa errada e o que não me representa, faz a coisa certa…

Ora, o que vemos no Brasil de hoje à luz dessa leitura da dinâmica da singela formação da consciência política pelo povo, é uma sangria desatada de despolitização por ações e omissões de governança do nosso campo que se devem não somente ao fato de que o país não pode resolver os seus problemas de uma vez e por isso produz frustrações, mas sobretudo ao modo pelo qual são construídos os avanços sociais que é aleatório, desorganizado e sobretudo sem foco na questão do que é mais estratégico no jogo: o acesso universal às melhorias.

Vamos tomar, para a nossa análise o caso da oferta dos novos Institutos Federais (IFs) pelo governo federal, medida que aponta para a melhoria da qualidade do ensino público e que deveria ter também o condão de politizar o povo por fazer coincidir a coisa certa pelo protagonista certo.

Ao que tudo indica, o governo vai disponibilizar 180 novos Institutos Federais. Para uma análise à lupa, uma pergunta do epidemiologista que eu sou: 180 Institutos Federais, representam muito ou pouco?

Vejamos: O Brasil tem, conforme o censo escolar de 2023, 7,7 milhões de alunos matriculados no Ensino Médio e tinha em 2020, cerca de 1,5 milhões de alunos matriculados em 654 Institutos Federais o que representa cerca de 2.300 alunos por Instituto Federal.

Se cada novo Instituto Federal tiver 2.300 alunos, os 180 Institutos Federais poderão oferecer 414.000 vagas que se acrescentarão às 1,5 milhões de vagas já oferecidas em Institutos Federais. Vamos reconhecer que se trata de um número extraordinário de vagas num tipo de ensino médio que, podemos dizer que garante um padrão de qualidade comparável ao dos países mais avançados.

Então, a soma entre os Institutos Federais novos, que estão no horizonte e os já existentes poderá chegar a praticamente dois milhões de vagas correspondendo a cerca de 25% da população total de alunos matriculados e a matricular, no ensino médio.

Mesmo assim, o que significa isso? Significa, ao fim do governo, quando a publicidade estará mostrando uma verdadeira revolução no ensino médio, que 75% das famílias terão os seus filhos matriculados em escolas convencionais e poderão, legitimamente considerar aquela propaganda como mentirosa, embora, de fato, muito tenha sido feito pelo governo. Mas não adiantará dizer que são dois milhões de alunos em Institutos Federais, afinal o “meu filho não está incluído”.

E qual é a estratégia de “universalidade” de acesso a esses Institutos Federais? Vejamos isso para depois propormos uma nova abordagem.

O que o governo propõe como estratégia de acesso universal é o concurso vestibular na porta dos Institutos Federais, concursos esses que só aprovarão os filhos do povo saídos de famílias um pouco mais organizadas, como aponta Paulo Lins autor do livro Cidade de Deus, que diz que saem das favelas pela escolaridade os filhos do funcionário público ou do motorista de ônibus, que também moram na favela, mas não o filho do flanelinha.

E eu vou acrescentar duas coisas mais, a primeira é que esses concursos só serão feitos pelos alunos que morem a uma distância praticável desses novos Institutos Federais, o que significa que para além de certo círculo de distância física, esse Institutos Federais estará longe demais. A segunda coisa é que o Instituto Federal também é alvo, legítimo aliás, afinal é público, de uma parcela importante de jovens originados da classe média.

Portanto a máxima muito utilizada pelo governo que diz “estude se você quer um futuro” sequer permite a entrada nas vagas dos Institutos Federais dos mais estudiosos pois essas vagas são numericamente insuficientes e são distribuídas, sem considerar qualquer lógica efetivamente territorial de acesso, diferentemente do que ocorre com os dispositivos de saúde geridos pelo SUS que devem obedecer ao ditame constitucional do acesso universal à saúde…

O que fazer?

É preciso entender que o exemplo dado aqui através dos Institutos Federais poderia servir para outras políticas que não estão desenhadas para a universalidade e devem, obviamente, ser corrigidas nesse quesito, pois trata-se do desafio que envolve, potencialmente, as raízes mais temíveis da queda de popularidade do governo atribuível à quebra de expectativas.

Ora, com um modelo de Ensino Médio (o modelo Instituto Federal) que ocupa ou ocupará em breve 25% dos matriculados, os Institutos Federais teriam tudo para serem definidos pela União no pacto federativo com estados e municípios como o modelo padrão para a universalização de um novo Ensino Médio contando com orçamentos da União, Estados e Municípios e permitindo ao Brasil um salto definitivo rumo à oferta de um padrão de ensino de qualidade compatível com o que é oferecido nos países mais avançados do mundo.

Se o governo fizesse isso, poderia então construir, com os estados e municípios, o calendário de conversão desses 75% de escolas que faltam em novos IFs estaduais no que poderia ser um Sistema Único do Ensino Médio.

Se fizesse isso, aquela família que tem o filho na escola convencional entenderia que o governo (a) não pode resolver tudo de uma vez , mas (b) se interessa por sua comunidade e, se seus filhos não puderam ir a uma escola desse padrão, seus netos irão. O povo é resiliente e entendedor.

Haveria aí, não a ideologia manipulatória do concurso como forma de acesso, mas a verdade de um jogo em que a sociedade passou a entender que pode haver um programa de longo prazo no qual o governo que a representa faz, está fazendo e fará a coisa certa, conceito que é a mais poderosa arma de comunicação que o governo pode ter e que pode, aliás, ser entendida sem estardalhaço, na lógica da formação de uma maioria silenciosa que compreendeu e apoia o projeto de longo prazo.

Essa lógica não é nova sequer para o Estado brasileiro.

Em 2023 o Sistema Único de Saúde abriu, segundo o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), centenas e centenas de novos dispositivos de saúde, o que ocorreu de forma territorializada, orgânica e dentro do pacto federativo e incluiu desde os mais simples consultórios isolados, até os hemocentros, policlínicas e hospitais.

O SUS faz isso numa lógica territorial atendendo ao ditame do acesso universal à Saúde e o faz normalmente, tecnicamente, institucionalmente, silenciosamente e sem estardalhaço.

Isso não significa que a propaganda do que se faz não seja necessária, ela é certamente necessária, mas essa propaganda terá tanto maior poder quanto mais sedimentado estiver o consenso de que o governo constrói um projeto de longo prazo com o olho na emancipação e no bem estar do povo. Simultaneamente isso reduzirá também o espaço para as manobras oportunistas da ultradireita.

Entretanto, os Institutos Federais como espasmo e bala de prata, 180 uma vez e depois acabou, e não como projeto de longo prazo e inspirador de uma nova institucionalidade para o Ensino Médio, talvez façam o efeito contrário, o de mentira deslavada para 75% das famílias que têm filhos matriculados em escolas convencionais, hoje sem a menor chance de deixar de ser o que são. Sejamos francos, o que isso comunica a quem não vai receber?

Essa lógica é a mesma para inúmeras outras políticas, onde o protagonista certo fez a coisa errada. Me vêm à cabeça: (a) o não repasse do piso da enfermagem às Instituições de Longa Permanência de Idosos filantrópicas porque elas são da Assistência Social e não do SUS; (b) a não percepção de que o enfrentamento da problemática da população em situação de rua deveria motivar um esforço de guerra do governo e não um bilhão para ações que não terão o poder de devolver normalidade à vida desses brasileiros;

(c) a dificuldade de construir junto com os povos indígenas um projeto de desenvolvimento capaz de fazer a transição daqueles povos a uma vida que faça coincidir identidade nacional completa com contemporaneidade, que é a única condição de que aquelas culturas que enriquecem a nossa possam ser longevas… ou (d) a falta no nosso campo de qualquer iniciativa de grande vulto através do pacto federativo que faça retroceder e de uma vez o genocídio de negros pelo Estado.

Se o governo se encontrar com ações de longo prazo que possam dar ao cidadão a certeza de que o que ele não tem agora terá depois num calendário pactuado, conhecido, respeitado e do qual o governo preste contas, quero crer que a comunicação dessas verdades será o menor dos problemas.

Se agir por espasmos com balas de prata e discursos enfrentará um stress eleitoral desnecessário que poderá, é a tendência mundial, nos devolver às trevas.

Para a classe média de esquerda, para quem a vida está resolvida, a popularidade de Lula pode ser alimentada por ideias, dentre muitas outras, como a da ampliação do número de Institutos Federais, é uma adesão cerebral em torno de valores democráticos e altruístas compartilhados. Para esse segmento da sociedade, que hegemoiniza o governo e as redes sociais, o problema do governo Lula é, portanto, apenas e tão somente de comunicação. Vamos trocar Pimenta…

No entanto, para quem depende dessas conquistas para sobreviver, planejar o futuro e ter oportunidades, a decisão não tem como ser cerebral. E esse segmento representa a imensa maioria do povo brasileiro e é o alvo da manipulação da ultradireita.

O critério de verdade para esse segmento toca às questões empíricas do acesso às conquistas e essa maneira de formar opinião, não somente é tão legítima quanto as da classe média de esquerda, como é também, incomparavelmente mais decisiva.

De forma simples o raciocínio é: se as pessoas que formam meu círculo de relacionamentos mais próximo por quem eu possa ter amor, se beneficiaram com a iniciativa, ela é verdadeira. Caso contrário ela poderá e legitimamente não ser validada.

Em políticas públicas o igualitarismo radical, cuja perda Vladimir Safatle utilizou para ilustrar uma das provas que o levam a concluir que a esquerda morreu, se exprime como “acesso universal” a direitos.

Ou o governo universaliza o acesso aos direitos de forma pactuada num calendário exequível, dizendo a verdade ao povo sobre como e quando cada um vai ser beneficiado, ou poderemos estar pavimentando o caminho para a derrota.

*Ion de Andrade é médico, professor universitário e membro da Rede BrCidades.


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