A rota da boa esperança

Imagem: Ylanite Koppens
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Por PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.*

O desafio é vencer tempestades

Em artigo anterior postado no site A Terra É Redonda tratei do que chamei de “destino planetário do Brasil”. Extravagante, mas fez sucesso. Vale a pena, talvez, insistir no tema. O brasileiro está precisando de alento. O artigo foi meio delirante, eu sei. É o que tende mesmo a acontecer – quando alguém sonha sozinho, o sonho pode degenerar em delírio. Mas quando muitos sonham juntos, ah, aí o delírio pode virar realidade. E, convenhamos, o nosso futuro está logo ali.

O leitor quer um exemplo de como o Brasil pode cumprir seu destino planetário? Vou recorrer a uma ideia do Saturnino Braga, um daqueles brasileiros que sabem pensar grande e que, em meio à tormenta, não perdeu a confiança no Brasil. Ognuno sa navigare col buon vento, dizem os italianos. O desafio é vencer tempestades.

Antes da pandemia, participei com Saturnino de uma mesa de debates no Rio de Janeiro sobre a Nova Rota da Seda, aquela grandiosa iniciativa chinesa, lançada em 2013, que consiste essencialmente de uma coleção de projetos de infraestrutura. O nome da iniciativa carrega todo um simbolismo histórico, ao evocar as antigas rotas de comércio entre a Ásia e a Europa numa época em que a China era a economia mais desenvolvida e poderosa do mundo. A Nova Rota da Seda não se circunscreve às áreas originais e alcança, também, a África e a América Latina.

Todos falavam com admiração da iniciativa chinesa, quando de repente o nosso Saturnino resolveu inovar. E saiu-se com uma daquelas belas improvisadas que o brasileiro, como poucos, consegue produzir. Por que não, perguntou ele, uma iniciativa brasileira – uma Nova Rota da Boa Esperança, que uniria as Américas, a Europa, a África e a Ásia? O Brasil refaria, assim, o caminho das Grandes Navegações Portuguesas. Este seria o lema que poderia abrigar e energizar todo um conjunto de projetos e programas de desenvolvimento na América Latina, na África e na Ásia, impulsionados pelo Brasil.

A ideia ressoou em mim porque há muito alimentava o sentimento de que o nosso país é, na verdade, o herdeiro natural do espírito que moveu a aventura global de Portugal nos séculos 15 e 16. Em Washington, cheguei a ensaiar essa ideia, em pequena escala, ao trazer para nosso grupo no FMI países de língua portuguesa da África e da Ásia. Estávamos refazendo, eu dizia na época, tongue in cheek, a trajetória das Grandes Navegações.

Portugal, vítima do complexo de vira-lata

Antes de desenvolver um pouco a ideia do Saturnino, preciso abrir um rápido parêntese sobre Portugal. O brasileiro, em geral, pouco sabe, pouco entende de Portugal. O que é um absurdo arrematado, por duas razões pelo menos.

A primeira razão, óbvia, é que os portugueses, junto com outros povos, nos constituíram. Mais do que isso: Portugal liderou a criação desse imenso país que viria a ser o Brasil. E nos legou, entre outras coisas, a bela língua nacional – para o meu gosto mais bonita, diga-se de passagem, em várias das pronúncias brasileiras do que na da sua pátria original.

A segunda razão é que Portugal foi uma nação realmente extraordinária. Aquele pequeno país, numa da pontas da Europa, transformou-se em vanguarda da expansão mundial da civilização europeia. Lançou-se ao Oceano Atlântico, percorreu o litoral da África, descobriu o caminho para as Índias, contornando o temível Cabo das Tormentas, rebatizado Cabo da Boa Esperança pelo rei João II. E chegou não só à Índia, mas à China e ao Japão. De quebra, atravessou o Atlântico e criou o Brasil.

O brasileiro sempre teve alguma dificuldade de se dar conta da importância de Portugal para nós e para o mundo. Antigamente, o mais comum era um simples desprezo, expresso nos lamentos do tipo “pena que não fomos colonizados pelos holandeses ou pelos franceses”, “pena que eles não conseguiram fincar pé no Rio de Janeiro, em São Luís e em Pernambuco”. O nosso destino teria sido outro, imaginava-se. Só faltava transformar Calabar (um precursor do marreco de Maringá) em herói nacional. O que se escondia por trás disso (e nem se escondia muito) era um velho conhecido nosso – o indefectível complexo de vira-lata. O desprezo por Portugal era, no fundo, uma faceta da tendência nacional à autodepreciação.

 Mais recentemente, surgiu outra maneira de atacar os portugueses. Em certos círculos, a tendência é estigmatizá-los como invasores, colonizadores, escravocratas e genocidas. Tratam de reescrever a história do ponto de vista dos derrotados e escravizados. É um esforço legítimo, que permitirá uma visão muito mais completa e justa da nossa formação nacional. Só não podemos perder de vista que Portugal está em nós, no nosso sangue, na nossa cultura, como estão os africanos, os povos originários e outros povos que para cá vieram. Renegar Portugal é renegar um pedaço enorme do Brasil e da nossa história.

 Fiquei sabendo que até em Portugal a sanha “descolonizadora” se faz sentir e há quem peça a remoção daquele célebre monumento às Grandes Navegações em Lisboa, “O Padrão dos Descobrimentos”, um dos emblemas da cidade. Não vai vingar. O dia em que Portugal deixar de se orgulhar do seu passado glorioso será exatamente o fim. Pode fechar para balanço.

A melhor introdução à grandeza de Portugal talvez seja o livro Mensagem de Fernando Pessoa, uma das poucas obras publicadas por ele em vida e dedicada, em grande parte, à aventura marítima portuguesa. “O mar com fim”, escreveu Pessoa, “será grego ou romano: o mar sem fim será português”. Na minha ignorância selvagem de brasileiro, só fui me dar conta da grandeza de Portugal quando travei conhecimento com essa obra de Pessoa.

Mensagem é uma maravilha do primeiro ao último verso. Veja, leitor, por exemplo, o poema “Horizonte”:

Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstracta linha.

O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp’rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte
Os beijos merecidos da Verdade.

 

Faço aqui um apelo ao leitor: não deixe de ler ou reler Mensagem, livro indispensável para entender a nossa história e, também, o nosso futuro.

Brasil, herdeiro das grandes navegações portuguesas

Volto, então, ao nosso destino planetário e à ideia do Saturnino. Portugal, país pequeno, diluído na União Europeia, talvez só possa permanecer fiel a seu passado em aliança com o Brasil. Não tem mais a energia e o impulso de antes. Já nosso país, um dos gigantes do mundo, tem tudo para retomar o espírito das Grande Navegações Portuguesas. Esse é o sentido da brilhante metáfora do Saturnino.

O que poderia ser a Nova Rota da Boa Esperança? A exemplo da iniciativa chinesa, poderia tomar a forma de um conjunto de projetos e programas de infraestrutura e de desenvolvimento sustentável formulados e/ou financiados pelo Brasil em colaboração com outras nações latino-americanas, africanas e asiáticas. O foco seria o desenvolvimento adaptado às exigências do século 21 – um desenvolvimento fundado, portanto, na sustentabilidade não só econômico-financeira, mas também social e ambiental. A emergência climática faria com que a questão da economia verde assumisse papel central na Nova Rota da Boa Esperança. Trata-se, em uma frase, de contribuir para salvar o planeta.

Temos para isso instrumentos que podem ser mobilizados ou recuperados. O BNDES, a Embrapa, as empreiteiras e outras empresas brasileiras com presença internacional. Temos no Itamaraty um corpo diplomático de excelência que ajudaria a abrir caminho para a iniciativa. O Banco dos BRICS, se for capaz de ampliar o número de seus países-membros, também pode ser dinamizado para ajudar a financiar projetos e programas da Rota da Boa Esperança – até porque foi o primeiro banco de multilateral de desenvolvimento a ter a questão ambiental inscrita no seu Convênio Constitutivo.

Repare, leitor, no nome da iniciativa – “Boa Esperança”. O Brasil deve ser o portador de uma mensagem nova de solidariedade, respeito e igualdade entre as nações. Entre os grandes países, volto a dizer, só o Brasil, por suas características, sua história e sua formação singular, está talhado para trazer essa mensagem de esperança para todos.

O que nos caberá fazer em breve será transformar o que pode parecer mero delírio em realidade. Trata-se, como escreveu Pessoa, sonhar as formas invisíveis e buscar na linha fria do horizonte, com esperança e vontade, a árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte – os beijos merecidos da Verdade.

Paulo Nogueira Batista Jr. é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata (LeYa)

Versão ampliada de artigo publicado na revista Carta Capital, em 06 de agosto de 2021.

 

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