Por RENAN QUINALHA*
É possível pensar uma regulação das fake news que não fira a liberdade de expressão?
Esse é o grande desafio de nosso tempo. A gente tem um contexto que é muito grave. Isso não é de hoje exatamente. A gente viu as eleições nos Estados Unidos quando o Trump ganha e o Facebook é mobilizado para isso, a gente viu a eleição de 2018 aqui no Brasil, Brexit também. Enfim, são vários episódios que a gente vê do ponto de vista do ambiente democrático, do espaço público, que essas redes sociais têm tido um papel cada vez mais relevante e cada vez menos controladas por um controle democrático, social mesmo, o que sem dúvida nenhuma compromete a democracia. Mas não é porque a gente tem esse problema que qualquer tentativa de marco regulatório, qualquer proposta, serve. Não é essa urgência e a importância da boa intenção que vão garantir a qualidade desse marco regulatório. Aqui no Brasil até tomou força agora esse debate justamente por conta da pandemia a gente tem visto que é uma questão até de risco à vida das pessoas. Tem sido divulgada a questão do medicamento da cloroquina, enfim, uma série de informações anticientíficas, sem comprovação e aí isso acaba tomando força. Mas isso é muito ruim para o direito também, você fazer legislação em momentos de alta pressão da opinião pública geralmente não sai coisa boa. Tem um risco dessa legislação de ocasião que vira uma coisa meio de populismo penal. Você corre, responde com um novo crime tipificado, aumenta a pena, como se isso fosse resolver, mas no fundo você faz uma colcha de retalhos ali sem nenhuma sistematicidade entre as normas. Então é preciso um pouco mais de cautela também para pensar como que esses direitos fundamentais da liberdade de expressão, da proteção da honra, da imagem das pessoas se relacionam com essa disseminação das notícias falsas.
Havia já o projeto que foi apresentado pelo Alessandro Vieira que é esse PL 2630 no Senado, mas o mesmo texto, com algumas poucas diferenças, foi apresentado também na Câmara dos Deputados pela Tabata Amaral e o Felipe Rigoni. E os dois projetos são muito semelhantes e eles trazem exatamente essa ideia de uma lei brasileira de liberdade, responsabilidade e transparência na Internet. Segundo esses projetos, ali na exposição de motivos e no texto deles, são três os objetivos traçados. O primeiro é o combate à desinformação, o projeto não usa fake news que é um anglicismo (e é melhor que não use mesmo, porque desinformação é mais amplo). O segundo é aumentar a transparência em relação a esses provedores de aplicativos (ou aplicações, como diz o texto da lei). E desencorajar contas inautênticas, ou seja, contas falsas que ficam disseminando essas informações equivocadas, falsas. A gente precisa de algo nesse sentido que dê mais concretude a outras legislações que existem no Brasil e que consigam dar conta de conjugar, o que é muito difícil esses direitos fundamentais que eu estava mencionando. Então a liberdade de expressão está consagrada na Constituição em alta conta ali, só que ela sempre aparece de alguma maneira também relativizada e limitada. Então a Constituição que é garantida a liberdade de expressão, mas é vedado o anonimato, por exemplo. Isso está na Constituição, garantia da liberdade de expressão, mas isso não é uma licença para o cometimento de crimes, por exemplo, de crimes contra a honra, que nesses casos de desinformação aparecem muito: calúnia, difamação, injúria. Também tem uma vedação à liberdade de expressão quando você veicula conteúdos de discurso de ódio.
A nossa liberdade de expressão não tem a mesma consagração, apesar de ser muito importante, não tem a mesma consagração como nos Estados Unidos que prevalece uma liberdade total e você só responsabiliza posteriormente. Então esse projeto ele tenta um pouco pegar essa questão, a maneira como essa liberdade de expressão está posta, e tenta trazer alguns instrumentos para o controle. Mas o grande problema desse projeto, tão relevante, que muda tanto na nossa vida, não é só na questão eleitoral, mas é na nossa vida concreta mesmo, porque todo mundo hoje vive enfurnado em rede social, em troca de mensagens no WhatsApp etc. É fazer isso primeiro, com pressa e sem debate, porque o Congresso está em um momento, por conta da pandemia, em que não há comissões funcionando regularmente, não há audiências públicas, que são mecanismo de participação, que poderiam oxigenar mais as propostas. Mas o projeto também tem uma série de vícios ali, problemas. E a gente não sabe mais o que é o projeto, porque essa última semana começou a ser discutido o relatório do senador Ângelo Coronel que é o relator desse processo, desse PL no Senado. Então está uma série de questões que a gente não sabe direito como ficou no final, porque não foi divulgado ainda esse relatório, mas o que já apareceu mostra que há pontos bastante graves ali. O primeiro é que não há uma neutralidade tecnológica no projeto. O projeto ele é dividido em temas que se dedicam claramente a seções a redes sociais ou certos aplicativos específicos, e redes sociais específicas, então você olha lá e você fala “isso aqui foi feito para o Facebook”, “isso aqui foi feito para o WhatsApp”. Só que isso é um grande problema porque a lei não pode ser pensada de acordo com o alvo dela, a lei precisa ter uma sistematicidade que garanta uma regulação, que não vá servir só nesse momento e para esses atores que agora estão na esfera pública. Você precisa pensar que tem um processo de inovação tecnológica, de desenvolvimento e que logo esse projeto vai ter que também abranger nessa legislação outros tipos de plataformas. Além disso, não se olha o ecossistema, é um projeto que mira muito para as plataformas para esses intermediários que são as plataformas que pegam informações e conteúdos e levam até outras pessoas. Então ficam conectando terceiros, é isso que elas fazem, e não olha para a rede de financiamento que a gente sabe agora nesse inquérito do STF que tem um papel fundamental para disseminar fake news, quem paga isso. E aí um ponto muito grave é justamente que se muda esse regime de responsabilização, que já estava lá no marco civil da Internet que entendia que essas plataformas que são intermediários eles não são responsáveis por conteúdos. E esse projeto agora está alterando isso, ou seja, coloca no colo da plataforma o dever de olhar o conteúdo para ver se o conteúdo é ou não é uma informação falsa.
Mas embora pareça que há uma penalização das plataformas com essa incumbência, mas no fundo a gente está dando um poder ilimitado para essas plataformas fazerem uma moderação de conteúdo. A gente passa a ter um mecanismo de moderação privada e de censura privada das plataformas, em cima dos conteúdos que as pessoas estão postando ali.
Mas pensa você a escala de como isso vai mudar quando você estiver obrigando as plataformas a fazer isso. Elas vão ter que fazer isso sempre, a todo momento, ou seja, tudo o que está sendo inserido nas plataformas, elas vão ter que começar a fazer certos filtros. E aí se você joga no colo delas toda essa responsabilidade sem nenhum tipo de mecanismo de controle por parte do Estado, de uma regulação estatal, é muito perigoso, porque parece que você está resolvendo o problema, mas você está só terceirizando, e terceirizando por uma lógica privada mesmo. A gente não sabe como vai ser feito esse controle se a gente não tiver uma regulação. Então é evidente que um projeto mais interessante ele passa por um processo de autorregulação, não precisa ser toda responsabilidade do Estado, também precisa implicar esses agentes privados. Mas não dá para chegar no extremo de jogar tudo no colo deles, porque aí o estado vai estar renunciando de fazer um controle, uma fiscalização de algo que é fundamental, porque envolve direitos e liberdades que são fundamentais dos cidadãos. Até porque esse projeto de lei prevê sanções que são muito pesadas para essas plataformas, vai desde advertência e multa, no artigo 28 fala até proibição de exercício das atividades no país. Ou seja, não vai poder atuar, imagina plataformas que tem milhões de usuários no Brasil. Então com isso você vai fazer com que as plataformas (isso aconteceu em outros lugares, na França, na Alemanha) elas vão acabar fazendo mais controle, mais moderação do que é necessário de ser feito, do que seria razoável, por precaução, para não perder a possibilidade de atuar no país. Então acho que esse é um grande problema que tem sido bastante discutido por várias organizações que debatem direito na rede. Mas, além disso, o projeto, do ponto de vista da técnica legislativa, é ruim porque os conceitos são muito vagos e a gente sabe que legislação com conceito muito flexível e vago é um grande problema, porque também não resolve nada. Terceiriza e joga depois para o aplicador da lei, para o judiciário que ainda está aprendendo a lidar com essa temática. Então, por exemplo, o conceito de desinformação (que seria o correspondente ou que abrangeria o que é fake news) diz lá no artigo 4º: “desinformação é um conteúdo em parte ou no todo, inequivocamente falso ou enganoso, passível de verificação, colocado fora de contexto, manipulado ou forjado, com potencial de causar danos individuais ou coletivos, ressalvado o ânimo humorístico ou de paródia”. Ou seja, você termina de ler essa frase, esse tipo, você não lembra mais do início, porque é uma série de vírgulas, de vírgulas, ou seja, o que é “inequivocamente falso”?
Você diz que é “ânimo humorístico”, é “paródia”, e aí você põe o que é fora do contexto? Uma crítica política a uma autoridade pode depois alegar que está fora de contexto? É muito subjetivo. A mesma coisa para “conta inautêntica”. O projeto a define como conta criada ou usada com o propósito de disseminar desinformação ou assumir identidade de terceira pessoa para enganar o público, mas o que é “disseminar informação”? Então as redes do Bolsonaro são contas inautênticas porque ele dissemina desinformação semana atrás de semana em relação, por exemplo, à pandemia. É preciso mais cuidado, acho que precisa refinar mais esse texto e por isso um debate legislativo mais calmo, mais sereno. E é preciso ouvir mais a sociedade civil, quem estuda esse tema, debater para aperfeiçoar esse texto. Um outro problema é que não há um devido processo, ou seja, removem lá o seu conteúdo porque uma plataforma dessas privadas entende que aquilo é uma desinformação, e aí? O projeto só fala o seguinte: você pode ter três meses, no mínimo três meses tem que ficar uma janela para você recorrer. Mas não fala nada sobre quem julga, com base em que, quais os critérios para isso. E aí veio no relatório que foi discutido no fim da semana passada, um dos dados desse relatório, que é o possível trabalho do relator, o Ângelo Coronel, que você tendo uma ação judicial você já teria que remover aquilo, sem que ela fosse apreciada e julgada, antes da liminar inclusive do judiciário. Ou seja, você acaba com o princípio de presunção da inocência. Quem entrou com a ação já tem que remover. Então é uma série de iniciativas um tanto atabalhoadas. Outra coisa do relatório é que teria que haver identificação e localização, então todo usuário tem que fornecer um documento como RG, CPF, com foto e comprovante de endereço. Isso é temerário, porque do ponto de vista da proteção de dados que é um tema que a gente discutiu em episódio passado já. Imagina se você, todas as suas buscas do Google estão lá vinculadas a seu CPF e se só é uma informação que circula. A gente sabe como é fácil acessar um CPF, vendem CD de CPF por aí. Então é preciso cuidar dessa salvaguarda dos direitos, da privacidade, da intimidade, da honra e da liberdade de expressão. E por mais que a gente tenha que ter um projeto de lei, não pode ser qualquer um. Não é qualquer iniciativa que vai ajudar combater, porque pode até ser inefetiva.
Você tem nas redes alguns mecanismos de você marcar uma publicação dizendo que viola as políticas internas dessas redes, mas o que elas apuram daí é só a compatibilidade do conteúdo com a política interna definida por ela, e que todos os usuários aderem ao se submeter ao começar a usar a rede. E o que envolve discussões em torno disso vai para o judiciário. Então “ah, não aplicou direito”, “aplicou de outra maneira” e aí o judiciário calibra.
Tem essa dimensão que aí já não é nem da política interna só das plataformas, é da legislação penal. Você já tem tipos penais hoje no Brasil, como os crimes contra a honra que em geral são esses que se caracterizam quando você está imputando alguém um crime, dizendo uma notícia falsa, caluniando. É um crime de iniciativa privada, então é a pessoa que precisa abrir um boletim de ocorrência, dar início a esse procedimento de investigação e aí isso pode virar uma ação penal. Isso é uma coisa, aí você consegue ali quebrar sigilo, ter informações, mas isso tudo com o judiciário. E o relatório que já saiu que estava circulando em torno desse PL trazia dados preocupantes também, por exemplo em relação a esse tema de que era possível você quebrar sigilo na fase da investigação sem qualquer tipo de autorização judicial. Ou seja, é algo que é bastante temerário, porque são procedimentos de exceção que se a gente agora acha que se justifica, porque de fato tem uma indústria de fake news, de desinformação, que é muito prejudicial, em várias escalas e dimensões, você vai acabar justificando dispositivos de exceção que depois vão se voltar contra essas garantias todas. Então é preciso muito cuidado para entender que a excepcionalidade desse momento não é a melhor maneira de pautar uma legislação que vai servir para muita coisa. E além disso me parece que é bastante ruim a gente pautar esse debate só no campo legislativo e penal. Tem um pouco essa crença de que o direito penal resolve todos os problemas que nós temos e que a gente só precisa criar um crime e aumentar a pena que isso vai resolver. E não vai resolver. Países que criminalizaram desinformação nesse sentido estão abarrotando as prisões e os processos judiciais e não estão diminuindo o número, porque essas agências que fazem verificação de fatos têm produzido dados e mostram que não adianta só você criminalizar. Óbvio que precisa aperfeiçoar a legislação e tem espaço para fazer isso, mas mais do que isso acho que também precisa discutir alfabetização midiática, digital, educação, tem que fortalecer a imprensa livre. O Eugenio Bucci escreveu um texto na Folha na semana passada nessa linha, que a imprensa livre que tem protocolos de verificação, que tem uma ética jornalística e tal que você consegue através desses mecanismos também calibrando o debate público.
A desinformação vem gratuitamente no WhatsApp, nas redes sociais, e o conteúdo que dá trabalho para ser produzido porque depende de investigação de pesquisa, de uma série de critérios, ele acaba precisando de algum modo de financiando e ainda é esse, de você pagar, assinar. Então limito o acesso e isso acaba sendo ruim do ponto de vista da restrição mesmo, desse acesso. O projeto fala um ponto que é o da transparência, isso tem algumas disposições no projeto que são importantes e que precisa avançar mais, que é justamente no sentido também de mostrar como que os conteúdos pagos estão sendo veiculados, da publicidade mesmo, nessas páginas, e o interesse em que há em torno disso, econômico.
Então esses mecanismos são todos novos, a gente está falando das coisas que surgiram nas últimas semanas de um debate da atualidade e que é de extrema relevância. Mas eu acho muito importante deixar isso registrado, porque nos próximos dias vai voltar a discussão em torno desse PL e a gente tem muito claro de que é preciso calma. Por mais que seja urgente, é preciso serenidade para que a gente consiga ter um bom projeto de lei, uma legislação boa que não precise daqui há um ano ser reelaborada, rediscutida porque ela foi feita no calor dos acontecimentos, sem maior reflexão, sem maior racionalidade.
*Renan Quinalha é professor de direito na Unifesp. Autor, entre outros livros, de Justiça de transição, contornos do conceito (Outras expressões).
Artigo estabelecido a partir de uma conversa com Laura Carvalho no canal de podscasts Entretanto.